EDUARDO CARON DE CAMPOS[1]

Este artigo tem como objetivo analisar o processo de criação e evolução dos direitos a cultura e ao lazer, e a forma pela qual esses direitos estruturam-se e consolidaram-se como direitos fundamentais, iniciando com uma abordagem histórica, até chegar à análise das normas específicas de tutela do direito a cultura e ao lazer na nossa Constituição Federal.

PALAVRAS-CHAVE: Direitos Fundamentais, Direito a Cultura, Direito ao Lazer, Constituição Brasileira.

1 – Introdução

O direito a cultura e ao lazer, dada a natureza abstrata e sua complexa concretização, não possui grandes ou aprofundados estudos jurídicos científicos que abordam o tema diretamente.Normalmente a análise desses direitos é encontrada de forma acessória a estudos relacionados a outros direitos sociais, e quando se trata de direitos de defesa de menores. Porém, o direito a cultura e ao lazer possui natureza jurídica de direito fundamental, com reconhecimento não só na legislação interna, mas também no plano jurídico internacional, como ocorre na Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948. Tanto o direito a cultura como o direito ao lazer são direitos de segunda geração, também denominados por alguns como direitos de segunda dimensão.

2- Desenvolvimento Histórico

Assinada em 1948, a Declaração Universal dos Direitos Humanos é um dos documentos básicos das Nações Unidas, e nela são enumerados os direitos que todos os seres humanos possuem.

É no Artigo XXIV da Declaração Universal dos Direitos Humanos que encontramos o reconhecimento do direito ao lazer a todo ser humano.

"Todo ser humano tem direito a repouso e lazer, inclusive a limitação razoável das horas de trabalho e a férias remuneradas periódicas."

Posteriormente, em 20 de novembro de 1959, surge a Declaração Universal dos Direitos das Crianças – UNICEF, onde se assegura oDireito á educação gratuita e ao lazer infantil.

Tratado como principio, assim prescreve o Princípio VII:

"A criança tem direito a receber educação escolar, a qual será gratuita e obrigatória, ao menos nas etapas elementares. Dar-se-á à criança uma educação que favoreça sua cultura geral e lhe permita - em condições de igualdade de oportunidades - desenvolver suas aptidões e sua individualidade, seu senso de responsabilidade social e moral. Chegando a ser um membro útil à sociedade.

O interesse superior da criança deverá ser o interesse diretor daqueles que têm a responsabilidade por sua educação e orientação; tal responsabilidade incumbe, em primeira instância, a seus pais.

"A criança deve desfrutar plenamente de jogos e brincadeiras os quais deverão estar dirigidos para educação; a sociedade e as autoridades públicas se esforçarão para promover o exercício deste direito."

Em 1988 o direito a cultura e ao lazer são inseridos no nosso ordenamento jurídico através do que se estabeleceu em alguns artigos da Constituição Federal, como:

Art. 6o São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 26, de 2000)

Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios:

V - proporcionar os meios de acesso à cultura, à educação e à ciência;

Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais.

§ 1º - O Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional.

§ 2º - A lei disporá sobre a fixação de datas comemorativas de alta significação para os diferentes segmentos étnicos nacionais.

§ 3º A lei estabelecerá o Plano Nacional de Cultura, de duração plurianual, visando ao desenvolvimento cultural do País e à integração das ações do poder público que conduzem à:

I defesa e valorização do patrimônio cultural brasileiro; II produção, promoção e difusão de bens culturais:

III formação de pessoal qualificado para a gestão da cultura em suas múltiplas dimensões;

IV democratização do acesso aos bens de cultura; V valorização da diversidade étnica e regional.

Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem:

I - as formas de expressão; 

II - os modos de criar, fazer e viver; 

III - as criações científicas, artísticas e tecnológicas; 

IV - as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais; 

V - os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico. 

