1. Introdução à nova interpretação crítica proposta por Gaston Bachelard.

Produzir uma obra literária sugere um envolvimento criativo muito maior do que pode parecer, pois ela está sempre em processo de renovação e independência. Uma obra que se preze não se deixa classificar no padrão, já que ela possui suas próprias regras, de acordo com o desejo de originalidade. Diante de tal fato, é impossível estabelecer limitações, preconceitos, tendências, escolas literárias, conceitos, etc.

A crítica literária tradicional não dá conta disso, pois prefere basear-se no modelo clássico, aristotélico, de enquadramento em modelos e normas, ou seja, ela é ultrapassada. Por isso, Gaston Bachelard sugere uma renovação radical no estudo literário, através da contribuição da revolução epistemológica na ciência, com o Novo Espírito Científico, fundamentado numa filosofia do NÃO: uma geometria não-euclidiana, uma física não-newtoniana, uma razão não-kantiana, uma epistemologia não-cartesiana, isto é, a dissociação do comum, para dar chance à interpretações inéditas e inauditas.

Além do Novo Espírito Científico, Bachelard propõe o Novo Espírito Literário, com a Estética Concreta, ou seja, a concriação da criação dos artistas, em que o próprio artista surpreende-se com o resultado da sua obra, seguindo todas as imagens dela, pura e simplesmente pela imaginação criadora. O mais importante é a noção de imaginação material e dinâmica; a imaginação ocupando papel central; o devaneio como a manifestação da alma do homem; e a imagem poética como único objeto verdadeiramente sensível, concreto e material de investigação literária.

Para Bachelard, é impossível escrever sem sonhar. O escritor é criado pela obra; o poeta é jogado pelo jogo do seu poetar; o sujeito e o objeto engendram-se mutuamente num único e mesmo ato: não há um sem o outro. Para haver criação, é necessária a perpétua tensão dos contrários. A poesia é uma pedagogia, em que todo o psiquismo tem que se alimentar do que está sendo lido, não podendo lê-la como se fosse um tratado científico.

Com esse enfoque, a Literatura é uma fantasia, isto é, etimologicamente, o espaço em que o autor deixa os seus fantasmas, sendo esses camuflados pelas palavras. Há sempre algo além do raso, fazendo com que o leitor aprofunde-se no texto, e goste do que lê. O gosto pela leitura e, conseqüentemente, pela Literatura só se dá quando há um desvendamento, quando o texto permite que o leitor o adivinhe.

De acordo com as mais diversas imagens, o texto literário é um crepúsculo: não escureceu ainda, mas também não clareou. Um texto bom é sempre reflexivo, já que a preocupação do autor ao escrevê-lo é criar o desequilíbrio no leitor, desalojando-o e acolhendo-o ao mesmo tempo. Se o autor abre mão disso, preocupando-se em agradar e atingir ao que a crítica tradicional espera, não se pode dizer que há uma criação literária.

Portanto, a nova crítica literária proposta por Bachelard é um modo de ler e interpretar textos artísticos assumindo uma atividade poético-pensante permanente. É uma hermenêutica da alma, em que se deve desvelar as imagens e desocultar o próprio ser, em prol do imaginário, do translógico, do supra-real; contra o cartesianismo, o positivismo, o logicismo, o dogmatismo, a forma estagnada e conformada.

  1. Gaston Bachelard e a Estética Concreta, com o Novo Espírito Científico e o Novo Espírito Literário.

O Novo Espírito Científico traz dois Princípios Básicos: o Princípio da Complementariedade - a substituição da unidade substancial da metafísica pela unidade relacional da microfísica - e o Princípio da Definição Operatória dos Observáveis – a hipótese científica deixa de ser objeto de observação e torna-se projeto de matematização do real.

De acordo com o primeiro princípio, não existe unidade: ela dialetiza-se, pois as contraposições polares convertem-se em oposições complementares, rompendo com a concepção lógica do real. Ato e ser, onda e corpúsculo, matéria e energia fundem-se numa só substância, interagindo no espaço e no tempo. Qualquer ato de criação necessita de uma interação dialética e do intercâmbio dialógico: a matéria é dinâmica, transforma a energia e, ao mesmo tempo, a energia cria a matéria. Há uma vontade de desmaterializar o que é material, principalmente a linguagem, que cria palavras para definir sentimentos indefiníveis como quem coloca etiquetas em objetos para dar ordem ao caos. Assim, percebe-se que a unidade, na realidade, não é una, nem estática, mas sim dinâmica, ambígua, e dialética.

