A CONTRIBUIÇÃO DE PIERRE BOURDIEU PARA O ENSINO DE ARTE

Maria Lúcia Wochler Pelaes[1]

RESUMO

Como fundamentação teórica para a análise, são apresentados estudos relacionados à teoria de Pierre Bourdieu, quanto às formulações sobre a ideologia do dom e de que forma o ensino de arte pode refletir tal proposição.Concepções como o "campo da arte", "capital cultural", "habitus cultivado", entre outras, oriundas dos estudos de Pierre Bourdieu, são utilizadas no decorrer da análise.

A análise dos conceitos realiza-se buscando revelar algumas concepções que influenciam o ensino de arte e de que forma seus sentidos correspondem à "ideologia do dom", proposta por Bourdieu, objetivando demonstrar como certos conceitos, como os conceitos de criatividade artística e talento para a arte foram construídos sob o paradoxo de uma pedagogia artística que identifica a sensibilidade estética, como formadora de um prazer estético íntimo, emocional e subjetivo, e simultaneamente, como um produto cultural amplo, resultante de um processo de aprendizado.

Palavras-chave:, Arte-Educação, Criatividade, Gênio, Ideologia do Dom, Bourdieu.

INTRODUÇÃO

O atual artigo tem como escopo analisar conceitos como o conceito decriatividade, o de aptidão para a arte e o conceito de gosto estético, a fim de elucidar, segundo a contribuição dos estudos propostos por Pierre Bourdieu, como são construídos os seus sentidos dentro de uma pedagogia artística focada no estudo de obras de arte, sua leitura e contextualização, tão constantes nas atuais metodologias e currículos do ensino da arte, em ambiente de educação formal escolar.

Para tanto, algumas questões foram levantadas, tais como: O ensino de arte, em ambiente escolarizado, permite o acesso aos bens culturais e a sua interpretação? O ensino de arte, através do estudo da História da Arte, permite, ao aluno, o conhecimento da arte através do domínio dos códigos de decifração estética? Os códigos de decifração estética são necessários para desvelar os significados e sentidos presentes na obra de arte?

As questões levantadas permeiam a análise apresentada e apontam para uma discussão que encontra a justificativa da sua relevância na atual metodologia de ensino da arte, fundada no estudo da História da Arte e das referências estéticas relativas à sua contextualização e ao fazer artístico. Tal proposta consta nos Parâmetros Curriculares Nacionais de Arte, nos diferentes ciclos.

Tratando-se da educação através da arte, a questão que suscita o aporte teórico de Bourdieu, reside em como construir, produzir, elaborar no indivíduo essa peculiar espécie de "aptidão" que é reconhecida, a princípio como uma "aptidão emocional", a aptidão de experimentar no contato com o objeto, com uma forma ou uma obra de arte, um tipo especial de emoção, chamado prazer estético[2].

Tal prazer estético foi identificado inicialmente como um prazer desinteressado, dentro de um "modelo de contemplação", oriundo da estética romântica do século XVIII, livre de referências, resultante de uma concepção regida pelo postulado do inatismo/afetivista. Porém, na perspectiva de Bourdieu, tal prazer é um produto cultural, identificado como uma "aptidão" ou sensibilidade estética, produzida através da convivência e do estudo sistemático de referências estéticas, no contato com a obra de arte, inicialmente no meio familiar e depois através do ensino escolarizado.

1.APTIDÃO E SENSIBILIDADE ESTÉTICAS

Esta aptidão ou sensibilidade estética para produzir ou decifrar, interpretar a obra de arte é reconhecida como um "dom", fruto de uma ideologia carismática, identificada com a natureza criativa e inventiva dos indivíduos reconhecidos como "gênios", e que estabelece uma distinção cultural entre àqueles capazes de reconhecer uma obra de arte como tal e àqueles que não reconhecem na obra de arte senão a leitura fenomênica, resultante de uma percepção funcionalista aplicável aos objetos cotidianos.

