A CONTRIBUIÇÃO DOS CLÁSSICOS PARA A
SOCIOLOGIA DA RELIGIÃO


Francisco Luiz Gomes de Carvalho ? Mestrando em Ciências da Religião pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Graduado em Teologia (UNASP-EC). E-mail: [email protected]

Marinalva Imaculada Cuzin ? Doutora em Psicologia da Educação pela Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas. E-mail: [email protected]

RESUMO
A realidade social e religiosa atual convida a uma leitura detida e mais aprofundada. Para tal tarefa é imprescindível o conhecimento acerca dos clássicos (pais fundadores) da Sociologia da Religião. É fato a relevância de muitos teóricos contemporâneos na atualidade, o que não significa a anulação da contribuição dos clássicos (Karl Marx, Max Weber e Émile Durkheim), mas o apontamento para uma produção profícua de dialética entre diversas correntes para uma compreensão cada vez mais ampla da realidade. Este artigo é resultado de uma pesquisa bibliográfica acerca da temática da contribuição dos clássicos (da Sociologia) com o recorte para a Sociologia da Religião. A intenção norteadora é apresentar mesmo que brevemente um resumo do pensamento destes autores ilustres a respeito da religião. Interessa perceber a concepção formulada por cada um deles sobre o objeto de estudo, religião.
Palavras-chave: Clássicos, Religião, Sociologia da Religião

ABSTRACT
The current social and religious reality calls for a careful reading and deeper. For such a task is essential to know about the classics (founding fathers) Sociology of Religion. It is a fact of relevance to many contemporary theorists today, which does not mean the cancellation of the contribution of the classics (Karl Marx, Max Weber and Emile Durkheim), but the pointing to a production of fruitful dialectic between factions for an ever greater understanding wide reality. This article is the result of a literature on the subject of the contribution of the classics (Sociology) at the cut for the Sociology of Religion. The intention is to provide guiding even briefly summarizes the thinking of these illustrious authors about religion. Interested understand the concept formulated by each of them on the object of study, religion.
Key words: Classics, Religion, Sociology of Religion


Metodologia
Atento à importância da classificação das pesquisas, afinal elas "se referem aos mais diversos objetos e perseguem objetivos muito diferentes" (GIL, 2010, p. 25), esta pesquisa está classificada nos critérios como pesquisa bibliográfica focada em levantamento e revisão bibliográfica para uma sólida fundamentação teórica à luz de Hamilton (2008), Hervieu-Léger e Willaime Jean-Paul (2009), Lechner (1991), Martelli (1995), Rosado-Nunes, (2007) e Sanchis (2003). Consciente dos aspectos que podem comprometer a qualidade da pesquisa é imprescindível a atenção ao que Gil (2010, p. 30) nos orienta ao afirmar que para:
Reduzir essa possibilidade, convém aos pesquisadores assegurarem-se das condições em que os dados foram obtidos, analisar em profundidade cada informação para descobrir possíveis incoerências ou contradições e utilizar fontes diversas, cotejando-as cuidadosamente.

A partir da pesquisa realizada, os dados obtidos provenientes das mais diversas fontes foram analisados sob a ótica de uma leitura crítica proporcionando dessa maneira a redação dialógica acerca dos autores apresentados como clássicos para a Sociologia da Religião.