O segundo princípio demonstra que o crítico não deve observar para saber, mas sim saber para observar, havendo uma ruptura com a ciência do século XIX. A ciência contemporânea exige que os objetos sejam representados por metáforas, e a realidade esteja escondida atrás delas. O númeno imperceptível esconde-se por trás do fenômeno aparente; tudo se camufla: ao invés de revelar-se com facilidade, aprofunda-se cada vez mais. Nada mais se descreve; tudo acontece, pode-se pensar no que não existe; não há razão absoluta, pois o racionalismo multiplica-se, instituindo o Surracionalismo dialético: a ordem não adianta, pois sempre haverá o caos para rompê-la; só do erro surge a idéia nova, por isso é preciso que se fracasse, que se corra riscos. É preciso ir além do que já foi estabelecido, ao invés de só confirmar o que já se sabe; assim, diante dessa tensão racional, ocorre uma incessante promoção espiritual.

Através da perspectiva do Surracionalismo dialético, Bachelard propõe uma nova crítica: o Novo Espírito Literário. Interpretar não é seguir uma cartilha, nem dizer o que já foi dito pelo autor; uma interpretação que se preze sempre busca a novidade: é o ir e vir contínuo do escuro para o claro, e vice-versa. A Literatura contemporânea exige a obra em si – o texto- juntamente com a reflexão crítica – o metatexto. Assim, é necessária uma crítica lúdica e inventiva, de acordo com a Hermenêutica, que é a única capacidade de interpretar fazendo justiça à obra.

A nova possibilidade de interpretação proposta por Bachelard abarca diversos pontos, como o método exegético, que busca a leitura plural, dinâmica, descontínua, em constante mudança; a viagem da reflexão e da sensibilidade, em que a obra suscita o pensamento, transformando o leitor; a compreensão da obra de arte criativa em seu esforço de ruptura, isto é, o leitor deve admitir que ainda tem muito a aprender, percebendo a originalidade artística do escritor, colocando-se em papel de cúmplice, fazendo a obra junto do autor, ao invés de apenas contemplá-la passivamente. Assim, um livro mostra-se como um aparelho de indução psíquica, em que o artista e intérprete transformam-se existencialmente ao longo do percurso da obra.

Bachelard afirma que a estética concreta é a reflexão sobre a obra, que tem por ponto de partida a escavação do mais profundo do imaginário. A imaginação é responsável por engendrar o próprio ser, não formando imagens, mas sim as deformando, a fim de transformar o existente e dar possibilidade ao que ainda não foi dito, porque não foi percebido de uma outra maneira, além da comum. Deve-se privilegiar a beleza concreta, material e dinâmica, ao invés da beleza formal, perfeita e abstrata. Primeiramente, o escritor identifica-se existencialmente com uma matéria que vai comandar a forma, não havendo mais análise das formas formadas, mas sim a Ritmanálise da formação e deformação das formas, ou seja, a capacidade de aprender, acompanhar e valorizar o uno e o múltiplo, transcendendo a lógica racional.

Imaginar é ausentar-se, em busca de uma vida nova, de um acréscimo na vida de alguém, ao invés da mesmice. É superar-se, entendendo que o devaneio faz parte do homem, já que é um silêncio capaz de condicionar a expressão das profundezas da alma, ocupando o primeiro lugar na formação do ser meditativo.

A imaginação material e dinâmica é seduzida por aquilo que está presente nas profundezas do ser, procurando descobrir as imagens que estão ocultas entre as imagens que se revelam. Desenvolve-se ao longo de um eixo vertical, que admite dois vetores com sentidos opostos: um vetor para baixo, em que a matéria aparece como um mistério, e um vetor para cima, em que a matéria aparece como um milagre, assim como a imagem da árvore, que para subir ao céu quase milagrosamente, precisa de raízes bem profundas, misteriosas no universo subterrâneo. Desse modo, há a substituição da imaginação estática e inerte que rege o classicismo artístico.

Como já foi dito anteriormente, o poeta deve ter uma afinidade natural no momento em que elege a matéria que irá trabalhar, havendo uma identificação existencial, em que ele poderá fundir todas as imagens criadoras. Essas imagens brotam quase espontaneamente, juntando o consciente com o inconsciente. Desse modo, há uma isomorfia entre as profundezas da matéria e os tesouros da alma humana.