Art. 217. É dever do Estado fomentar práticas desportivas formais e não-formais, como direito de cada um, observados:

I - a autonomia das entidades desportivas dirigentes e associações, quanto a sua organização e funcionamento;

II - a destinação de recursos públicos para a promoção prioritária do desporto educacional e, em casos específicos, para a do desporto de alto rendimento;

III - o tratamento diferenciado para o desporto profissional e o não- profissional;

IV - a proteção e o incentivo às manifestações desportivas de criação nacional.

§ 1º - O Poder Judiciário só admitirá ações relativas à disciplina e às competições desportivas após esgotarem-se as instâncias da justiça desportiva, regulada em lei.

§ 2º - A justiça desportiva terá o prazo máximo de sessenta dias, contados da instauração do processo, para proferir decisão final.

§ 3º - O Poder Público incentivará o lazer, como forma de promoção social.

Art. 220. A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição. 

§ 1º - Nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social, observado o disposto no art. 5º, IV, V, X, XIII e XIV. 

§ 2º - É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística.

Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

Note-se que a Constituição além de reconhecer o direito, veda a censura de natureza política, ideológica e artística, sendo certo que o artigo 37 da própria Constituição e a Lei 8429/92 (Lei da Ação Popular) prevê que eventuais excessos do administrador público são passíveis de medidas legais.

Em 1990, através da Lei 8.069 de 13 de julho, criou-se o Estatuto da Criança e do Adolescente, determinando em seu artigo 4º que não só o Estado, mas a família, e a sociedade em geral, devem assegurar com absoluta prioridade diversos direitos a criança e ao adolescente, dentre eles o direito a cultura e ao lazer.

"Art. 4º É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária."

3- Cultura – Aspectos Gerais

Como mencionado acima, o acesso à cultura é um direito assegurado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (artigo 4º) e pela Constituição Federal (artigo 215). Contudo o que se tem verificado é a carência de políticas públicas para o cumprimento do quanto disposto em nossa legislação.A cultura precisa ser vista como um direito de suma importância, como o é a saúde, educação e outros.

Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, em 2005, o investimento público brasileiro em cultura chegou a R$ 3,1 bilhões. No mesmo ano, os investimentos em saúde somaram R$ 99 bilhões e em educação R$ 102 bilhões (Síntese dos Indicadores Sociais).

Há alguns anos foi criada a expressão cidadania cultural, termo presente também em dicionários de direitos humanos. Dá-se esse nome ao conjunto de iniciativas que passam pelas mais diversas manifestações culturais, como teatro, música e literatura, entre outros, que tenham impacto real na formação das pessoas.

Muitos projetos sociais brasileiros se utilizam da cultura para promover o desenvolvimento pessoal e a inserção social de crianças e adolescentes. Milhares de meninos e meninas nascidos em regiões pobres do Brasil, filhos de famílias em situação de extrema vulnerabilidade social mudaram suas trajetórias de vida e, por vezes, quebraram o ciclo de pobreza das suas famílias por meio da música, da dança, da dramaturgia, do cinema e da literatura.

É importante que as crianças e os adolescentes tenham acesso às salas de cinema, aos museus, aos teatros e a espetáculos de dança e música. Mas é também fundamental que tenham a possibilidade de se tornar produtores de cultura – da cultura da sua comunidade, da sua região, da sua raça.  Manifestações culturais genuínas fortalecem a identidade dos jovens e tem reflexo direto na sua auto-estima.

Para que os jovens se tornem produtores da sua própria cultura é preciso que tenham acesso a um amplo repertório cultural e a espaços públicos para manifestá-la. O Estatuto da Criança e do Adolescente assegura a participação das crianças e dos adolescentes nos conselhos de cultura nacionais, estaduais e municipais para que possam participar da formulação de políticas públicas consideradas essenciais para a formação plena dessa faixa etária.

A cultura é a identidade de uma nação, de uma região, de um grupo de pessoas. Por isso, o conceito de diversidade cultural precisa estar presente na formulação das políticas públicas do setor para que as mais diversas manifestações culturais sejam preservadas e fortalecidas.

O desafio é a coexistência pacífica entre indivíduos de grupos culturais diferentes assegurando que todas as expressões da cultura sejam valorizadas e respeitadas.