Introdução
Apesar das tentativas para o estudo sistemático sobre a sociedade remontarem aos antigos filósofos gregos, a sociologia é considerada uma ciência moderna. É na busca pelo aumento do conhecimento a respeito do ser humano e seu lócus de vivência que há grande contribuição para auxílio no enfrentamento e superação dos problemas advindos da historicidade da vida.
A partir do momento em que a humanidade em sua trajetória de modernidade desvincula-se do pensar com referenciais religiosos, a sociologia em seus primeiros passos como ciência interessa-se pela a religião. Os considerados pais fundadores (Karl Marx, Émile Durkheim e Max Weber) da sociologia contribuíram enormemente para compreensão da sociedade pelo estudo da religião.
Mesmo que de relance, é indispensável alusão ao contexto histórico, político-ideológico e social em que a sociologia tem por berço de seu nascimento. Acontecimentos tais como: a Revolução Industrial, a dissolução do feudalismo, ascensão da classe burguesa, descoberta de novos territórios, Revolução Francesa, invenção da imprensa, dentre outros requereram respostas às questões e problemas suscitados. Rosado-Nunes (2007, p. 101) nos escreve que para entender tal realidade o "recurso ao sobrenatural já não é possível, nesse ?mundo desencatado? do fim do século XVIII, início do XIX". Para tanto, foi principalmente com os esforços de Marx, Durkheim e Weber que a investigação dos fenômenos sociais ganhou um caráter verdadeiramente científico.
Ao esta ciência definir seu objeto de estudo, pautar-se pelo rigor metodológico e estabelecer seu próprio instrumental analítico advém daí as grandes teorias que buscam dar conta do entendimento das relações sociais, bem como a emergência de modelos e esquemas explicativos que por anos estabeleceram-se como instâncias últimas orientativas para estudos sociais, tornando-se em alguns momentos uma ciência nostálgica e mesmo reducionista.
Todavia, com a complexidade atual da realidade social mundial e a problematização dos processos civilizacionais e culturais cada vez mais intensos, percebe-se uma revisitação aos clássicos mais constante, rica de significação e instrumentalidade para as pesquisas. Afinal de contas, um clássico significa muito mais do que já haja sido esgotado por um estudioso ou mesmo uma geração deles. (KERMODE, 1975, pp. 138-141).

Breve biografia e pensamento
Um breve aporte histórico-biográfico acerca dos considerados pais fundadores constituir-se-á em um instrumental básico direcionador para a imersão em suas obras, conceitos e principais idéias.

Karl Heinrich Marx (1818 ? 1883)
Nascido em 05 de Maio de 1818 na pequena cidade de Trêves na Alemanha, de família burguesa de origem judaica e convertida ao protestantismo luterano, doutorou-se em Filosofia em 1841 pela Universidade de Berlim com a tese sobre o materialismo de Heráclito Parménides. Por motivos políticos mudou-se para França, Bélgica e Inglaterra, onde veio a falecer em 1883.
Estudioso das obras de Hegel e Feuerbach. No tempo em que viveu na França interessou-se pelo movimento dos trabalhadores passando a escrever com o objetivo de mostrar o quanto a sociedade produz injustiça. Foi na França que conheceu Friedrich Engels, com quem fez uma amizade que se prolongou durante toda sua vida. Estudando o materialismo histórico postularam novos conhecimentos descartando a religião. Segundo Ramalho; Bencini (2008, p. 55) Marx:
[...] viveu numa época em que a Europa se debatia em conflitos, tanto no campo das idéias como no das instituições. Já na universidade, as doutrinas socialistas e anarquistas se encontravam no centro das discussões dos grupos que Marx freqüentava. [...] Dois momentos da história européia foram vividos por Marx intensamente e tiveram importantes reflexos em sua obra: as revoltas antimonárquicas de 1848 ? na Itália, na França, na Alemanha e na Áustria ? a Comuna de Paris que, durante pouco mais de três meses em 1871, levou os operários ao poder, influenciados pelas idéias do próprio Marx.

