A CURATELA DE PESSOAS COM NECESSIDADES ESPECIAIS: principio da dignidade e direito de personalidade limitados.[1] 

Elizangela Sá

Melina Mafra[2]

SUMÁRIO: INTRODUÇÃO; 1. DO PROCESSO DE INTERDIÇÃO; 2. O INSTITUTO DA CURATELA; 2.1. O JUIZ E OS AUXILIARES DA JUSTIÇA: EQUIPE MULTIDISCIPLINAR; 3 DIGNIDADE HUMANA x INCAPACIDADE MENTAL; CONCLUSÃO; REFÊRENCIAS

RESUMO

Baseado no caso de esterlização de uma incapaz e da necessidade de um apofundamento no tema proposto buscará o seguinte trabalho analisar a curatela de pessoas com necessidades especiais, com fulcro na limitação gerada ao princípio da dignidade da pessoa humana e ao direito de personalidade. O estudo visa ainda, um exame sobre a atuação do juiz e dos respectivos auxiliares da Justiça frente ao processo de interdição e curatela. Abordaremos o âmbito de repercussão de tais institutos nos direitos da personalidade e nos direitos e as consequências da ação do curador no campo dos direitos da pessoa portadora de deficiência.

  1. 1.    INTRODUÇÃO 

A partir da leitura jurídica da proposta do paper, objeto inicial desta pesquisa, em que uma pessoa com deficiência no desenvolvimento mental necessita de outro, com nível intelectual dentro dos parâmetros médicos aceitáveis para representá-la nos atos da sua vida civil, para decidir sobre a esterilização dessa adolescente, percebe-se a fragilidade do ser humano quando é relativamente incapaz de responder pelos seus atos e, necessariamente impossibilitada de realizar suas vontades, devido ao processo de interdição e a nomeação de um curador para gerir a adolescente em questão, ou seja, discernir sobre o corpo e os atos de outro pessoa, nos que permite a legislação e a observação judicial.

É nessa seara que se desenvolve a pesquisa sobre a curatela do interditado, portador de necessidades especiais, a despeito da sua incapacidade civil em virtude da deficiência psicognitiva, o que deixa a mercê de decisões de terceira pessoa, a mãe, no caso, que por motivos pessoais, decidi esterilizar sua filha, isto com permissão judicial. E o que pensar sobre os limites do poder do curador sobre a intromissão na vontade alheia, mesmo que o discernimento o curatelado seja absoluto? É proteção do incapaz ou do patrimônio do incapaz? É necessidade ou interesse do curador?

Em busca dessas respostas, buscou-se o Código Civil brasileiro que disciplina a matéria, a Doutrina jurídica, e não menos importante, as pesquisas dos profissionais de saúde mental e social, os quais estão empiricamente envolvidos na luta pelos direitos constitucionais erga omnes à dignidade humana, saúde, bem-estar físico e psicossocial.

  1. 2.    DO PROCESSO DE INTERDIÇÃO 

A origem do instituto da Interdição está no direito romano. A Lei das XII Tábuas já estabelecia normas sobre a incapacidade de portadores de doença mental, surdez e invalidadez permanentes, além de prodigalidade. Baseado no modelo advindo do modelo romano, o processo de interdição se desenvolveu de forma independente nos diversos países. Em algum deles, a questão é tratada de maneira mais minuciosa pela Lei, em outros, de forma mais genérica. “O fato, porém, é que, transcorrer do século XX, o aumento da consciência mundial a respeito da importância da manutenção da dignidade da pessoa humana levou a comunidade jurídica a novas reflexões a respeito do instituto.” (ANDRIGHI, 2005, p.2)

Nas hipóteses de interdição absoluta, todos os atos do incapaz devem ser praticados pela pessoa nomeada pelo juiz para substituir-lhe nas manifestações de vontade, que, em direito, recebe o nome de curador. Nas hipóteses de interdição parcial, o curador também é responsável pela prática de todos os atos do curatelado, dentro dos limites em que for decretada sua incapacidade. (ANDRIGHI, 2005, p.2)

“Qualquer pessoa, quando acometida de alguma doença mental e estando incapacitada para o trabalho, transforma-se num ‘estorvo’ e ameaça o equilíbrio financeiro e psicológico da família.” Deixa de ser contribuinte para ser mais um consumidor. Por isso, a família, algumas vezes, se utiliza da interdição para a manutenção do patrimônio familiar, evitando qualquer prejuízo a seus familiares ou herdeiros.(GONÇALVES, 2008, p.7)