4 – Lazer – Aspectos Gerais

Também como mencionado acima, o direito ao lazer está assegurado desde 1959 na Declaração Universal dos Direitos das Crianças, mas no Brasil é recente o entendimento do lazer como um direito das crianças e dos adolescentes. No Estatuto da Criança e do Adolescente (1990) há vários artigos que asseguram o direito ao lazer, mas na prática ainda predomina em muitas regiões do país a idéia de que crianças e adolescentes filhos de famílias pobres quando não estão na escola, devem trabalhar para ajudar no sustento da família.

Entretanto, o trabalho é considerado ilegal para a faixa etária dos 5 aos 13 anos de idade. A legislação permite o trabalho protegido, na condição de aprendiz para quem tem entre 14 e 15 anos.

A falta de políticas públicas eficientes para crianças e adolescentes agrava as diferenças sociais no Brasil. No caso do lazer é a mesma coisa. Se não há espaço público de lazer, como praças urbanizadas, quadras e brinquedotecas para os menores, as crianças pobres que vivem em bairros vulneráveis ficam sem alternativa de lazer. Ao sair para brincar nas ruas, estão expostas à violência que ostenta altos índices nos bairros mais periféricos. Já os filhos de famílias mais abastadas têm brinquedos, freqüentam clubes ou outros espaços protegidos de lazer, e passeiam com os pais. 

O fato de as crianças e adolescentes não terem espaços públicos protegidos de lazer restringe o convívio entre grupos diversos. O convívio pacífico com o outro, com o "diferente" é um dos pilares do desenvolvimento humano e o fundamento da cultura de paz. No Brasil, uma das principais diversões das crianças é a televisão. Pesquisa do Ibope (2007) indica que os pequenos passam, em média, 4 horas e 50 minutos assistindo tevê.

Diversas pesquisas comprovam que as brincadeiras facilitam o desenvolvimento cognitivo, social, físico e emocional das crianças pequenas (zero a seis anos de idade). Para os adolescentes e jovens o lúdico também é parte importante da sua formação.

5- Direitos Sociais como Direitos Fundamentais

Em um estudo histórico-social, verificamos que o surgimento e a reunião de determinados direitos sob a denominação de direitos humanos, posteriormente, direitos fundamentais, têm início com movimentos sociais de caráter revolucionário, que se desenvolveram no hemisfério ocidental nos séculos XVII e XVIII, na tentativa da estabelecer limites ao Estado, que na época assumia – ao que se refere ao continente europeu – sua forma mais agressiva em relação aos seus tutelados, período em que se aplicava a teoria de governo do estado Absolutista, inspirado por circunstâncias sociais derivadas do fim da Idade Média, bem como por filósofos como Thomas Hobbes, que defendiam a idéia de que a única forma de se evitar o "estado de natureza" (a guerra constante entre os homens), é construindo um Estado através da concessão de toda força e poder a um só homem, que possa reduzir as diversas vontades a uma só vontade[2]. A falibilidade humana diante o uso do Poder, resultou na inevitável ruína desse sistema de governo. Com os diversos abusos e arbitrariedades dos representantes do Estado, os tutelados deram início à queda deste modelo estatal. No aspecto social, observou-se a revolta popular expressa na violência, nas manifestações bélicas, políticas e filosóficas que buscaram a substituição dos governantes. No plano jurídico, uma nova revolução começou a tomar forma. A valorização do ser humano, a proteção da dignidade e a retomada dos valores de liberdade, de igualdade de fraternidade, orientaram o novo ordenamento que estava sendo estabelecido. O resultado é que até hoje não é possível conceber um Estado Democrático de Direito no qual não sejam priorizadas todas estas conquistas que hoje denominamos de Direitos Humanos. Contudo, as origens desses direitos – que somente nesse momento histórico se manifestaram de forma consistente – possuem raízes em diversos eventos históricos. Como destaque, temos a criação do regime democrático de governo, trazido pela Grécia antiga e consolidado pela antiga república romana, por constituir uma forma natural de auto-limitação do Estado, característica essencial da primeira geração de direitos humanos. Temos em seguida, o advento do cristianismo no continente europeu, que se revelou como eixo cultural e ideológico no período conhecido como Idade Média, responsável pela valorização da dignidade da pessoa humana na cultura ocidental, pois difundiu tanto a concepção de que o homem é um ser criado a imagem e semelhança de Deus[3], como ensinamentos de respeito e amor pelo próximo[4], conceitos extremamente importantes para a criação de normas de direitos humanos, pois estabeleceu toda uma filosófica centrada no amor e na caridade entre os homens, independentemente de qualquer origem, raça, sexo ou credo. Neste período, importantes instrumentos de defesa dos direitos humanos foram desenvolvidos como a Magna Charta Libertatum (15/06/1215), a Petition of Rights (1628), a Bill of Rights (1689), entre outros.