Tendo como principais obras as seguintes: Manuscritos econômico-filosóficos (1844), A ideologia alemã (escrito em colaboração com Engels) em (1845), A miséria da Filosofia (1847), Manifesto comunista (1848), As lutas de classe na França (1848 e 1850), O 18 Brumário de Luís Bonaparte (1852), Contribuição à crítica da Economia Política (1857), O Capital (1867).
Para Marx, os "modos de produção" ajudam a entender a sociedade e, por conseguinte a religião. No discurso marxiano, a religião exerce a função de controle social dentro da sociedade burguesa, e a mesma (religião) desapareceria no próprio desenvolvimento do processo histórico. Rosado-Nunes (2007, p. 105) resume a sociologia da religião na perspectiva de Marx, ao afirmar que para Marx "a religião é uma realidade histórica dependente do desenvolvimento das condições materiais de vida e da consciência dos indivíduos".
Na análise marxista há questões que sobressaem pela sua relevância, são elas: alienação, dominação e conflito. Portanto, a crítica marxista à religião consiste em base filosófica e política. A religião é vista na perspectiva de Marx como elemento legitimador das relações de dominação, nas quais o dominado é mantido sobre controle advindo da religião. Mesmo a análise da religião sendo secundária na crítica marxista, a mesma não é vista como realidade sui generis, mas sim, o resultado de condições sociais determinadas, o que consistiria em vê-la como o "ópio do povo". O próprio Marx (1975, p. 48) nos afirma que a "[...] angústia religiosa é, por um lado, a expressão da angústia real e, por outro, o protesto contra a angústia real. A religião é o suspiro da criatura oprimida, a alma de um mundo sem coração, tal como é o espírito de condições sociais, de que o espírito está excluído. Ela é o opium do povo."
Nesta perspectiva a verdade dada é que os vetores da emancipação do povo encontram-se arraigados nas expressões religiosas. Isso é melhor apreendido nas palavras de Hamilton (2008, p. 91) ao nos afirmar que:
Religião para Marx era essencialmente o produto de uma sociedade de classes. Suas idéias sobre religião são parte de sua teoria geral da alienação em sociedades divididas por classes. Religião é vista tanto como um produto de alienação e uma expressão dos interesses de classes. Ela é ao mesmo tempo uma ferramenta para manipulação e opressão das classes subordinadas da sociedade, como uma expressão de protesto contra opressão e uma forma de resignação e consolação em face da opressão.

O quadro macrossociológico adquiriu prioridade na análise marxista, afim de que por meio das superestruturas fosse possível entender as infraestruturas que davam solidez à construção e estruturação social.
Apesar de alguns críticos atribuírem apenas o argumento materialismo histórico a Marx é, no entanto, por meio do estudo mais detido que as obras revelam abordagens dialéticas dos fenômenos ideológicos, bem como da religião em particular. É por meio destes vieses que se pode conceber a análise da religião na sua perspectiva e suas contribuições para a sociologia das ideologias advindas principalmente de uma abordagem macrossociológica, como também no quadro de uma problemática de classes sociais.
A preocupação constante com a globalidade e interação das diversas instâncias (representações, idéias, dimensões) da sociedade constituem-se como referencial metodológico de peso. Todavia, o caráter milenarista e profético da ideologia marxista, fez deixar em segundo plano a dimensão de protesto da religião.
O próprio impacto do marxismo como ideologia se explica por esse duplo caráter utópico e científico. E é uma ironia suplementar da história constatar que é justamente por causa de seu aspecto profético e milenarista que essa ideologia, que denunciava a religião como "ópio do povo", pesou tanto, para o melhor e para o pior, na história dos homens (HERVIEU-LÉGER; WILLAIME, 2009, p. 41).

