Max Leandro Bispo Santana

1- INTRODUÇÃO

O movimento musical gospel desencadeou um processo que originou algo de maior amplitude: um estilo de vida, uma “cultura gospel”. Esse processo alcançou tamanha dimensão no Brasil, que hoje se torna possível dizer que ele influencia não somente aqueles que professam uma fé de natureza cristã, como também, transpôs os muros eclesiásticos ao ser assimilado até mesmo por pessoas que não possuem vinculação religiosa. Desta forma, o referido artigo tem como proposta discutir as relações de troca, apropriação, fusão e hibridismo que ocorre entre a música gospel brasileira e as demais correntes da música popular, bem como apontar para os impactos culturais resultantes desta fusão. Para tal, serão utilizados conceitos de teóricos da cultura como: Stuart Hall. Durval Muniz, Denis Cuche e George Yúdice. A metodologia adotada é do tipo exploratório-bibliográfico, tendo sido consultados livros, revistas e artigos, além de pesquisas em sites especializados.

Palavras Chaves: cultura, gospel, música, hibridismo, fusão

2 - REFERENCIAL TEÓRICO

Refletir sobre a cultura implica inevitavelmente na compreensão da mesma como sendo um fenômeno de cunho social e dinâmico, desta forma, cultura “é na verdade um conjunto múltiplo e multidirecional de fluxos de sentido, de matérias e formas de expressão que circulam permanentemente, que nunca respeitaram fronteiras, que sempre carregam em si a potência do diferente, do criativo, do inventivo, da irrupção, do acasalamento” (MUNIZ, 2007, p.03). O que denominamos cultura gospel “não é uma expressão organizada, delimitada; mas resulta do cruzamento de discursos, atitudes e comportamentos entre si e com a realidade sociopolítica e histórica” (GOSPELMAIS, 2012) O gospel está naturalmente em negociação com as demais culturas que a permeiam por conta de um processo de globalização acelerado.

Portanto, ao se estabelecer uma análise do que hoje se denomina “cultura gospel”, sobretudo no que se refere à influência de sua musicalidade no meio cultural brasileiro, não se pode desprezar elementos de natureza pessoal, social, e econômica, pois esses influenciam fortemente na maneira de se compreender e no modo de se relacionar com a cultura gospel, acarretando no surgimento de reinterpretações e resignificância. Ao considerarmos estes aspectos, nos resguardamos de risco de conceber a cultura como algo fechado e estático, pois o que ocorre são “fluxos culturais, relações culturais, redes culturais, conexões culturais, conflitos, lutas culturais.” (MUNIZ, 2007, p.04) Esses fluxos são dotados de mutações no qual se negocia constantemente valores e lógicas internas na medida em que uma determinada cultura se insere em um contexto social.

Logo, um dos primeiros conceitos elencados neste artigo no intuito de se compreender a influência da música gospel na sociedade brasileira, é a noção de hibridismo cultural que segundo Hall “Trata-se de um processo de tradução cultural, agonístico uma vez que nunca se completa, mas que permanece em sua indecidibilidade.” (HALL, 2003, p.74) sendo ainda:

“[...] é um processo Através do qual se demanda das culturas uma revisão de seus próprios sistemas de referência, normas e valores, pelo distanciamento de suas regras habituais ou "inerentes" de transformação. Ambivalência e antagonismo acompanham cada ato de tradução cultural, pois o negociar com a "diferença do outro” revela uma insuficiência radical de nossos próprios sistemas de significado e significação. (Bhabha, 1997, Apud HALL 2003)

No âmbito religioso, isto significa dizer que a música gospel não pode ser vista por um prisma “purista”, que tenta há muito conservar formatos musicais ditos como autênticos e “sagrados” uma vez que “As tradições são sempre invenções feitas por grupos humanos numa determinada época” (MUNIZ, 2007, p.03), e por conta disto são passíveis de reinvenção. Ainda segundo Muniz, quando se trata de cultura “o que preservamos é sua possibilidade de existir e, portanto, de diferir e de divergir Preservar não é congelar numa pose uma certa temporalidade”.(MUNIZ,2007,p.04). O processo de trocas culturais é inevitável, sobretudo quando se trata de sociedades multiculturais, Esse fenômeno é facilmente notado quando observamos a variedade de estilos e cadências melódica fundidos na rítmica da música gospel brasileira que rompeu com os dogmas do conservadorismo radical evangélico não somente para apropriar-se da gama de ritmos pertencentes ao que seria denominado de música popular , mas também para se deixar consumir e apropriar pelo que os religiosos denominam de “cultura secular”. Sobre estas fusões e sincretismo cultural Muniz afirma:

“As noções de fusão ou de sincretismo cultural devem ser também problematizadas, por trazerem consigo a idéia de que a mistura pode estabelecer o desaparecimento completo das marcas anteriores do que foi misturado ou de que esta mistura se dá de forma harmoniosa. Fundir-se não é superar a diferença interna, é afirmá-la permanentemente, é afirmá-la como condição mesma da fusão.” (MUNIZ, 2007, p.05)

Certamente estas “fusões sincréticas” confirmam o pensamento de Muniz, pois as misturas acabam por promover a afirmação das diferenças visando a mutação da mesma.