Nesse sentido, a lei da Isomorfia das Imagens descobre a metáfora axiomática que arquiteta todo o enredo imagético de uma obra, permitindo retraçar concriativamente a atividade formativa e plasmadora da imaginação material e dinâmica, e elucidando ritmanaliticamente a operação essencialmente dual e ambivalente da imagem poética.

  1. A poética dos quatro elementos cósmicos.

Bachelard utiliza-se da lei da Isomorfia das Imagens para estabelecer o verdadeiro princípio poético do pensamento. Essa lei permite à Bachelard escrever as poéticas dos quatro elementos, reunindo as poéticas e seus poetas, através da detecção de imagens-princípios. Além disso, ela autoriza que se estudem os textos literários como diagramas imagéticos, configurados pela sintaxe das imagens.

A água é o elemento efêmero e transitório. O homem transforma-se e deforma-se, constituindo as seguintes isomorfias: homem/rio; tempo/águas; vida/viagem. A vida humana é uma viagem no passar do tempo, assim como as águas de um rio.

O sonhador da água está diretamente relacionado com a morte, porque a poesia da água é a metapoética da morte. É no mar que se dá o Complexo de Caronte: a barca de Caronte conduz os mortos ao inferno, mostrando a faceta macabra e horripilante da morte, em que os próprios mortos temem morrer. Além do Complexo de Caronte, tem-se o Complexo de Ofélia, em que a morte é bela, sedutora, e convidativa.

A beleza só é possível mediante a morte, e a morte só é bela mediante a água. Superficialmente, tem-se o reflexo ideal que celebra a morte do objeto real: a beira d'água é um espelho que seduz o ser a intranhar-se; enquanto que, profundamente, tem-se na água um sepulcro movente, que oferece um abrigo ao imenso sofrimento humano, sendo um convite inadiável a morrer.

O ar é o elemento da leveza e da liberdade. Traduz-se no ímpeto ascensional, com a Ritmanálise do vôo e da queda (os cimos do espírito e os abismos da matéria): a vontade louca de subir é tensionada pelo temor de cair; o prestígio do vôo é ameaçado pela vertigem da queda. O ser humano luta o tempo todo contra a lei da gravidade, já que só assume a posição horizontal quando morre, por isso não é à toa que a primeira conquista humana é a verticalidade – o aprender a andar. O próprio sol ascende e desce todos os dias, estimulando o homem a renovar-se a cada amanhecer.

O sonhador do ar vê, sente e exprime a vertigem da altura: a zonzeira é a consciência da altura desmedida. A vertigem provoca-se para melhor fruir o gozo e o êxtase de superá-la. Tudo se reúne e se enriquece ao subir. A elevação e a libertação são os elementos motivadores originários. O aéreo germina para sonhar, como a árvore ctônico-urânica, que é a imagem primordial da verticalidade ambivalente do ar.

A terra é o elemento que harmoniza dialeticamente a germinação descensional e a expansão ascensional: o expandir-se em comicidade e o recolher-se em intimidade; o mostrar-se e o ocultar-se, o abrir (se) e o fechar (se); o emergir e o imergir.

Terrestremente, a gravidade é um fardo na alma. Ela revela-se como uma força que se abate contra o homem. É por causa da existência dela que o vôo torna-se um mérito. Quanto mais existe essa força sobre nós, maior é a vontade de superá-la. É preciso evocar imagens aéreas para operar o peso psíquico das imagens terrestres. A volúpia do abismo é o impulso do vôo: quanto mais fulminante for a descida, mas impetuosa será a subida. A vertigem do baixo sustenta e garante a vertigem do alto.

Existe um nexo de solidariedade orgânica entre a leveza e o peso. A leveza não é tão leve se não se evocar o peso da qual se livrou. O leve é o pesado que se aliviou, e o pesado é o leve que se sobrecarregou. A decisão moral fundamental da vida é aliviar-se ou sobrecarregar-se. Estamos decididos a inventar a vida ou a deixá-la decidir por nós, pois tudo é feito de escolhas.

O Complexo de Atlas mostra a vivência do esmagamento e a resistência a ele, a vontade de aprumo. Essa dialética de lassidão e do esforço realiza poeticamente o enfrentamento das forças humanas e das forças cósmicas. O desafio do sonhador terrestre, portanto, é vencer a gravidade, superar barreiras, civilizar o corpo e o espírito, tornar-se senhor do cosmos, ou seja, emancipar-se da condição de ínfimo partícipe na gênese do mundo e heroicizar-se.