Tal aptidão, reconhecida como um dom, é naturalizada no contexto das relações com a arte, de tal forma que mascare as diferenças culturais de acesso ao conhecimento artístico, transformando tais "diferenças", em distinções sociais, dentro de um mecanismo ideológico de exclusão social.

Tal problema consiste em, inicialmente, pensar sobre quais seriam os mecanismos que regem o "campo da arte", e que refletem na opção de uma pedagogia voltada para a educação através da arte, que tende a estabelecer seus conceitos, como as concepções sobre a "criatividade", segundo um "modelo social" de abordagem artística, determinado por condições simbólicas, tais como a posse do capital cultural e a "naturalização" de um habitus cultivado, identificado com a "ideologia do dom".

2.O CAMPO DA ARTE

Segundo Bourdieu, o "campo da arte" pode ser definido como um "sistema" ou "espaço" estruturado de posições, que possui regras instituídas que regem o acesso e o êxito no campo e que determinam a posição ocupada por seus agentes, que lutam pela apropriação do "capital cultural". O "capital cultural" pode ser conceituado como sendo mais um bem simbólico (ritos e mitos), que um bem prático, representativo de uma "condição de classe" (instância de poder), e que é definido pela posse de títulos escolares/acadêmicos,somada ao prestígio que eles conferem, assim como ao conhecimento dos "códigos de deciframento estético", através do domínio, em graus diferentes, dos princípios que definem a maneira legítima de abordar a obra de arte. Nessa perspectiva, a expressão habitus, utilizada por Bourdieu (2001, p. 201), corresponde a um "sistema de disposições inconscientes que constitui o produto da interiorização das estruturas objetivas", consistindo num conjunto de esquemas implantados, primeiro através da educação familiar e depois, transformados pela ação escolar, constituindo o princípio de estruturação de todas as experiências ulteriores.

O sistema de bens simbólicos para Bourdieu (2001, p.16), refere-se a bens representativos de uma categoria de "distinções simbólicas" que transmuta os bens em signos, as diferenças de fato em distinções significantes, que devem o essencial de seu "valor" à sua posição em uma estrutura social, definida como um sistema de posições e oposições.

3.A IDEOLOGIA DO DOM

A experiência estética ocorre a partir de diferentes percepções que se estabelecem dentro de um determinado contexto e a partir das relações que cada indivíduo é capaz de desenvolver em contato com a obra de arte. É de fato uma experiência subjetiva, porém pode seguir um conjunto de instrumentos para a apropriação estética. Tal observação nos sugere que existem graus de apreensão estética, através dos quais se dá a configuração da obra de arte no sentido de uma interpretação mais plena, sob os moldes de um sistema de disposições a priori não revelado ao espectador comum.

Bourdieu estabelece uma relação entre a intenção que movimenta a apreciação da obra de arte e as normas de abordagem artística instituídas num determinado contexto histórico-social e que funcionam como um sistema de códigos que rege o campo da arte e que caracteriza o sistema de bens simbólicos. Tais códigos só são acessíveis a quem detêm as categorias de percepção e de apreciação estética.

Segundo Bourdieu (2001, p.271), sobre a apreciação estética:

"A apreensão e a apreciação da obra dependem tanto da intenção do espectador que, por sua vez, é função das normas convencionais que regem a relação com a obra de arte em uma dada situação histórica e social, como uma aptidão do espectador em conformar-se a estas normas, vale dizer, de sua competência artística".

O sentido da "competência artística" para Bourdieu define-se como um conhecimento prévio dos princípios que regem a produção e a interpretação das obras de arte, que permite identificar, numa representação artística, qualidades inerentes à condição de objeto de arte, através do conhecimento das classificações estilísticas pertencentes ao universo artístico.

Conforme Bourdieu, a maneira legítima de abordar uma obra de arte reflete os cânones de uma "estética pura", que se origina nas condições sociais de produção de uma preferência ou um "gosto", considerado como um signo de distinção social.