Com esse espírito, aliado aos interesses burgueses, a Europa e América do Norte do século XVI ingressaram em um período em que o Estado de poderes limitados foi consolidado através de revoluções inglesas, americanas e francesas que protestavam por melhores condições de vida, que nessa época, possuíam fortemente a característica de exigências de limitação ao poder do Estado por meio de direitos e garantias focadas na liberdade do indivíduo. Esse é o período em que se permitiu a criação do Estado constitucional moderno, que possibilitou pela primeira vez na história que os direitos dos homens tivessem um lugar fixo e sólido, uma conquista fundamental para que todos os demais direitos humanos que conhecemos hoje pudessem existir.

Contudo, apesar dessas enormes conquistas políticas, apesar de ter sido gerada a primeira dimensão de direitos humanos, a qualidade de vida das pessoas não sofreu a alteração que estas revoluções prometiam.

Como Karl Marx bem observou em meados do século XIX, "a emancipação política não implica em emancipação humana"[5], e assim, a humanidade caminhou para a defesa de direitos sociais.

Em um momento em que a Primeira Revolução Industrial chegava ao seu ápice, em um período em que a exploração humana não distinguia homens de mulheres nem mesmo de crianças, em um momento em que as jornadas de trabalho chegavam a 14 horas diárias, dizer que direitos humanos eram meras limitações ao poder estatal beirava a hipocrisia. Iniciava-se assim, a luta pelo resgate da dignidade, a luta por aquilo que seriam os verdadeiros direitos humanos, a luta das pessoas comuns – não mais de um pequeno grupo burguês – contra as forças que agrediam o homem tanto fisicamente como mentalmente, dia após dia. Uma revolução tão marcante que foi capaz de gerar toda uma nova dimensão de direitos, que hoje conhecemos como Direitos Sociais. Os direitos sociais são intimamente ligados à subsistência, sendo interessante observar que a proteção desta dimensão de direitos humanos é que garante a possibilidade da primeira dimensão, aquela que se refere às liberdades públicas, pois em uma escala de necessidades da vida em sociedade, em um primeiro momento a pessoa deve prover a sua subsistência,

pelo simples fato de precisar se alimentar, se vestir, precisar ter um lugar para morar, precisar descansar, trabalhar, ou seja, ela primeiro precisa "existir", para que somente em um segundo momento esses bens, essa sua propriedade gerada por sua atividade individual, seja protegida conta o Estado. Os direitos fundamentais se entrelaçam, pois não existe ordem de importância, a falta de proteção em uma esfera anula as conquistas de outra, sendo esta a razão pela qual se confirma o pensamento de juristas como Ingo Wolfgang Sarlet[6], no sentido de que o reconhecimento progressivo de novos direitos fundamentais tem o caráter cumulativo, de complementaridade, e não de alternância[7].