A terra é uma interioridade profunda e misteriosa. Ela exige a intimidade, em que seu sonhador quer ver outra coisa, ver além, superar o que já foi descoberto. Através da imaginação material e dinâmica, há a possibilidade de acesso ao oculto, à escuridão interior das coisas. A natureza gosta de aparecer e de desaparecer; é um desvelar auto-velante, uma força de doação permanente. Esconder é uma força primária da vida, é uma necessidade legada à constituição de reservas, pois o interior tem que preservar o seu mistério para haver encantamento.

A imaginação pratica uma química das profundidades: sob a substância, a molécula; dentro da molécula, o átomo; no átomo, o núcleo; no núcleo, as mil partículas; descendo sempre mais fundo, remexendo mais intimamente. Através do trabalho onírico no interior das coisas, é possível dirigir-se à raiz sonhadora das palavras. Pela linguagem, a imaginação reativa todas as duplicidades, esquecidas ou negadas; a unidade substancial é rompida por princípios antagônicos (um fogo frio, uma água seca, um sol negro), em que o adjetivo contradiz o substantivo. É isso que a crítica literária precisa fazer, deixando para trás os filósofos, e praticando a Ritmanálise dos valores oníricos.

A imagem primordial do universo terrestre é a CASA com porão e sótão, porque reúne as duas disposições contrárias que se ritmanalisam na imaginação da terra: a psicologia do contra (vontade) e a fenomenologia do dentro (repouso). O sótão é o ninho, o aconchego que traz precariedade e segurança; o corpo é o ventre, o repouso e proteção; o porão é o labirinto, recintos das trevas e caminhos para a luz.

O fogo é o elemento material da transmutação radical. O desejo primordial do sonhador do fogo é a mudança categônica. Tem por dialética básica ser o ponto de confluência das duas valorações opostas de Bem e Mal: o fogo é casto e lúbrico, arde no inferno e brilha no céu.

A completa desintegração pelas chamas é a condição sine qua non para o renascimento e a ressurreição. Através do Complexo de Empídocles, o fogo é agente das transmutações, em que a morte total pelo fogo é garantia de que se parte íntegro para outra vida. Já, através do Complexo de Novalis, o calor íntimo é o bem supremo que só se concede ao ser eleito.

A luz é o motor dinâmico que determina o ser vertical e transcendente do fogo. O desafio do sonhador do fogo é impor-se frente à horizontalidade da vida, incansavelmente reacendendo a vontade de inflamar-se, de entusiasmar-se além de si mesmo. O ser só liberta-se quando se extingue para re-generar-se.

  1. Edgar Allan Poe e a poética da água, em "A Queda da Casa de Usher".

A Estética Concreta de Bachelard traz contribuições significativas ao analisar a obra de Edgar Allan Poe. Através da imaginação material e dinâmica, é possível mapear o universo fantástico de Poe, seus mistérios, personagens sombrios, e elementos sobrenaturais.

Poe, um poeta dotado da unidade da imaginação, está além do sentido lógico e consciente da psicologia. A sua imaginação oculta uma substância privilegiada – a água - que determina a unidade e a hierarquia da expressão. Essa água é especial, mais profunda, mais pesada, mais morta e mais sonolenta do que qualquer outra água parada na natureza.

O estudo da poesia em Poe admite a fixação das imagens através do devaneio de cada uma delas, isto é, de suas intimidades. Nesse sentido, o destino das imagens aquáticas segue o mesmo destino do devaneio principal da morte. A vida é descrita pela morte, como um repouso eterno, que sepulta toda a desgraça humana; uma vida reprimida, que recebe constantemente a morte em sua interioridade.

A beleza é a causa da morte, enquanto a água é o suporte da morte. Só a água pode morrer, ficar estagnada, conservar seus reflexos e, ao mesmo tempo, dar beleza a todas as sombras. Então, para compreender Poe, é necessário fazer a síntese desse tríptico sinistro de Beleza, Morte e Água.

A água primitiva é clara e, aos poucos, vai escurecendo, à medida que absorve toda dor e sofrimento, toda coloração negra e pavorosa. A água viva que surge está sempre pronta a receber a morte; nunca ocorre o contrário: nunca a água pesada torna-se leve, ou a escura faz-se clara, já que o devaneio inicia-se diante da água limpa, cristalina, que admite uma pluralidade de reflexos.

