A CRIANÇA E INFÂNCIA EM PARINTINS: UMA ANÁLISE ANTROPOLÓGICA NO ENTORNO DA LAGOA DA FRANCESA

                                                         Ricardo da silva e silva ([email protected])

RESUMO: O presente artigo tem por objetivo analisar e descrever como as crianças constroem seu próprio espaço de brincadeiras em um lugar não formal, no entorno da Lagoa da Francesa, Parintins. Posteriormente, identificaremos de que maneira essas crianças se relacionam, para refletir a concepção da infância e contribuir para os estudos direcionados a criança como ser histórico - cultural. Na tentativa de compreender a relação “criança-infância”, investimos na “observação” no bairro, precisamente nas áreas próximas do lago e visualizamos que as crianças fazem dos lugares um espaço de lazer, onde o brincar e o passear são atitudes corriqueiras que fazem parte do cotidiano da vida local. Foram analisados os locais, os objetos, as entrevistas e os significados produzidos nas brincadeiras. Apesar de estarem em contato com o contexto urbano, as crianças mostraram-se vinculadas ao contexto ribeirinho.

Palavras-chave:  Infância. Criança. Brincadeira. Francesa.

INTRODUÇÃO

A cidade de Parintins, localiza-se no médio-baixo amazonas com uma população estimada em torno de 110 mil habitantes. É conhecida pela sua manifestação folclórica. Sua economia está centrada na prefeitura do município, piscicultura, pecuária e etc. Seu maior apogeu é no mês de Junho, época do seu festival folclórico onde acontece as disputas entre os bois caprichoso e garantido.[1] Uma das características geográfica da cidade - é as várias ilhotas no entorno com pequenos Paranã, principalmente nos arredores da zona norte onde estão localizados os bairros Francesa, Palmares, Santa Rita e Santa Clara. Nas últimas décadas, Parintins obteve um crescimento populacional significativo. Isso se deu principalmente pelas necessidades educacionais do campo, qualidade de vida, e busca de trabalho, influências da zona franca de Manaus responsável por mudanças socioeconômicas no Amazonas. Fatores propulsores geradores de mudanças sociais na Ilha Tupinambarana. Desta forma, o poder público investiu na cidade em - urbanização de novos bairros, saneamento, construção de novas escolas, postos de saúde e etc.

Este estudo é fruto de uma pesquisa de campo realizado nos arredores da lagoa da Francesa nos dias 25 de Maio a 06 de Junho de 2017 com o objetivo de “viabilizar” as crianças e sua relação com as áreas utilizadas como espaço para Brincadeiras e outros meios de recreação infantil. As especificidades estão voltadas para “compreensão” e importância das brincadeiras das crianças, e, “discutir” a importância para os sujeitos supra citados, e a (s) interferência (s) no seu desenvolvimento de vida. 

A escolha da temática partiu de reflexões feitas em sala de aula na disciplina Antropologia e Educação na Amazônia, onde discutimos as pluralidades e os desafios educacionais. O local observado foi uma escolha entre os acadêmicos por apresentar peculiaridades, principalmente o “lago” e seu entorno, local muita das vezes usado para práticas recreativas, pescas, passeios, práticas esportivas de criança e adolescentes. O método utilizado foi a “observação” que segundo Lessard Herbert (2008) “é um exame minucioso e atento sobre um fenômeno ou parte dele, e torna-se uma técnica científica à medida que serve a um objetivo formulado”.  E, como apoio bibliográfico utilizamos alguns teóricos como: Cunha (1994); Kishimoto (1998); Santin (2008); Vygostky (1984); Almeida (2004) dentre outros. As técnicas de coleta de dados deram-se através de relatórios sobre o objeto da pesquisa, além das entrevistas de seis (6) crianças com faixas etárias de 8 a 12 anos.

 

CRIANÇA E INFÂNCIA

Nos dias atuais, tem se estudado muito sobre criança e infância e isto é perceptível em diversas áreas. Historiadores, pesquisadores, antropólogos e psicólogos tem voltado suas atenções para esses conceitos, como diz Kishimoto (2008, p.21) “hoje, a imagem da infância é enriquecida, também com o auxílio de concepções psicológicas e pedagógicas [..]”. Assim, percebe-se que a infância é um campo de estudos constante em movimento e um tema multidisciplinar. Mas, quem é o ser criança? Qual o conceito de infância? Como acontece a relação criança-infância? Para alguns, infância é a fase inicial do desenvolvimento humano. Para outros, é um período que vai do nascimento até a adolescência. As concepções mudam de acordo com o contexto em que a criança se insere. “Cada cultura tem maneira de ver a criança, de tratar e educar” (KISHIMOTO, 2008, p.19). O conceito de criança vem sofrendo modificações com o passar dos anos. Nos dias de hoje, a criança é vista como um mini adulto, que acaba antecipando a idade adulta e esquecendo dessa parte tão importante do desenvolvimento humano que é a infância. Para o Estatuto da Criança e do Adolescente, considera-se criança a pessoa até doze anos de idade incompletos (BRASIL, 1990). No entanto, alguns dos direitos à infantis não são realmente efetivados – a exploração do trabalho infantil, ou a não permanência destes no âmbito escolar são alguns.