Torna-se a frisar que, se um determinado direito é indispensável para a existência de outro, fica implícito que ele assume as garantias e proteções que o direito tutelado por esta norma possui, como exemplo, temos na nossa Constituição Federal o caso das cláusulas pétreas. O artigo 60, que trata das emendas à Constituição, veda em seu parágrafo 4º, a deliberação que pretenda abolir a forma federativa do Estado, o voto direto, secreto, universal e periódico, a separação dos Poderes, bem como os direitos e garantias fundamentais, ou seja, este artigo estipula quais são as cláusulas pétreas, imutáveis em nosso ordenamento constitucional. Contudo, para que esta norma venha a ser efetiva, ainda que não esteja expresso no texto, é implícito que o próprio parágrafo 4º, do artigo 60 da Constituição Federal possua natureza de cláusula pétrea. Da mesma forma, ocorre com os direitos sociais em relação aos direitos humanos de primeira dimensão.

Considerando, que os princípios de direitos humanos de primeira geração possuem um caráter prioritário garantido dentro do ordenamento jurídico, e que a sua existência está condicionada aos direitos sociais, é natural o movimento que leva os direitos sociais a assimilarem essa natureza, sendo, portanto, integrados à categoria de direitos fundamentais, dispondo assim dos mesmos benefícios de garantia e proteção dos direitos humanos de primeira geração. Esse mesmo processo lógico foi responsável pela construção daqueles direitos que são reunidos como uma terceira dimensão, chamados de direitos de solidariedade, que correspondem, por exemplo, ao meio ambiente equilibrado, à paz mundial, à autodeterminação dos povos, entre outros, que, em suma, são todos aqueles que possuem como característica a coletividade, a titularidade difusa. Todos esses direitos constituem elementos essenciais para a garantia das liberdades públicas, para a garantia dos direitos políticos, bem como para a garantia dos direitos sociais, econômicos e culturais.

6- Os Direitos Fundamentais Sociais na Constituição Brasileira

Analisado os processos históricos que produziram os direitos humanos, contextualizando e compreendendo a natureza e origem dos direitos sociais em um panorama global, veremos em seguida, que a nossa atual Constituição também foi produzida dentro de um contexto histórico próprio, sendo necessária para a compreensão da estruturação positiva do direito ao lazer, a compreensão do nosso atual ordenamento constitucional, com enfoque na trajetória dos direitos sociais. Como visto, a luta pelos direitos sociais se iniciou em razão da industrialização ocorrida por volta do período do fim do século XIX e início do século XX, que foi responsável por graves crises econômicas e sociais. A resposta a todas essas transformações foi a disseminação de doutrinas socialistas, de movimentos reivindicatórios, entre outras manifestações da classe operária e civil. O primeiro ordenamento constitucional a reconhecer e dispor sobre a ordem social e econômica, isto é, o primeiro ordenamento a se preocupar de forma expressa com as questões sociais foi o do México, em 31/01/1917. Como ressalta Alexandre de Moraes, em verdade, esse diploma garantia "direitos individuais com fortes tendências sociais"[8].

Nesse momento, surgiram disposições trabalhistas no sentido de limitar a prestação de serviço por tempo determinado em lei, proibição de coação pessoal do trabalhador em caso de descumprimento de contrato (art. 5º)[9], bem como sociais, como a obrigatoriedade da educação escolar primária (art. 3º, VI)[10] e a gratuidade pela educação prestada pelo Estado (art. 3º, VII)[11]. Embora a constituição mexicana tenha sido a primeira a se manifestar em relação aos direitos sociais, a Constituição de Weimar de 11/08/1919 (Alemanha) adquiriu um maior destaque no aspecto internacional, sendo considerada a Constituição matriz do constitucionalismo social, um aspecto que se deve à apresentação de uma série de dispositivos voltados para a proteção e garantia da boa qualidade de vida dos trabalhadores. Segundo Beatris Francisca Chemin,

(...) a Constituição de Weimar, ao inserir os direitos sociais, contemplou o direito do cidadão ao emprego, à educação e à proteção contra os riscos de uma sociedade industrial, estabelecendo também, os direitos de primeira geração, como, por exemplo, o sufrágio universal.[12]