Essa água inicialmente limpa torna-se triste e sombria, transmitindo lamentos fúnebres. Tudo se transforma em um mundo submerso, em que a superfície não tem mais importância, pois o que vem comandar é a profundidade, capaz de acrescentar, fazer o sujeito tomar consciência de sua interioridade. Assim, a beleza ativa da água está no seu volume, em que há uma inversão: a água que antes era tomada passivamente, agora toma, bebe, engole, ou seja, é humanizada.

Referindo-se à "Queda da Casa de Usher", pode-se perceber que o conto é permeado de imagens assustadoras, criando um clima de suspense e terror no próprio leitor. O enredo imagético caracteriza um casal de irmãos gêmeos psicologicamente decadentes que moram em uma mansão de atmosfera pesada com um lago fétido à volta. Todas as imagens mostram uma queda, em que a da casa presente no título do conto é a menos importante.

O conto narra a experiência de um homem que, atendendo ao chamado de seu amigo de infância (Roderick Usher), vai até a casa dele. Porém, ao chegar nela, logo é tomado por uma sensação desagradável, de extrema melancolia e opressão, sem saber o porquê. Do lado externo da casa, as imagens fortíssimas invadem o seu espírito: frios muros; janelas que se assemelhavam a olhos vazios; troncos apodrecidos, completa depressão de almas; negro e sombrio lago, associados ao outono escuro, sombrio, silencioso; com nuvens opressivamente baixas. Além disso, a casa possuía uma fissura em zig zag que ia desde o teto até a base, e perdia-se dentro das águas do lago.

Do lado interno da casa, as imagens também causam um aperto no coração: corredores escuros e intrincados; excessiva antigüidade; descoloração; sombrias tapeçarias nas paredes; negrura de ébano dos assoalhos; fantasmagóricos troféus; mobiliário incômodo.

O Senhor Usher desejava a companhia de seu amigo de infância para ajudar a aliviar sua doença. Assim como sua casa, possuía uma aparência repugnante: tez cadavérica; olhos líquidos e luminosos; palidez espectral; seus cabelos eram da textura da teia de aranha, de modo que flutuavam espectralmente ao redor da cabeça.

Sua doença era uma agudeza mórbida dos sentidos, pois não conseguia comer nada muito degustável; não podia usar qualquer tipo de tecido; não podia sentir aromas fortes; sua visão só suportava a fraca intensidade da luz; alguns sons lhe causavam horror. Em outras palavras, morreria se tivesse um ataque de vida.

Essa tristeza interna era somada a outros fatores: Usher vinha de uma família que estava em extinção. Se sua irmã - Lady Madeline - morresse, ele seria o único membro de sua família; o que não estava longe de acontecer, pois ela possuía uma apatia constante, um esgotamento gradual de sua pessoa, e ataques freqüentes de catalepsia. Enquanto seu irmão era um vivo-morto, ela era uma morta-viva, e ambos ligavam-se por afinidades sobrenaturais.Em suma, ela reunia beleza, juventude e morte.

Todos os esforços do amigo eram em vão. Não havia meio de alegrar aquele espírito, pois tudo irradiava tristeza. Havia um vapor pestilento e místico, uma emanação gasosa que pairava sobre a casa e a envolvia numa mortalha luminosa e bem visível, que só serviam para aprofundar o estado de total depressão que em tudo se abatia.

Esse vapor pestilento e místico corresponde a uma isomorfia das imagens, pois é ele que arquiteta todo o enredo imagético do conto, formando e deformando as imagens matérias e dinâmicas, constituindo assim, a Ritmanálise, como pode ser observado, por exemplo, em: um ar grave de irremissível pesar que permeava tudo; a mente de Usher expelia trevas numa ininterrupta radiação de pesar; a sensibilidade de todas as coisas propiciara a condensação de uma atmosfera própria; a emanação gasosa envolvia a casa como uma mortalha; o lago exalava um miasma pútrido.

O jogo macabro de reflexos da imagem poética da água faz com que a impregnação letal cause um efeito sobre o narrador e, ao mesmo tempo, sobre o leitor. As imagens remodeladas reduplicam a impressão horripilante, acentuando-as com a casa e os arredores que são propagados tristemente no reflexo do lago.