A ministra Nancy Andrighi (ANDRIGUI, 2005, p.3) afirma que dentre os dilemas acerca da interdição deve-se analisar primordialmente “se o paciente submetido à interdição deve realmente ser interditado” e, “se o candidato ao exercício da curatela possui a honestidade de caráter necessária a quem lida com recurso financeiro que não lhe pertence porque destinado ao curatelado”, visto que:

São vários os motivos que levam ao processo de interdição e não apenas a constatação da doença mental. Geralmente, a família é motivada por questões econômicas como preservação do patrimônio, administração dos recursos, resguardar proteção e cuidados, propiciar ganhos através da garantia do recebimento de determinados benefícios, dentre outros. Essas questões, desde que revertidas em prol do curatelado, mantêm o caráter social do instituto. Infelizmente a maioria dos processos tem outras motivações inescrupulosas da família como “esconder” ou “livrar-se” de seu doente, submetê-lo a uma ameaça constante de internação – uma vez que o curador exercerá poder sobre a vida do curatelado, recebimento de benefícios e heranças com desvio da real finalidade da curatela – a proteção do interditando. (GONÇALVES, 2008, p.7-8)

  1. 3.    O INSTITUTO DA CURATELA

A curatela é um instituto do direito civil, que tem como finalidade a proteção dos direitos e garantias do incapaz, menor ou maior, por intermédio de um terceiro que o assista, designado por ordem judicial. Brum (1995, p.31) afirma que:

“[...] Derivado do latim curator, de curare, possui o sentido etimológico de indicar a pessoa que cuida, que cura ou que trata de pessoa estranha e de seus negócios”.

“[...] na técnica jurídica, outra não é sua acepção, desde que é tido para designar pessoa a quem é dada a comissão ou o encargo com os poderes de vigiar (cuidar, tratar, administrar) os interesses de outra pessoa, que tal não pode fazer por si mesma”.

Gomes (1999, p.417) faz uma breve análise a respeito do duplo alcance da curatela:

“Ora é deferida para reger a pessoa e os bens de quem, sendo maior, está impossibilitado, por determinada causa de incapacidade de o fazer por si mesmo, ora para a regência de interesses que não podem ser cuidados pela própria pessoa, ainda que esteja no gozo de sua capacidade. A primeira tem caráter permanente; a outra é necessariamente temporária”.

No art. 1.767, do CC, a curatela encontra-se no Capítulo II e, especificamente no cerne do que se propõe a exposição desse paper, no  que dispõe sobre a interdição das pessoas com deficiência mental, cuja interpretação do texto normativo não delimita o nível psicognitivo e a classificação clinico-patológica do tipo de deficiência mental.

Neste país, o legislador procurou, ao máximo, privilegiar a tomada de decisões pelo próprio incapaz, nos casos em que isso for possível. Assim, há atos que podem ser praticados por ele mediante autorização judicial. Tratando-se do limite de intervenção que tem o curador, observe-se a disposição do art. 10, § 3º, da Lei nº 9263/96, bem como é dever do Estado, art. 2º, da Lei nº 7853/89, viabilizar o tratamento adequado na área da saúde e programas de planejamento familiar das pessoas com deficiência, cuja normatividade propiciou atendimento adequado.

É importante reafirmar o direito do portador de transtorno mental, garantido pela Lei 10.216 a tratamento de boa qualidade e realizado com humanidade e respeito, sendo-lhe assegurados a proteção contra qualquer forma de exploração e o direito a receber informações a respeito de sua doença. Ocorre que, por vezes caracteriza-se o abuso de poder dos curadores, diga-se responsáveis pelo bem estar dos seus curatelados, que não se dignificam em aprender com essas pessoas com necessidades especiais, desconsiderando o direito à personalidade, mas se propõem a dispor de forma maléfica sobre a dignidade, segurança física e psicológica desses civilmente incapazes.

Tal situação sugere questionamentos quanto ao tratamento que essa problemática vem merecendo por parte dos sistemas médico, legal e burocrático, para que sejam preservados, da melhor forma possível, os direitos personalíssimos dos indivíduos envolvidos nesses processos. [...] A incapacidade fática, a doença, antecede a jurídica, não sendo dela a causa direta. Na verdade ela se vincula a outras situações, como na relação que a família estabelece com o doente mental, que vai desde a perplexidade e negação até o seu reconhecimento e a adoção das medidas pertinentes”. (MEDEIROS, 2006, p.4)

É absurdo imaginar a que fica reduzido alguém que se vê obrigado a abdicar de um tal direito ou, que, de alguma forma, se vê privado dele. Mesmo o absolutamente incapaz, de alguma forma, deve ter assegurada a sua integridade física e moral, e seu bem-estar. São direitos fundamentais independentes mas que juntos, integram o conteúdo do princípio constitucional da dignidade humana, devendo ser viabilizados aos usuários do instituto da curatela.