No Brasil, a primeira Constituição que trouxe em suas disposições direitos referentes à proteção do trabalhador e a tutela da ordem social e econômica, foi a carta constitucional de 16/07/1934, notadamente inspirada na citada Constituição de Weimar. Esta constituição é considerada bem avançada para a época, bem como foi marcada por sua curta vigência, de apenas 3 anos. Em relação aos direitos de primeira geração, ela foi responsável por trazer o instituto do Mandado de Segurança, por estipular a celeridade nos serviços públicos, além de demonstrar interesse na tutela de diversos grupos sociais, como os imigrantes e os silvícolas, por exemplo. Em relação aos direitos sociais, uma de suas maiores contribuições foi realizada na esfera do Direito Previdenciário, através da proteção das pessoas que fossem vítimas de acidentes do trabalho, um problema grave e corrente na época, criando até mesmo auto-limitações, pois determinava que o Estado deveria realizar rapidamente o pagamento do benefício. O aspecto social nesta Lei Constitucional era marcante e se manifestava até mesmo na estrutura política de composição dos membros do Poder Legislativo, uma vez que estabelecia em seu artigo 23, caput e parágrafo 3º, a existência de deputados corporativos, representantes dos setores do lavor e da pecuária, das indústrias, do comércio, dos transportes, bem como dos profissionais liberais e dos funcionários públicos.

Destaca Chemin, que muitas das normas da Constituição de 1934 vieram diretamente da influência da Constituição de Weimar[13], a subordinação do direito de propriedade ao interesse social ou coletivo, a ordem econômica e social, a instituição da Justiça do Trabalho,o salário mínimo, as férias anuais do trabalhador obrigatoriamente remuneradas, a indenização ao trabalhador dispensado e sem justa causa, o amparo à maternidade e à infância, o socorro às famílias de prole numerosa, a colocação da família, da educação e da cultura debaixo da proteção especial do Estado. Em seguida, no Brasil, foi instaurada uma nova ordem constitucional em 10/11/1937, com forte influência da Carta del Lavoro de 1927, e na Constituição Polonesa de 1935[14], que tinha como característica o regime de governo autoritarista. Este aspecto se manifestava através de criação de penas de morte contra atos atentatórios à soberania, a existência e a segurança do Estado[15]. No aspecto dos direitos sociais, esta Constituição tratou no item da Ordem Econômica, de contratos coletivos de trabalho, de licença anual remunerada, de indenização proporcional aos anos de serviço em caso de demissão imotivada do trabalhador, da limitação da jornada de trabalho em oito horas, além de criar a proibição ao trabalho de menores de catorze anos, seguros de acidentes do trabalho, entre outros[16].

Em seguida, tivemos em nossa história a Constituição de 18/09/1946, que teve um papel restaurador dos direitos sociais, resgatando muitos aspectos da Constituição de 1934, estabelecendo no seu artigo 157, diversos direitos sociais relativos aos trabalhadores e empregados, além de prever títulos destinados à família, educação e cultura[17]. Em referência aos direitos dos trabalhadores, podemos destacar a participação obrigatória e direta nos lucros

da empresa, uma novidade inserida nesta época. A Constituição de 24/01/1967 tinha como prioridade a indústria, o comércio e o desenvolvimento econômico, mas também trouxe previsões sobre melhorias das condições sociais dos trabalhadores. Em conjunto, devemos citar a Emenda Constitucional n. 1 de 17/10/1969, que alterou profundamente a constituição de 1967, mas que no aspecto dos direitos sociais, praticamente manteve a norma anterior referente aos direitos trabalhistas, em seu artigo 167[18].