Tudo se encontra em perfeita consonância; tudo provoca e é provocado: a situação da casa reflete na família e vice-versa; a aridez do ambiente reflete na esterilidade da família e vice-versa; ou seja, a decadência da família provoca e sofre a decadência da casa; Usher e seu amigo têm medo e essa consciência intensifica o medo; o homem e o mundo impregnam-se mutualmente de desolação. Nesse sentido, é importante ressaltar que há uma relação de causa e efeito. Um homem inerte, uma casa imóvel, uma natureza hirta, uma vida estagnada e um existir abortado só podem ter como destino o sepulcro das águas dormentes.

Lady Madeline recém acordada, ressurgida da catalepsia, morre de vez e morre também o irmão. Os dois morrem juntos e a casa morre junto com eles, pois desmorona e é fechada pelo lago. A voz de mil águas tumultuosas e profundas chama a casa, portanto, a imagem ideal engolfa e aniquila o objeto real.

Todas as imagens aqui presentes são, como já foi dito anteriormente, imagens de uma água pesada e escura. A contaminação pela atmosfera mórbida é inevitável, pois tudo contamina e é contaminado, tudo paralisa e é paralisado, com o hálito pútrido que imobiliza tudo. São, portanto, imagens descensionais, em que um homem acabrunhado pelo pesar encontra-se num mundo que desce. Tal fato é sugerido pelas imagens da fissura na fachada da casa, da teia de aranha, da família Usher em linha hereditária descensional ; e da imagem da própria queda da casa.

Pode-se concluir que, em Edgar Allan Poe, as imagens são dinâmicas, pois nada é o que é, mas sim o que se torna, o que pode vir a ser, através do devaneio do leitor, que acompanha o devaneio do escritor. Um leitor realista e descomprometido pode ver aqui apenas uma imagem desgastada, pois não foi além, não desfrutou da multiplicidade de reflexos permitidos pela água. Contemplar a imagem da água é escoar-se, dissolver-se, morrer, assim como no Complexo de Ofélia, pois a água fornece o símbolo de uma vida especial atraída por uma morte especial.

É necessário aceitar os reflexos da água como um convite onírico, sentindo toda a dinâmica do sonho, todas as imagens do poeta, toda a viagem e estranheza, compartilhando pelo inconsciente de toda a criação literária, fazendo um verdadeiro suicídio permanente.

A poesia é uma constante psicanálise, em que palavras organizam o caos interno. O verdadeiro fenômeno literário não é dado pelo autor, nem pela obra, mas sim pelo leitor, que constrói uma obra que nunca será editada, pois ele é o responsável por tomar a palavra. Esse ato não deve ser feito por mera fruição, mas sim com consciência de querer acrescentar, compartilhar, crescer, transformar, aprender, conhecer, e sonhar.

Fazer Literatura não é parafrasear. Não interessa dizer o que o autor já disse, como se fosse um boneco de ventríloquo do pensamento alheio, mas sim perceber como ele disse; de que modo o sentido expande-se e dá materialidade ao texto. Se houvesse somente paráfrases, uma leitura simples com auxílio de um dicionário já bastaria e, assim, não se precisaria do estudo literário.

Diante desses fatores, portanto, estão todos os ensinamentos da Estética concreta de Bachelard de como deve ser o estudo crítico literário. O real crítico deve compreender que a verdade não está nunca dentro do texto, mas sim no diálogo que se faz fora dele, pois é um território cheio de seduções e desafios, que é capaz de resistir e sobrepor-se às regras que tentam reduzí-lo como fazem as críticas tradicionais.

Referências Bibliográficas

BACHELARD, Gaston. A água e os sonhos. Ensaio sobre a imaginação da matéria (tradução Antônio de Pádua Danesi). São Paulo, Martins Fontes, 2002.

_____________.A filosofia do não. Filosofia do novo espírito científico (tradução Joaquim Moura Ramos). Lisboa, Editorial Presença, 1991.

_____________. O novo espírito científico (tradução Antônio José Pinto Ribeiro). Lisboa, Edições 70, 1996.

FARIA, Maria Lucia Guimarães de. A poética concriativa de Gaston Bachelard.

POE, Edgar Allan. "A Queda da Casa de Usher". In: - Contos de Terror, de Mistério e de Morte (tradução Oscar Mendes). Rio, Nova Fronteira, 1988.