As normas, que instituem a maneira legítima de abordar uma obra de arte, determinam que a competência artística seja identificada como uma aptidão que se difere em graus de domínio. Sobre o fato Bourdieu e Darbel (2003, p.74) afirmam:

"O grau de competência artística depende não só do grau de controle do sistema de classificação disponível, mas ainda do grau de complexidade ou de requinte desse sistema; portanto, avalia-se através da aptidãopara operarum maior ou menor número de divisõessucessivasno universo das representações e, por conseguinte, para determinar classes mais ou menos apuradas".

O grau de domínio dos códigos estéticos determina um conhecimento da obra de arte que permite ao observador uma identificaçãoque reflete o contato sistemático com referências estéticas.

Numa condição oposta, quando existe uma apreensão superficial da obra de arte, ela deixa de ser revelada ao espectador em sua "integridade". O espectador tende a projetar na obra, quando desconhece o sistema de decifração estética, a experiência fundada na realidade fenomenal, oriunda da percepção cotidiana.

Sobre esse fato, Bourdieu e Darbel (2003, p.80) esclarecem:

"Privados do 'conhecimento do estilo' e da'teoria dos tipos'- únicos procedimentos capazes de corrigir, respectivamente, a decifração do sentido fenomenal e do sentido do significado-, os sujeitos menos cultos estão condenados a apreender as obras de arte em sua pura materialidade fenomenal, ou seja, à maneira de simples objetos de mundo; e se eles se sentem tão fortemente inclinados a procurar e exigir o realismo da representação é porque, entre outras razões, desprovidos de categorias específicas de percepção, não podem aplicar às obras senão a 'cifra' que lhes permite apreender os objetosde seu meio ambiente cotidiano como dotados de sentido".

A"estética" comum entre as classes populares, mais desprovidas de capital cultural, segundo os critérios de conhecimento e acesso a fruição estética, se caracteriza mais pela privação do conhecimento artístico, do que pela recusa, sendo extraída de uma percepção cotidiana, que formula o valor da obra segundo um código familiar, utilizado para a percepção dos objetos cotidianos, constituindo aquilo que segundo Bourdieu (2001, p.287-288), a partir dos estudos de Panofsky (1979), é observado como uma apreensão ingênua fundada na "experiência existencial", isto é, nas propriedades sensíveis da obra ou na experiência emocional baseada nessas propriedades, estando fadadas a uma "estética" funcionalista.

A experiência emocional com a obra de arte é resultante de uma taxionomia cotidiana, "esta classificação das coisas, esta organização utilitária do mundo que nos são ensinadas de modo explícito ou implícito", através dos comportamentos sociais, dos hábitos e costumes, de toda a sugestão sutil, permanente e decisiva que molda e adeqüa o indivíduo (PORCHER, 1982, p. 39).

4.A CONCEPÇÃO DE ARTE PURA E SUA NEUTRALIZAÇÃO

Bourdieu (2001, p.276-278) afirma que a "neutralização" operada pela "arte pura", interpretada dentro do processo de "autonomização" do campo artístico, pode ser identificada através da busca de um olhar puramente estético e voltado ao interesse puro da forma, que tende a criar um sistema uniforme de apreciação estética, revestido de aparente universalidade, constituindo apenas um dos mecanismos de reprodução de um consenso cultural, instituído no interior das classes dominantes e que dispõe as regras necessárias para a admissão de determinados autores e obras artísticas no "panteão da cultura consagrada".

A concepção de uma arte pura, que institui uma "neutralização" operada pelo olhar propriamente estético, constitui um mecanismo de afirmação simbólica, que determina arbitrariamente um modelo de apreensão estética fundado na universalização do gosto e na reivindicação do monopólio da competência artística, e que, segundo Bourdieu, tende a afirmar a autonomia e o distanciamento do campo artístico, transformando o sentido da criação e da arte, em categoria de distinção social e cultural.