3.1    O Juiz e os Auxiliares da Justiça: equipe multidisciplinar

Por se tratar a curatela de um instituto do direito civil à necessidade de representação do incapaz, este tem nomeação dada pelo juiz. Para tanto, é necessário um processo de interdição a fim de que o juiz faça a nomeação de um curador, seja ele dativo ou legítimo, isto regulado pelos arts. 1.177 e s. do Código de Processo Civil. Observe-se que ao tratar da sentença de interdição, o juiz terá a assistência de especialistas, art. 1.771, do Código Civil, bem como faz referência a um perito a fim de confirmar se a interdição se fará por período determinado ou indeterminado. Assim, observam Jönck e Mafra (2007, p. 2) para a importância da equipe multidisciplinar:

Para não infringir os direitos das pessoas com deficiência, sugere-se que a decisão judicial sobre o processo de interdição de pessoas com deficiência esteja pautada em laudo de equipe técnica multiprofissional, tendo como base para emissão de impressão diagnóstica o Decreto nº 5.296/04 (caracterização das Deficiências), bem como o Código Internacional de Doenças em vigor (atualmente CID 10) e o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais em vigor (atualmente DSM IV).

Os dispositivos legais se referem a administração de bens e atos da vida civil que os referenciam, não sendo observado pertinência aos atos relacionados às necessidades subjetivas ou mesmo relacionadas à orientação emocional e afetiva, sendo interpretação do magistrado a fiscalização destas obrigações implícita no exercício da curatela. Nesse sentido, os limites da curatela têm a extensão do nível de capacidade mental, ou seja, o grau de desenvolvimento intelectivo da pessoa interditada.

A capacidade de discernimento e a consciência dos atos do suposto interdito serão avaliadas pelo Juiz no processo especial denominado Interdição, principalmente na fase do interrogatório. Nesse mesmo momento, o juiz verificará a finalidade da ação proposta, ou seja, se há o caráter social de proteção ao interdito ou se possui somente o caráter patrimonial movido pela ganância e ambição dos familiares. O juiz, assim, pode e deve personalizar a sentença de interdição, atento para as peculiaridades de cada futuro usuário.

 “[...] na verdade o juiz não examinará o interditando no sentido clínico do termo, mas sim o interrogará sobre sua vida, negócios, bens e o que mais lhe parecer necessário[...]. A medida reveste-se de caráter acautelatório, visando evitar a interdição de pessoa mentalmente sã para satisfazer interesses inconfessáveis.”  (MAGALHÃES, 2002, p.322)

  1. 4.    DIGNIDADE HUMANA x INCAPACIDADE MENTAL

Hoje, em tempo de crescente carência material, em que o fosso entre ricos e pobres só faz crescer, o que se vê é a interdição e a curatela desvirtuadas de seus propósitos iniciais. Em busca do conserto deste desvio, mister se ressalte que a Curatela e a Interdição encontram-se, inseparável e inexoravelmente, unidas a direitos fundamentais extremamente caros a todos nós. Entre eles, os direitos fundamentais à existência, à vida, à integridade física e moral, bem-estar, liberdade e igualdade. Alguns deles, aliás, estão sendo alicerçados sobre novos paradigmas, porquanto o conteúdo garantido pelo modelo liberal encontra-se cada vez mais esvaziado, incapaz de alcançar e tutelar a parcela da população que se encontra destituída de herança social e econômica.

Como bem explicita a ministra Nancy Andrighi (2005, p.4), a integridade física e moral são direitos fundamentais independentes mas que, juntos integram o conteúdo do princípio constitucional da dignidade humana, devendo ser viabilizados aos usuários do instituto da curatela. O direito à liberdade postula, não mais pela liberdade geral e irrestrita, mas pela função social a que se devem vincular leis, contrato e propriedade. “A idéia de liberdade agora tende a se assentar naquilo que os economistas chamam de trade off, ou seja, sacrificar um valor como contraparte da obtenção de um outro. Este jogo de equilíbrios deve ser assegurado aos usuários do instituto da curatela.”