Por fim, chegamos à nossa atual Constituição Federal, aprovada em 05/07/1988, que tem como característica a promoção do Estado Social. Ela é fruto do fim de uma época de repressão aos direitos individuais, sendo possível encontrar em seu texto diversas disposições de caráter antiestado, antigoverno, que foram desta forma dispostos, para que possuíssem uma tutela que privilegiasse o indivíduo perante o poder do Estado. Considerando que esta Constituição foi formulada no sentido de proteger o indivíduo, uma grande importância foi dada aos Direitos Sociais. Nos artigos 7º a 11, encontramos um extenso rol de direitos trabalhistas, dispondo, inclusive sobre particularidades (ex. art. 7º, incisos XVII, XVIII, XXI, XXV, entre outros), o que demonstra a preocupação do legislador em garantir tais direitos de forma concreta, fugindo da abstração e generalidade, características das cartas constitucionais. Uma curiosidade que podemos observar em relação aos direitos sociais nessa Constituição é que, apesar de existir o capítulo "Dos Direitos Sociais" inserido no do Título II, que trata "Dos Direitos e Garantias Fundamentais", nessa parte, encontramos apenas direitos trabalhistas, com exceção do artigo 6º, que trata genericamente da exposição de quais são os direitos sociais tutelados nessa Constituição. A tutela específica desses direitos é encontrada somente no final da Constituição, nos artigos 193 a 232, o que pode induzir a um erro na questão valorativa desses direitos, uma vez que os direitos sociais, previstos nesses artigos, apesar de se encontrarem no final do texto, também são direitos fundamentais, tanto quanto aqueles descritos no artigo 7º. Para que se fique esclarecido, destaca-se que essas normas possuem exatamente a mesma força e importância do artigo 5º, por exemplo. Ainda que se entenda que isso ocorre porque o Estado necessita primeiro estabelecer um sistema de arrecadação, de competências, para somente depois realizar a prestação social, pode se dizer que a configuração da disposição dos direitos sociais na Constituição de 1988, não observou uma técnica legislativa apropriada. Em relação ao conteúdo material, um aspecto importante dos direitos sociais é a sua íntima relação com a igualdade. Segundo José Afonso da Silva:

"os direitos sociais, como dimensão dos direitos fundamentais do homem, são prestações positivas proporcionadas pelo Estado direta ou indiretamente, enunciadas em normas constitucionais, que possibilitam melhores condições de vida aos mais fracos, direitos que tendem a realizar a igualização de situações sociais desiguais. São, portanto, direitos que se ligam ao direito de igualdade."[19]

Além de prezar pela igualdade, uma outra orientação trazida pela Carta de 88 é a forma da interpretação dos seus dispositivos. A atual Constituição estabelece, em seus primeiros artigos, quais são os seus princípios fundamentais, o que significa que qualquer norma contida na Constituição deve seguir uma orientação interpretativa, inclusive no tocante aos direitos sociais.

Preceitua o artigo 1º, que a República Federativa do Brasil tem como fundamento, segundo o inciso III, a dignidade da pessoa humana. Isso significa que todas as disposições de direitos sociais devem ser interpretadas de acordo com vista a promover a dignidade da pessoa humana.

Quando a Constituição trata de salário mínimo, redução de jornada de trabalho, décimo terceiro salário, férias, aviso prévio, entre outros, em verdade, está tentando se proteger e garantir a dignidade da pessoa humana. Nesse ponto é que o direito ao lazer, o direito ao tempo livre, se torna uma das peças principais na tutela dos direitos sociais, uma vez que não se tenta abolir o trabalho, mas sim imprimir a dignidade humana em suas relações.

Considerações Finais

As oportunidades para exposição, discurso e debate de ideáis tem importante significado e devem propiciar o progresso e desenvolvimiento do Direito e da sociedade. É por esse motivo que entende-se por oportuno apresentar a idéia segundo a qual o Direito brasileiro assegura o Direito a Cultura e ao Lazer como direito fundamental.

Frente a todas as considerações apresentadas, e com respaldo nos fundamentos teóricos aquí lembrados, no sentido de embasar a teoria, é forçoso concluir que a cultura e o lazer são realmente direitos fundamentais. Ora, sendo a cultura um elemento essencial para se alcançar o direito a igualdade, e sendo o lazer um vetor significativo na vida social e para o bem estar do ser humano, tais direitos não podem ser considerados de outra forma, senão como um direito fundamental.