Essa mesma força que naturaliza a capacidade para utilizar um modelo de apreensão estética,identifica-se com a ideologia do dom, promovendo o "êxito" na criação e na interpretação das obras de arte, como resultante do atributo pessoal e não do acesso ao exercício da aprendizagem estética e ao convívio com bens culturais, mascarando as disposições sociais de exclusão, que tendem a criar mecanismos de ordem e imobilismo social.

Bourdieu (2001, p.280) desenvolve comentários sobre a "ideologia da percepção ou da interpretação criadora", constituída como uma representação carismática que tende a atribuir à vocação artística, seja pela produção criadora ou pela aptidão de entendê-la e conhecê-la, um "mistério" consagrado a alguns eleitos. A instituição escolar, por uma relação de dependência com a camada dominante, tende ao "culto rotinizado do gênio", reproduzindo os ideais burgueses, que ampliam as diferenças econômicas, pela posse de bens simbólicos, como a posse de obras de arte.

A concepção de arte e criação artística caracteriza-se como um conceito social e, portanto, ideológico, refletindo uma "condição de arte", enquanto um valor cultural e simbólico. A contemplação conduz à fruição e ao prazer estético, como categorias que reconhecem no objeto de arte, elementos ou signos sociais que identificam a função da obra de arte, enquanto imagem estética a ser decifrada, "na recusa da gratuidade, no culto do trabalho ou na valorização do 'instrutivo" (BOURDIEU e DARBEL, 2003, p.74).

Nesse contexto, a contemplação estética torna-se um ato intelectual que pressupõe a aprendizagem e a familiaridade com a obra de arte, configurando-se como um "prazer culto", que ao ser naturalizado no ambiente social como "gosto ou aptidão inata", esconde o arbitrário da inculcação de um modelo determinado pelo sistema de distinção social, configurando um habitus cultivado, como observa Bourdieu.

Bourdieu pondera (2001, p.290) sobre as condições de acesso a obra de arte, supondo uma ruptura com a experiência inicial da obra, isto é, como se ela fosse imediatamente dotada de sentido. O deciframento da obra de arte depende, segundo o autor, do "[...] conjunto das aprendizagens insensíveis que acompanham o convívio prolongado com as obras de arte", desenvolvendo, no espectador cultivado, uma noção de familiaridade tal que ignore o próprio trabalho de familiarização, considerando como natural e espontânea a forma elaborada, que na verdade reflete as referências de uma cultura erudita.

A "intenção estética", capaz de reconhecer os objetos de arte como obras de arte, deriva de uma necessidade arbitrária que impõe uma categoria de disposições normativas, reconhecidas como legítimas, dentro de um arbitrário cultural, que são difundidas através da educação como um produto histórico que deve ser "reproduzido". Nessa "disseminação" de um arbitrário cultural, são camufladas as condições de inculcação. Sobre o fato, Bourdieu (2001, p.272) afirma:

"Na medida em que produz uma cultura [o sentido de competência] que não passa de interiorização do arbitrário cultural, a educação familiar ou escolar tem por efeito mascarar de modo cada vez mais acabado, através da inculcação do arbitrário, o arbitrário da inculcação, ou seja, o arbitrário das significações inculcadas e das condições de sua inculcação".

Na medida que os valores estéticos são reconhecidos e naturalizados dentro de uma percepção cultivada, identificada como um dom, o processo de inculcação desses valores é entendido como uma familiaridade que, por si , nega ou mascara o processo de aprendizado e de acesso à um patrimônio cultural, que, como um bem simbólico, confere uma atribuição e nega esse estado de condição social, numa dupla verdade, instaurada dentro dos cânones de uma "cultura dominante".

No contexto das relações simbólicas, a percepção do observador é identificada com graus e categorias de interpretação socialmente instituídas e que determinam o que é arte e como deve ser apreciada. Porém a experiência com o objeto de arte configura uma busca particular, identificada com uma interpretação subjetiva e que transcende aos modelos de "percepção estética pura" estabelecidos.