3 – ANÁLISE DO OBJETO

3.1 - A Origem do Termo Gospel

A palavra Gospel em resumo significa: “Boas Noticias”. O Gospel é mencionado no Novo e Velho Testamento, possuindo uma significância de sabedoria divina e ainda “O remédio de Deus” entre outros significados.

A musicalidade gospel que conhecemos hoje é profundamente ligada ás raízes culturais dos escravos Afro-Americanos assim como nas músicas Africanas tradicionais. Suas estruturas descendem do grande choque cultural decorrente dos movimentos diaspóricos que uniram a cultura Africana às tradições Européias.

Este movimento migratório gerou o que Hall denomina de sociedades multiculturais que:

“não são algo novo. Bem antes da expansão européia (a partir do século quinze) — e com crescente intensidade desde então — a migração e os deslocamentos dos povos tem constituído mais a regra que a exceção, produzindo sociedades étnica ou culturalmente"mistas". "Movimento e migração (...) são as condições definição sócio-histórica da humanidade." (Goldberg, 1994,Apud HALL , p.55).

Os escravos envolvidos na formação da sociedade multicultural americana eram oriundos de inúmeras partes da África, partindo principalmente da Costa do Marfim e Guiné. Essas áreas eram fortemente influenciadas pela região islâmica e por uma musicalidade marcada por longas linhas melódicas e instrumentos de corda. Já os escravos vindos de Ganza e Nigéria, possuíam uma rítmica complexa e instrumentos grandes de percussão. Outro grupo trazido do Congo caracterizava-se pela polifonia vocal dividida em solista e grupo vocal.

Diferentemente da música européia que se divide em compassos rítmicos, a musicalidade trazida dos africanos segue um sistema aonde os ritmos vão sendo improvisados e alterados.

A base do tradicional Gospel Americano deriva das canções de conteúdo bíblico entoadas pelos escravos no campo chamados de Spirituals, estas canções descendiam diretamente do formato africano de pergunta e resposta entre o solista e a congregação. Musicalmente, estes cânticos agregavam os hinos ocidentais com a rítmica pulsante das músicas africanas. 

Durante um longo período histórico os Spirituals foram subjugados pela cultura dominante dos brancos, recebendo um olhar mais atencioso somente com o término da Guerra Civil americana.

As igrejas negras pentecostais do sul promoveram uma lenta, mas firme transformação da música. Os passos definitivos para a chamada Música Gospel se deram com a grande migração para as cidades do norte como Chicago e Nova York logo após a 1ª Guerra Mundial. Nos anos 70 e 80 com o avanço tecnológico a música gospel sofreu transformações ainda mais relevantes, absorvendo e sendo absorvido pelo Rock, Hip-Hop, e a música clássica.

4 - O GOSPEL NO BRASIL:

No contexto cultural brasileiro a música gospel chegou por volta dos anos 1990, trazida por missionários pentecostais, sendo carregada de influências culturais oriundas da sociedade americana, e acabou passando por mais um processo de assimilação, sobretudo de fusão ao romper com a visão conservadora de algumas correntes radicais evangélicas que pretendiam ironicamente “preservar” uma musicalidade que é por essência fruto das trocas ocorridas no meio diaspórico multicultural americano. As fusões advindas do diálogo com ritmos regionais como: baião, axé, samba regue, frevo, somadas ao aumento significativo do controle de meios de comunicação por parte de grupos evangélicos, elevaram a musicalidade gospel ao status de “cultura popular’ que é definida por Hall como sendo “as formas e atividades cujas raízes se situam nas condições sociais e materiais de classes especificas; que estiveram incorporadas nas tradições e práticas populares” (HALL, 2003, p.257).

A explosão da música gospel acabou por popularizar a cultura evangélica por inteiro. Jargões de cunho religioso com: “bênção”, “tá repreendido”, “amado”, tornaram-se de uso freqüente não somente no meio dos grupos evangélicos, mas também se incorporaram ao léxico popular, sobretudo quando analisado um grupo mais específico como, por exemplo, a sociedade soteropolitana. Ainda tomando como exemplo as cenas sociais de Salvador, percebemos um caso curioso no que se refere às relações de trocas culturais, pois a música gospel se faz presente até mesmo em cima dos trios elétricos carnavalescos, quando nesta feita , evangélicos também se apropriam dos ritos e ritmos outrora classificados como “profanos” no intuito de convertê-los ao “sagrado”.  Desta forma fica explicito o conceito de aculturação produzido por Robert Redfield, Ralph Linton e Melville Herskovits, segundo os quais:

 

“a aculturação é o conjunto de fenômenos que resultam de um contato contínuo e direto entre grupos de indivíduos de culturas diferentes e que provocam mudanças nos modelos (patterns) culturais iniciais de um ou dos dois grupos” (CUCHE, 2002, p.115)