Neste sentido o Poder Público não pode simplesmente permitir atividades culturais ou de lazer, com o objetivo único de respeitar o quanto disposto na Constituição Brasileira e demais legislações, mas, deve, obrigatoriamente, promover políticas publicas no sentido de que todos efetivamente tenham acesso a cultura e ao lazer.

Imperioso, portanto, que o Estado reconheça definitivamente o direito a cultura e ao lazer como um direito fundamental e que sejam promovidas todas as ações que permitam a consagração definitiva desses direitos.

Bibliografía

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HOBBES, Thomas. Leviatã. Ed. Martin Claret: São Paulo, 2006,

MARX, Karl. A Questão Judaica apud TRINDADE, José Damião de Lima. Anotações sobre a história social dos direitos humanos. In: Direitos humanos: construção da liberdade e da igualdade. Série Estudos, n. 11, outubro de 1998. São Paulo: Centro de Estudos da Procuradoria Geral do Estado, 1998,

MARTINS, Sérgio Pinto. Direito do trabalho. 17. ed. São Paulo: Atlas, 2003

MORAES, Alexandre de. Direitos humanos fundamentais. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2003

SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 4. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004,

SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. 15. ed. São Paulo: alheiros, 1998




[1] Graduado em Direito, Pós graduado em Docência Universitária pelo UNASP - Centro Universitário Adventista de São Paulo, Mestrando em Direito pela Universidade Metodista de Piracicaba, vinculado ao Núcleo de pesquisa de Estudos de Direitos Fundamentais e da Cidadania (NEDFC). Professor Universitário e Advogado. e-mail - [email protected][email protected] – Tel. 19 – 9800-9553

[2]HOBBES, Thomas. Leviatã. Ed. Martin Claret: São Paulo, 2006, p.132.

[3]Gênesis 1,26.

[4]Mateus 5,21-22, 38-39 e 43-44.

[5]MARX, Karl. A Questão Judaica apud TRINDADE, José Damião de Lima. Anotações sobre a história social dos direitos humanos. In: Direitos humanos: construção da liberdade e da igualdade. Série Estudos, n. 11, outubro de 1998. São Paulo: Centro de Estudos da Procuradoria Geral do Estado, 1998, p. 159.

[6]Em referencia a nota n. 1, destaca-se que, ao contrário do professor, que é contrário ao termo "geração" por supostamente possuir um caráter substitutivo, entende-se aqui de forma diversa, uma vez que adota-se a posição de que a expressão possui um aspecto meramente didático, utilizado para se estabelecer a ordem histórica de criação desses blocos de direitos.

[7]SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 4. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004, p. 53.

[8]MORAES, Alexandre de. Direitos humanos fundamentais. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2003, p. 30.

[9]MORAES, Alexandre de. Direitos humanos fundamentais. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2003, p. 30.

[10]MORAES, Alexandre de. Direitos humanos fundamentais. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2003, p. 30.

[11]MORAES, Alexandre de. Direitos humanos fundamentais. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2003, p. 30.

[12]CHEMIN, Beatris Francisca. Lazer e Constituição – Uma perspectiva do tempo livre na vida do (trabalhador) brasileiro. Curitiba: Juruá, 2002, p. 86.

[13]CHEMIN, Beatris Francisca. Lazer e Constituição – Uma perspectiva do tempo livre na vida do (trabalhador) brasileiro. Curitiba: Juruá, 2002, p. 87.

[14]MARTINS, Sérgio Pinto. Direito do trabalho. 17. ed. São Paulo: Atlas, 2003, p. 39.

[15]MORAES, Alexandre de. Direitos humanos fundamentais. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2003, p. 33.

[16]CHEMIN, Beatris Francisca. Lazer e Constituição – Uma perspectiva do tempo livre na vida do (trabalhador) brasileiro. Curitiba: Juruá, 2002, p. 87.

[17]MORAES, Alexandre de. Direitos humanos fundamentais. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2003, p. 33.

[18]MARTINS, Sérgio Pinto. Direito do trabalho. 17. ed. São Paulo: Atlas, 2003, p. 40.

[19]SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. 15. ed. São Paulo: alheiros, 1998, p. 289.