Karl Emil Maximilian Weber (1864 ? 1920)
Alemão, nascido em 21 de Abril de 1864 na cidade de Erfurt. Filho primogênito de uma família próspera da burguesia têxtil. Em 1889, doutorou-se em Direito na Universidade de Göttingen. Morreu abruptamente aos 56 anos em 14 de junho de 1920 vitima de pneumonia. Apesar de uma vida com constantes problemas de saúde, foi um profícuo intelectual de vasta publicação e pensamento denso.
Uma das suas principais contribuições foi o de ter tornado a "ação social" um dos temas centrais da sociologia. O objeto da sociologia conforme a concepção de Weber dá-se na captação da relação de sentido da ação humana, dessa forma é imprescindível extrair o conteúdo simbólico da ação ou das ações para de fato conhecer um fenômeno social. Assim abordar um fato não se dá simplesmente pela via da explicação de causas e efeitos, mas sim compreendê-lo de forma mais ampla como fato carregado de sentido e em sua relação com outros fatos. Dessa forma os fatos sociais são para Nobre (2006, p. 528) "[...] realidades que não deixam de ser sociologicamente entendidas como estruturas de ações ou como relações sociais, mas cujas ações constituintes se orientam por regras impessoais, com o que se dispensa ou se secundariza o mando pessoal."
Weber é o autor do conceito de "desencantamento do mundo", e o mesmo aparece constantemente em suas obras, sendo para ele um conceito muito mais caro que o de "secularização". Assim, tornou-se uma das marcas registradas de seus escritos e teoria. Apesar de comentaristas apresentarem a tendência de uso dos termos secularização e desencantamento como sinônimos, os mesmos recebem tratamento diferente nas obras weberianas, pois, ambos não dizem a mesma coisa e nem recobrem a mesma coisa. Pierucci (1998, p. 47) nos afirma que segundo Weber, "o desencantamento do mundo ocorre justamente em sociedades profundamente religiosas, é um processo essencialmente religioso, porquanto são as religiões éticas que operam a eliminação da magia como meio de salvação". Por outro lado, secularização implica em abandono, redução, e mesmo subtração do status religioso, configurando-se em uma perda para a religião, bem como emancipação em relação a ela.
Frank Lechner comenta resumidamente acerca da filiação weberiana da teoria da secularização, quando nos afirma que tal é:
[...] uma teoria geral da mudança societal e consiste de um corpo empírico coerente de generalizações empíricas que repousa sobre premissas weberianas fundamentais. De acordo com essas premissas familiares, em certas sociedades as visões de mundo e as instituições ancoradas na transcendência perdem influência social e cultural como resultado da dinâmica da racionalização. [...] Porque as sociedades ocidentais foram as mais afetadas por processos de racionalização, elas se tornaram profundamente secularizadas (LECHNER, 1991, p. 1.104).

Considerado um rico autor para o estudo das religiões, Weber concebe a religião como chave de interpretação para o entendimento da cultura, o que a faz constituir-se em uma janela de entrada para a compreensão da formação cultural do Ocidente e Oriente. Desta maneira, Weber aponta a religião (o protestantismo) como sendo um elemento causal preponderante na ética econômica do capitalismo europeu. Para Hamilton (2008, p. 155):
Ele estava menos preocupado com a explicação da religião per se do que com as conexões entre os diferentes tipos de religião e de grupos sociais específicos e com o impacto de vários tipos de perspectivas religiosas sobre outros aspectos da vida social e em particular sobre o comportamento econômico.

Dentre as suas obras , A Ética Protestante e o Espírito do Capitalimo figura entre as principais obras, pois, neste ensaio histórico-sociológio ele buscou atrelar a economia capitalista ao conteúdo doutrinal do protestantismo, que por caracterizar-se por uma racionalidade especifica lançou bases para a noção de trabalho como vocação e ascese intramundana gerada no calvinismo. Trata-se, nesse caso "[...] do exemplo das relações entre o moderno éthos econômico e a ética racional do protestantismo ascético" (WEBER, 1989, p.12).
A noção de "tipos ideais" de autoridade religiosa construída por Weber introduziu no estudo das ciências sociais a questão da legitimidade do poder social. Um "tipo ideal é a seleção arbitrária das características de um fenômeno a partir de inúmeras qualidades presentes na realidade, sem nenhuma tentativa de colocá-lo em uma relação superordenada" (MUNCH, 1999, p. 193). Mais claro objetivamente é Weber (1974, p. 345) quando afirma que com os tipos ideais não se busca "forçar esquematicamente a vida histórica infinita e multifacetária, mas simplesmente criar conceitos úteis para finalidades especiais e para orientação". Ao usar a categoria analítico-teórica (tipos ideais) como ferramenta de aproximação inicial de um objeto de estudo ganha-se em qualidade para a exposição preliminar de um fenômeno.
Sendo que o conceito de poder é impreciso e amorfo, Weber propõe o conceito de dominação, assim em um estado de dominação "uma vontade manifesta do dominador influi sobre as ações dos dominados de tal modo que estas ações se realizam como se estes tivessem feito do próprio conteúdo do mandato a máxima de suas ações" (WEBER, 1999. p. 191).
Desta maneira, para a sociologia weberiana pode-se afirmar em poucas palavras que a motivação para obediência, cumprimento de uma determinada ordem e legitimidade do conteúdo pode decorrer da tradição, legalidade ou carisma (tipos ideais de dominação) .
Pelo estudo que Weber fez acerca da religião pode-se considerá-la como mais que um sistema de crenças e "dependendo do momento histórico, do contexto social e dos valores culturais vigentes, haverá configurações diversas do religioso" (ROSADO-NUNES, 2007, p. 107).