 

  A IMPORTÂNCIA DAS BRINCADEIRAS PARA O SER CRIANÇA

Para a criança, o ato de brincar é primordial. Pode-se afirmar que ao brincar a criança “aprende, gradualmente desenvolve conceitos de relacionamento casuais ou sociais, o poder de descriminar, de fazer julgamentos, de analisar, de sintetizar, de imaginar e formular e inventar ou recriar suas próprias brincadeiras” (SANTIN, 2001, p.523). A brincadeira faz parte do aprendizado da criança, dando-lhe a oportunidade de construir conhecimento e se desenvolver melhor. Através do brincar ela aprende, experimenta novas situações, e compreende o mundo à sua volta. Assim, não se pode caracterizar a brincadeira como um simples momento de lazer, mas como um meio de tornar os sujeitos mais criativos e espontâneos onde irão se desenvolver sem perder essa fase tão importante da vida, que é a infância. No entendimento de Almeida (2000, p.122) “A criança tem o direito e a necessidade de brincar, pois se aprende brincando. O brincar é uma necessidade básica e um direito de todos. O brincar é uma experiência humana, rica e complexa”.

 

 FRANCESA, UM BAIRRO PARA AS PRÁTICAS DE BRINCADEIRA

As épocas de cheias estimulam o comércio nesta região do município, onde os produtos como - peixe, frutas, legumes e a farinha regional são transportados em embarcações. A princípio não foram encontradas crianças brincando, apenas algum abordo de pequenas embarcações que ali ancoram. Percebe-se que, em uma das embarcações havia duas crianças, que pelas semelhanças, deveriam ser irmãos. Sentados estavam à conversar enquanto aguardavam os seus pais fazerem às compras no comércio das proximidades.

Essa parte da Lagoa da Francesa fica muito movimentada, torna-se um tipo de porto onde os barcos ancoram e por isso há uma boa quantidade de pessoas todos os dias, vindas das cidades do interior de Parintins, resolver algumas particularidades, fazer compras na cidade, trazer mercadoria para vender, e trazem suas crianças que permanecem nas embarcações, enquanto os pais resolvem suas peculiaridades.

Em outra embarcação, havia uma garotinha que brincava em um aparelho celular enquanto também aguardava por alguém. Já em uma outra, tinha três crianças que aparentavam ter entre quatro e seis anos e elas brincavam de pega-pega, corriam de uma ponta a outra da embarcação passando por de baixo das redes que ali estavam atadas, pareciam estar muito alegres, pois estavam muito sorridentes. “O brincar é uma característica primordial na vida das crianças, porque é bom, é gostoso e dá felicidade em todos esses momentos das brincadeiras” (CUNHA, 1994).

No dia 16/05, no turno da tarde foram feitas observações na Orla da Francesa. Lá avistamos um grupo de crianças, somente meninos, brincando de soltar pipa, enquanto os mais velhos dominavam a brincadeira, pois somente eles possuíam pipas, os menores só observavam e quando alguma das pipas caia, eles corriam para tentar pegar porque tendo a sua própria pipa podem participar mais efetivamente da brincadeira. A pipa torna-se o brinquedo que eles podem manipular e assim se sentem independentes: “pode-se dizer que um dos objetivos do brinquedo é dar a criança um subsídio dos objetos reais, para que possa manipulá-los” (KISHIMOTO, 2008, p.18). A maioria deles trajava somente bermuda e como o sol estava forte eles molhavam os pés na água, que nesta época do ano (enchente) está próxima da rua e isso para eles também e uma forma de diversão.