Artistas como Aline Barros, Ana Paula Valadão, Lázaro, Cassiane, Fernanda Brum e Regis Daneze, dentre outros, são recordistas de venda de CD`s no Brasil e possuem suas músicas, vinculadas em todos os meios de comunicação, chegando até mesmo a protagonizar um programa especial de Fim de Ano na Rede Globo intitulado de Festival Promessas. Sobre esta abertura para a cultura gospel Anna Virginia Balloussier, colunista do jornal Folha de São Paulo declara:

 

“A estratégia de aproximação começou há dois anos, após o "Jornal Nacional" fazer uma série de reportagens sobre trabalho social de igrejas. Desde então, a rede tem dado destaque em seu noticiário a eventos da comunidade evangélica. A presença de músicos gospel nos programas de Xuxa e Faustão cresceu, e há planos para um programa aos sábados (FOLHA DE SÃO PAULO, 2011)

Esta tentativa de aproximação, segundo Yúdice pode ser melhor entendida quando partimos de “uma abordagem da questão da cultura de nosso tempo, caracterizada como uma cultura de globalização acelerada como um recurso” (YÚDICE, 2004, p.26).Neste contexto a cultura gospel, começa a ser enxergada pela Indústria Musical e midiática como uma “esfera crucial para investimentos” (YÚDICE, 2004, p.30), onde a arte musical evangélica passa a ser tratada como qualquer outro recurso. Para Yúdice o papel da cultura no acumulo de capital não é limitado, ela é essencial ao processo da globalização que “revigorou o conceito de cidadania cultural” (YÚDICE, 2004, p.40)

A música gospel, enquanto representante maior da nova cultura evangélica possui influencia até mesmo na esfera política, pois recentemente “A presidente Dilma Russef sancionou lei que considera musica gospel, de matriz religiosa, como uma manifestação cultural” (GLOBO.COM, 2012).  Com esta sanção, pastores e cantores gospel poderão recorrer aos benefícios da Lei Rouanet para realizarem seus shows. De acordo com o advogado Paulo Fernando Melo, assessor da Frente Parlamentar Católica na Câmara, trata-se de uma “[...] decisão sábia, que vai fazer justiça a esse importante movimento cultural, de católicos e evangélicos. Vai estimular ainda mais a difusão da música religiosa no Brasil” (GLOBO.COM, 2012). Já o Ministério da Cultura adotou uma postura mais prudente demonstrando preocupação com a exploração religiosa dessa decisão.

No âmbito sociológico, a lei sancionada pela Presidente Dilma,considera música gospel como uma manifestação cultural, pode ser entendida como uma tática governamental com bases no que Hall define como sendo um  “multiculturalismo pluralista”  , pois neste , ocorre a concessão de direitos aos diversos grupos com base em uma política comunitária. (HALL, 2003, p.53)

 

 

5 – CONCLUSÕES

 

Como fora posto inicialmente, o presente estudo procurou analisar o fenômeno da cultura gospel no Brasil, adotando como elemento de destaque a musicalidade gospel e sua influência em nossa sociedade.

Durante essa análise podemos observar que o gospel desde suas origens nos Estados Unidos, comporta relações de troca e fusão decorrentes do choque cultural proporcionado pelas diásporas dos povos africanos e europeus, e que, o mesmo é fruto de uma rica sociedade multicultural. No Brasil, percebemos que a música gospel alcançou grande inserção social ao se deixar fundir com as rítmicas regionais brasileiras e ser utilizado como produto da Indústria Musical e midiática. Logo, pode-se concluir que os fenômenos de aculturação, e as apropriações decorrentes das relações de resistência e assimilação, acabaram por estabelecer o gospel enquanto cultura e a sua musicalidade como manifestação cultural brasileira.

REFERÊNCIAS

DURVAL, Muniz. Fragmentos do discurso cultural: por uma análise crítica do discurso sobre a cultura no Brasil. In: NUSSBAUMER, G. M. (Org.) Teorias & políticas da cultura. Visões multidisciplinares. Salvador: Edufba, 2007, pg. 13 a 24.

HALLL, Stuart. A questão multicultural. In: Da diáspora. Identidades e mediações culturais. Belo Horizonte e Brasília: Editora UFMG/Unesco no Brasil, 2003, pg. 51 a 100.

HALLL, Stuart. Notas sobre a desconstrução do “popular". In: Da diáspora. Identidades e mediações culturais. Belo Horizonte e Brasília: Editora UFMG/Unesco no Brasil, 2003, pg. 247 a 266.

CUCHE, Denys. O triunfo do conceito de cultura. In: A noção de cultura nas ciências sociais. Bauru: Edusc, 2002, pg 65 a 108.

UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO. Música gospel conquista Brasil Disponível em:

GLOBO.COM. Dilma reconhece música gospel como manifestação cultural Disponível em: . Acessado em 28 de jun. 2012.

HUMMOND. História da música gospel. Disponível em: GOSPLMAIS. Os evangélicos criaram um novo jeito de ser, afirma pesquisadora. Confira a entrevista Disponível em: Acessado em 25 de jun.2012.

FOLHA DE SÃO PAULO: Globo exibe festival gospel apostando em público evangélico. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/1022104-globo-exibe-festival-gospel-apostando-em-publico-evangelico.shtml.  Acessado em 25 de jun.2012