David Émile Durkheim (1858 ? 1917)
Nasceu em 15 de Abril de 1858 em Épinal noroeste da França, filho de pais judeus optou por não seguir o rabinato, como era costume na família. Formou-se em Filosofia em 1882, e depois de haver lecionado na Universidade de Bordeaux tornou-se professor na conceituada Universidade de Sorbonne. Morreu no dia 15 de Novembro 1917, um ano após a morte do filho no front da primeira Guerra Mundial.
Viveu em uma época de grandes acontecimentos, tais como: primeira Guerra Mundial, proclamação da terceira República Francesa, Comuna de Paris e com reflexos marcantes na vida social, pois as instituições sociais se encontravam enfraquecidas, havia muito questionamento, valores tradicionais eram rompidos e novos surgiam, muita gente vivendo em condições miseráveis, desempregados, doentes e marginalizados.
Tendo como principais obras: Da divisão do trabalho social (1893), As regras do método sociológico (1895), O suicídio (1897), Formas elementares da vida religiosa (1912) e Lições de sociologia (1912).
Dentre os conhecidos clássicos da Sociologia, Durkheim é o que merece o reconhecimento de "fundador", tanto pela sua vida dedicada em favor do estabelecimento dessa área de conhecimento, como por sua posteridade considerável de suas obras. Contribuiu enormemente para fazer da Sociologia uma ciência autônoma e empírica. Apesar de em muitos momentos ter as suas contribuições reduzidas ao sociologismos resultantes em muito de leituras empobrecidas e mesmo interpretações desastrosas, Durkheim permanece sendo um teórico digno de revisitações constantes e aportes teóricos contemporâneos para a compreensão enriquecida da realidade social.
Sendo a última obra e considerada a principal, As formas elementares da vida religiosa explicita de maneira bem exaustiva e acabada a visão do social como também a proposta de sociologia do conhecimento sistematizada por Durkheim. Ao fazer uma crítica às teorias que lhe são contemporâneas, Durkheim busca uma definição para o seu objeto de estudo e o faz ao dizer que a sociedade "é uma realidade transcendente, dotada de autoridade moral sobre o indivíduo e, ao mesmo tempo, capaz de elevá-lo além de si mesmo; depois, reconhece no sagrado a própria sociedade em forma simbólica" (MARTELLI, 1995, p. 67). Dessa maneira, o interesse de Durkheim pela religião funda-se na busca por remontar as fontes de ligação social com vistas à uma refundação dessa ligação em um sociedade laicizada (HERVIEU-LÉGER; WILLAIME, 2009).
Ao estudar o sistema totêmico de tribos aborígenes australianas, Durkheim anunciava que o propósito do estudo ao olhar a religião mais primitiva e simples (segundo ele o totemismo) era caracterizar a natureza da religião e definir seu objeto de estudo. Para tanto, no capitulo I de tal obra ele discute o conceito de religião como também explicita os seus métodos de estudo.
As conclusões de Durkheim são interessantes, especialmente quando afirma que a religião não é simplesmente um sistema de crenças e concepções, mas uma força coletiva da sociedade representada nas significações dos indivíduos. Ao salientar claramente a origem social da noção de sagrado, o que se entende é que "desta maneira a realidade pode ser percebida com duas naturezas radicalmente diferentes, em outras palavras, dividida entre o sagrado e o profano" (HAMILTON, 2008, p. 113). O próprio Durkheim escreve o seguinte: "[...] temos a impressão que nos relacionamos com duas espécies de realidades distintas, e que uma linha de demarcação claramente estabelecida separa uma da outra; de um lado, o mundo das coisas profanas, e do outro, o das coisas sagradas" (DURKHEIM, 1989, p. 267). O sentimento do sagrado suscitado no culto e ritual é na verdade é uma força externa que o crente experimenta, ou seja, a experiência das forças coletivas.
As representações coletivas atribuem muitas vezes às coisas as quais se referem propriedades que aí não existem sob nenhuma forma e em nenhum grau. Do objeto mais vulgar, podem fazer um ser sagrado e forte. Entretanto, ainda que puramente ideais, os poderes que lhe são assim conferidos agem como se fossem reais; determinam a conduta do homem com a mesma necessidade que forças físicas [...] (DURKHEIM, 1989, p. 284).