O direito fundamental à vida a que me refiro é a possibilidade de “intimidade consigo mesmo, de saber-se e dar-se conta de si mesmo, um assistir a si mesmo e um tomar posição de si mesmo”. Doloroso me é imaginar a que fica reduzido alguém que abdica de um tal direito ou, que, de alguma forma, se vê privado dele. Mesmo o absolutamente incapaz, de alguma forma, deve tê-lo assegurado. (ANDRIGHI, 2005, p.3)

Por fim, o direito à igualdade material, no que pese a dignidade da pessoa humana, cabe a cada um, conforme suas necessidades, possibilitar oportunidades a fim de que haja um mínimo de igualdade entre os desiguais. Portanto, se em sociedade este é o único modo justo de se viver, de igual modo, esta deve buscar meios, como ente coletivo que é, de promovê-la aos interditos.

CONCLUSÃO

Pelo exposto, não é possível ir de encontro à legislação civil e negar a necessidade de orientação e proteção jurídica à pessoa com necessidades especiais, por meio da curatela. No entanto, o próprio termo “interditado” possui uma conotação pejorativa, pois retira genericamente, a capacidade de materializar vontades intrínsecas da pessoa curatelada, cuja realização não lhe trará prejuízos de ordem alguma, mas apenas satisfação pessoal, em que não precisaria da anuência e nem mesmo decisão judicial para realizar-se.

O instituto da curatela é uma faca de dois gumes, pois ao tempo que visa proteger bens jurídicos, em alguns casos pode representar apenas a manipulação de pessoas com baixo poder de discernimento, portanto, incapaz.

No caso de intervenção sobre o corpo é ainda mais sensível a análise do caso, pois sendo relativa ou absoluta a incapacidade, o curatelado deveria ser ouvido, além da perícia da equipe multidisciplinar, a decisão permeia a vontade do interditado e a necessidade de esterilização em constatação de perigo de saúde da mãe e do filho. Do contrário, apenas para impossibilitar o nascimento de um terceiro a ser curatelado ou tutelado, não poderia a decisão ser unilateral da vontade do curador ou da parte do juiz.

REFERÊNCIAS

 

ANDRIGHI, Fátima Nancy. Interdição e Curatela. Palestra proferida no seminário sobre Interdição realizado no Superior Tribunal de Justiça, 2005. Disponível em: <http://bdjur.stj.gov.br/xmlui/bitstream/handle/2011/1606/Interdi%C3%A7%C3%A3o_Curatela.pdf?sequence=4>. Acesso em: 28 de Outubro 2011.

MEDEIROS, Maria Bernadette de Moraes. Interditos: Uma realidade Invisível. 4. ed. rev. atual. Belo Horizonte: Del Rey, 2006. Disponível em: www.mp.rs.gov.br/areas/ceaf/arquivos/enssmp/Textos%20Completos%20PDF/interditos_uma_reali_invis.pdf) Acesso em: 05 nov. 2011

BEVERVANÇO, Rosana Beraldi, A Esterilização. Disponível em: <www.ampid.org.br>. Acesso em: 24 out. 2011.

DE PLÁCIDO E SILVA. Vocabulário Jurídico 4. ed.v.1 Rio de Janeiro: Forense, 1975. In: BRUM, Jander Maurício. Curatela: Doutrina, Jurisprudência, Modelos Anotados de Petição e Legislação. Aide, 1995.

GOMES, Orlando. Direito de Família. 11. ed. rev. atual. por Humberto Theodoro Júnior. Rio de Janeiro: Forense,1999.

GONÇALVES, Luciana Nunes. A CURATELA DO BIPOLAR – Caráter Social ou Ambição da Família? 2007. Disponível em: http://www.apmeducacao.com.br/arquivos/artigo_cientifico/glioche/luciana_nunes.pdf Acesso em: 07 nov. 2011

JONCK, Iracema Aparecida Fuck. MAFRA Monyk. INTERDIÇÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA: Interdição Parcial ou Total. 2007. Disponível em: http://www.fcee.sc.gov.br/index.php?option=com_docman&task=doc_view&gid=449  Acesso em: 07  nov. 2011

MAGALHÃES, Rui Ribeiro de.  Direito de Família no Novo Código Civil Brasileiro. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2002. 



[1] Paper apresentado à disciplina Direito de Família e Sucessões, da Unidade de Ensino Superior Dom Bosco - UNDB.

[2] Graduandas do Curso de Direito, da UNDB.