No dia 02/06, às 17:30, fizemos observação na rua Beira Mar, por trás da conhecida Feira do Bagaço, que fica no entorno da Francesa. Neste horário, percebemos certa quantidade de crianças correndo na rua, e tivemos a oportunidade de entrevistá-las. Três meninos, com idade de 8 -10 anos nos relataram suas brincadeiras preferidas, sua opinião a respeito da enchente do rio. As crianças gostam de brincar de “manja-pega”, “manja-ajuda”, “manja-trepa”, “manja-cola”, “polícia e ladrão”, “pineirinho”, “pedra-papel-tesoura”. No momento da observação, as crianças andavam de bicicleta, eram três meninos e somente uma bicicleta, e não havia disputa para usar, cada um esperava a sua vez. Revezavam o brinquedo para se divertirem juntos. As crianças tinham semblante de felicidade e se sentiam livres em brincar na rua, estavam ali por vontade e se sentiam satisfeitas, isto se relaciona com o que diz Huizinga (1999) o jogo, o brincar, deve ter caráter de liberdade para as crianças irem muito além de suas fantasias, deve ser uma atividade voluntária e quando imposta deixa de ser uma brincadeira ou um jogo, ou do faz de conta.

A criança não tem preferência por horário para brincar. Brincam a hora que tem vontade, independentemente de estar calor ou de ser noite. Mas um dos horários fica ocupado com a ida à escola, e é o único horário em que eles ficam impossibilitados de brincar. As brincadeiras variam de menino pra menina, e as meninas preferem brincar em grupos somente com meninas: “A gente prefere brincar só com menina porque os meninos falam muito palavrão e são enxeridos” (Menina, 9 anos).

 As meninas brincam de andar de bicicleta, de patins, patinete, pulam corda, queimada, etc. No dia 03/06, no final da Rua Francisco Augusto Belém, no bairro de Santa Clara, observamos dois meninos com idade entre 10-11 anos, brincando de jogar futebol, perto de onde a água chega. Eles próprios narravam o jogo e disputavam em quem conseguia alcançar o maior número de gols e as suas sandálias serviam de trave. Segundo Kishimoto (2008, p.21), “a brincadeira é a ação que a criança desempenha ao concretizar as regras do jogo, ao mergulhar na ação lúdica”.

Em outro dia de observação, 04/06 às 16:30, neste mesmo ponto, havia um grupo de meninos com idade entre 8-12 anos mergulhando na lagoa. Eles pulavam de uma embarcação que ali estava ancorada e passaram várias horas brincando dessa forma. Quando foi perguntado a um casal que estava em uma embarcação ao lado, quem estava monitorando tal brincadeira, foi nos informado que as crianças estavam ali sozinhas, sem nenhum responsável por perto para protegê-los caso algum acidente ocorra. Lembrando que nenhuma das crianças utilizava equipamento de segurança, como colete salva-vidas.

Neste mesmo dia observamos meninos e meninas de diversas faixas etárias brincando de jogar futebol na orla da Francesa. Como as traves estavam encobertas pelas águas da enchente, as crianças colocaram pedaços de madeira enterrados na terra para servir como trave. O espaço está um pouco mais limitado, e mesmo assim a brincadeira continuava muito divertida. Na lateral do campo improvisado, haviam duas garotas que brincavam de construir castelo de areia/barro, pois ainda eram pequenas para participar da partida de futebol. Esse foi o fim da tarde de domingo das crianças no entorno da Lagoa da Francesa.

 

INTERFERÊNCIA DA ENCHENTE NO BRINCAR DA CRIANÇA NO ENTORNO DA LAGOA DA FRANCESA

As crianças que habitam nas proximidades da Lagoa da Francesa, aprendem desde cedo a adaptar-se com o vai e vem do nível dos rios. Isso interfere principalmente nas práticas de brincadeiras e traz outras percepções. Em Tuan (2005), as inundações desorganizam a vida dos povos desestabilizando os sujeitos, assim relata uma das entrevistadas:

Preferimos brincar quando tá seco, porque tem mais espaço, e no tempo da cheia nossos pais ficam muito preocupados porque tem muita cobra, jacaré, piranha, capim, fica mais feio sabe, assim não é legal, é bom mesmo quando tá seco, dá até para andar lá pra longe onde os pássaros ficam. (Menina, 8-10 anos).

 Percebe-se no depoimento acima a preocupação com a enchente dos rios, e que de certa forma o sujeito fica limitado, exige cuidados com os animais peçonhentos e há preocupação dos pais. Em decorrência desse fenômeno da natureza, algumas crianças aprenderem até mesmo a pescar ainda que seja de brincadeira, passear de barco e canoa e etc. Elas percebem os adultos pescando e acabam querendo imitar essa atitude, fazendo com que a criança se sinta como o pai, ou o adulto que observa. Segundo Vygotsky (1984) “no brinquedo a criança sempre se comporta além do comportamento diário: no brinquedo é como se ela fosse maior do que é na realidade”. A criança assim atua em um nível bem superior ao que ela se encontra.