Para Durkheim a integração e coesão social são asseguradas pela religião que alimenta normas e valores fundamentais à vida em comum e os consolida na consciência dos indivíduos, ao mesmo tempo em que a sociedade sustém a religião ao oferecer-lhes os símbolos religiosos que advém da sacralização de sentimentos morais existentes em uma dada sociedade. Dessa forma há entre a religião e a sociedade o que Martelli (1995, p.68) denomina de sinergia:
[...] de um lado, as crenças religiosas sacralizam as normas de comportamentos vigentes, fornecendo-lhes uma legitimação definitiva e inapelável, que favorece o autocontrole dos indivíduos e a adoção de medidas repressivas contra os que se desviam. Além disso, os ritos suscitam e exprimem atitudes que reforçam o temor e o respeito para tais normas: desse modo, a religião fornece uma sólida base para o controle social das tendências desviantes, sublimando os impulsos perigosos para a estabilidade da sociedade.

Assim o que se percebe é que na fase final dessa obra sociológica, Durkheim impacta-se por uma religião que a saber, é uma religião que consagra ritualmente e reatualiza psicologicamente a coesão do grupo humano. Durkheim afirma que "a força religiosa é apenas o sentimento que a coletividade inspira a seus membros, mas projetado fora das consciências que o experimentam, e objetivado" (DURKHEIM, 1989, p. 285).
Há de se reconhecer a legitimidade das criticas feitas à teoria durkheimiana, tais como: a crítica feita acerca da ambigüidade do caráter "primitivo" atribuído ao totemismo australiano, o fato de Durkheim não ter tido contato direto com a realidade, o conflito entre a abordagem funcional e a abordagem evolucionista (apontado por C. Lévi-Strauss), o problema da especificidade do conceito de sagrado, a quase personificação da sociedade como entidade de vontade própria, dentre outras, porém as suas contribuições são inegáveis e superam tempos e espaços, pois mesmo ao reconhecer os impasses da construção durkehimiana reconhece que ela encontra-se sempre viva.
Em meio a essa contribuição à Sociologia da Religião pode-se citar a concepção de religião com "função dinamogênica" o que constitui o caráter fundamental, que Sanchis (2003, p.42) nos afirma ao dizer que a "religião diz assim respeito à ação. E à vida. Ela nasce da ?efervescência? criadora do social e contribui para manter as condições da mesma criatividade". Corroborando nessa perspectiva é o que se entende da seguinte afirmação:
Se as religiões instituídas perdem inevitavelmente sua influência social, a dinâmica da religião deve ser prolongada, porque ela é a própria dinâmica da criação e da recriação do social. Os grandes períodos de inovação social são por outro lado, inseparavelmente, períodos de criatividade religiosa. (HERVIEU-LÉGER e WILLAIME, 2009, pp. 199-200)