Outro fator muito perceptível é questão da poluição da lagoa que se intensifica ainda mais na época da enchente. São inúmeros os tipos lixos e dejetos jogados no rio, as crianças percebem e reclamam:

O lixo incomoda muito pois fica fede, contamina a agua os peixes morrem e também dá muito mosquito, o mosquito da dengue, e tem tempo mesmo que a gente nem pode tomar banho e brincar no rio por causa de tanta sujeira sabe, eu acho que as pessoas deveriam parar mais de jogar lixo na agua, ai ia prestar até mesmo pra gente beber a agua. (Menino, 10 anos).

Aqui há uma preocupação ambiental vivenciada por parte deste sujeito, onde elas tem preferência quando o nível das águas está baixo, pois têm o domínio, liberdade e até mesmo opção para não jogar lixo, tornando muitas das vezes um espaço ilimitado para sua imaginação.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Através desta pesquisa conhecemos mais a fundo os hábitos e costumes típicos da cultura das crianças que residem em todo o entorno da Lagoa da Francesa. Mesmo não havendo uma infraestrutura adequada, pois não há parques e nem praças para que as crianças brinquem de forma segura, e mesmo em meio ao lixo e poluição, as crianças conseguem se divertir, sendo que essa é a única opção que elas possuem. A questão econômica, relacionada as condições financeiras das crianças, pois muitas delas são de classe baixa, e os riscos que o ambiente oferece, relacionados a poluição, animais perigosos, não se tornam empecilhos para que essas crianças tenham seus momentos de lazer e diversão.

Os hábitos das crianças foram perceptíveis, e um que se destaca é o banhar-se nos rios, que é uma característica da localidade e que faz parte do cotidiano delas. Mas hoje um problema é evidente, o estado da água não é o mesmo de antigamente. Antes, a Lagoa da Francesa era um local preservado, de água límpida. Ocorria a lavagem de roupas nas margens da lagoa, e até mesmo os adultos mergulhavam nas águas. Devido a poluição, o rio não é mais um lugar propício para as crianças, tornou-se perigoso. Ocorreram modificações no ambiente e dessa forma ocorrem modificações na vida dos indivíduos que desfrutam deste ambiente.

Há a necessidade de uma forma de adaptação para com as mudanças e as crianças ficam vulneráveis nesta situação. O fato de morar em um local de poluição altera o modo de vida das crianças, e isso se demonstra no fato de elas preferirem o local na época da seca. Mesmo assim as crianças procuram de um jeito ou de outro adaptar suas brincadeiras ao estado do local, pois o importante para elas é o ato de brincar.

A infância é regada de experiências que farão com que a criança construa conhecimento. Essas experiências merecem um lugar adequado para serem vividas. Há uma ausência de locais para as crianças se divertirem e viverem parte de sua infância, sendo assim existe a necessidade de um olhar mais atento para com essas crianças do entorno da Lagoa da Francesa.

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, M.T.P. Jogos divertidos e brinquedos criativos. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 2004.

BRASIL. [Estatuto da criança e do adolescente (1990)]. Estatuto da criança e do adolescente [recurso eletrônico]: Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990, e legislação correlata. – 13. ed. – Brasília.

CUNHA, Nylse H. S. Brinquedoteca: um mergulho no brincar. São Paulo. Maltese, 1994.

HUIZINGA, Johann. Homo Ludens. Perspectiva: São Paulo, 1999.

KISHIMOTO, Tizuko Morchida. Jogo, brinquedo, brincadeira e a educação. 11.ed. – São Paulo: Cortez, 2008.

LESSARD, Herbert, M. Investigação Qualitativa: fundamentos e práticas. Lisboa: Artes Gráficas LTDA, 1990.

SANTIN, Silvino. Educação Física: Temas pedagógicos. 2.ed. Porto Alegre: EST Edições.

TUAN, Yi-Fu. Paisagens do Medo. Tradução: Lívia de Oliveira. São Paulo : Editora UNESP, 2005.

TRIGUEIRO, Rodrigo de Menezes. Metodologia Cientifica / Rodrigo de Menezes Trigueiro, Marilucia Ricieri, Gisleine Bartolomei Fregoneze, Joacy M. Botelho. – Londrina: Editora e Distribuidora Educacional S.A., 2014.

VYGOSTKY, L. S. A formação social da mente. São Paulo. Martins Fontes, 1984.

[1]  Bois de pano do folclore parintinense (Caprichoso - boi de cor azul e branco e Garantido - boi de cor vermelho e branco.)