É no fôlego da sociologia de inspiração durkheimiana que Danièle Hervieu-Léger deixa sua marca no empreendimento da análise interpretativa da eclosão da intensidade afetiva, emocional e carismática característica das "novas expressões religiosas" (CAMURÇA, 2003).
A própria noção de religião civil, a continuidade entre os ritos sagrados e o "lúdico", as festividades religiosas, os feriados de comemoração nacional, a religiosidade moderna individual, todos são bem compreendidos no interior do quadro teórico durkheimiano de forma expandida. (NIELSEN, 2003, pp. 120-121)
De maneira resumida afirma-se que por parte de Durkheim a concepção de religião significa que:
[...] no plano empírico, mesmo que formas religiosas tradicionais desapareçam, os grupos humanos serão sempre capazes de encontrar novos símbolos de solidariedade, apropriados ao novo grau de desenvolvimento da sociedade. No plano teórico, depreende-se que a religião terá sempre uma função social a cumprir, o que garante a perenidade, ainda que sob formas históricas as mais variadas. (ROSADO-NUNES, 2007, p.107)
A influência da obra de Durkheim teve impacto decisivo na Sociologia, e é visível nos estudos de sociologia da religião e sistemas simbólicos de representação, presentes nas preocupações que marcam a Antropologia contemporânea. Suas idéias inspiram estudos e pesquisas sobre família, profissão, socialização e processo de urbanização (QUINTANEIRO, 2007, p. 100-101).

Considerações finais
Em uma época de grande produção acadêmica, bem como de partilha global de conhecimentos marcadamente caracterizada pela emergência de novos paradigmas, e mesmo de clima desconstrução intelectual, os clássicos ainda constituem-se em fonte inesgotável para pesquisas e provocações, são como livros abertos que podem ser revisitados o que poderá revelar novas dimensões de significado a cada nova releitura. A melhor maneira de fazer frutificar a herança de um clássico não está em prender-se a eles, mas sim em avançar além do criticismo na busca por produzir conhecimento que dialogue com os teóricos contemporâneos. Afinal de contas, um clássico não pode ser um fim em si mesmo.
De fato o nascimento da Sociologia da Religião coincide com o nascimento da própria Sociologia, todavia em seus estudos não tem como foco central a religião, mas sim o fato religioso que é "entendido como ?produto social? ou como fruto de uma criação coletiva, dotada de uma especial estrutura simbólica, pelo papel que exerce no interior dos mecanismos sociais" (FILORAMO; PRANDI, 1999, p. 91).
A própria modernidade religiosa mostra-se um desafio para estudos e pesquisas acadêmicas, pois ao mesmo tem que é o portal da liberdade religiosa também abre espaço para a liberdade de não ter religião. O caso brasileiro apresenta-se como um campo fértil para os estudos da Sociologia Religiosa, pois que outro país mostra-se com tanta pluralidade cultural e religiosa, com um trânsito religioso tão intenso, e com um sincretismo religioso em muitos momentos evidente? Fechar os olhos para esta realidade é como tapar os ouvidos para a música que está sendo tocada.
Uma breve leitura de estudos dedicados aos dados dos últimos censos são importantes direcionais para o estudo inter/transdisciplinar nas ciências humanas.
Junto aos resultados do recenseamenteo, que interessam de perto à Demografia e à Sociologia da Religião, o leitor encontrará estudos que visam ao conhecimento da religião enquanto experiência pessoal ou comunitária. Crenças motivam diversidade de percepções, projetos de vida, padrões éticos, tendências políticas e toda uma gama de comportamentos [...] a palavra está com os filósofos, os historiadores, os antropólogos, os psicólogos e ? por que não? ? com os teólogos. (ESTUDOS AVANÇADOS, 2004, p. 03)

O ambiente universitário/acadêmico não pode olvidar-se para esta nova realidade. Promover a interlocução dos grupos majoritários e minoritários que são componentes constitutivos da realidade que ora se configura resulta em meio eficiente para lançar bases do entendimento mútuo, respeito à liberdade religiosa e convivência pautada pela tolerância. Temas como estes devem fazer pauta da docência universitária em sua formação de graduandos voltada para a ética e cidadania em uma sociedade caracterizada pela diversidade cultural e religiosa.

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