Segundo Bourdieu (2001, p. 269), sobre a percepção do objeto de arte:

"A observação estabelece que os produtos da atividade humana socialmente designados como obras de arte [por sua exposição em museus, além de muitos outros signos de consagração] podem tornar-se objeto de percepções consideradas muito diferentes, desde uma percepção propriamente estética considerada socialmente adequada à sua significação específica, até uma percepção que não difere tanto por sua lógica como por suas modalidades daquela aplicada na vida cotidiana aos objetos cotidianos".

A percepção propriamente estética da obra de arte se impõe como qualidade distinta, consistindo numa capacidade de reconhecer esteticamente o que é arte e como tal, deve ser percebida, distinguindo nos objetos de arte o seu sentido estético, através de uma percepção que os diferencia dos objetos comuns, distinta daquela percepção aplicada aos objetos cotidianos. Tal percepção é guiada por um sentido estético socialmente instituído e reconhecido, no campo da arte, que identifica a obra de arte como um bem simbólico. Conforme Bourdieu e Darbel (2003, p.71):

"A obra de arte considerada enquanto bem simbólico não existe como tal a não ser para quem detenha os meios de apropriar-se dela, ou seja, de decifrá-la. O grau de competência artística de um agente é avaliado pelo grau de seu controle relativo ao conjunto dos instrumentos da apropriação da obra de arte, disponíveis em determinado momento do tempo, ou seja, os esquemas de interpretação que são a condição da apropriação do capital artístico, ou, em outros termos, a condição da decifração das obras de arte oferecidas à determinada sociedade, em determinado momento do tempo [...]".

5. O OBJETO DE ARTE

O objeto de arte possui qualidades inerentes que transcendem ao contexto? Ou ele, passa a gozar do atributo de ser objeto de arte, quando é visualizado dentro de um contexto, que lhe confere tal atribuição? Esse contexto, o universo da arte, institui regras e predisposições que delimitam o campo da arte, definindo as categorias da interpretação estética.

Segundo Bourdieu (2001, p.270), a identificação do objeto de arte, como tal, depende da percepção estética do observador, de tal forma que:

"[...] a classe dos objetos de arte seria definida pelo fato de que existe uma percepção guiada por uma intenção propriamente estética, ou seja, percepção de uma 'forma' muito mais que de sua função. [...] Quer dizer que a linha de demarcação entre o mundo dos objetos técnicos e o mundo dos objetos estéticos depende da "intenção" do produtor desses objetos? Na verdade, esta 'intenção' constitui ela própria o produto das normas e das convenções sociais que concorrem para definir a fronteira sempre inserta e historicamente mutável entre os simples objetos técnicos e os objetos de arte".

A citação feita anteriormente tem por objetivo discutir de que forma se dá a percepção do objeto de arte, que o difere dos objetos comuns, da vivência cotidiana. E como a percepção estética se diferencia da percepção cotidiana, fenomenal, aplicada aos objetos cotidianos. Com esse fato, pode-seconcluir que o objeto de arte possui propriedades estéticas identificadas com o contexto em que está inserido, suscitando do espectador o domínio necessário dos códigos de percepção estética para que reconheça a obra de arte, como tal, e compreenda as relações que esta estabelece no meio estético.

O domínio de referências estéticas suscita uma análise relacionada à esfera das relações pedagógicas, pois o conhecimento em arte habilita o aluno à obtenção de maior êxito nas aulas de arte.

6. O ENSINO DE ARTE

Com o fato, cabe refletir de que maneira o aluno tem de fato acesso ao conhecimento em arte, de forma que o habilite a construção do seu próprio conhecimento estético, possibilitando desvendar os códigos que são estabelecidos e que determinam o conhecimento e a interpretação de uma obra de arte. Sobre esse fato, Bourdieu e Darbel (2003, p. 9-10) discutem:

"A ação escolar, bastante desigual - porque atua sobre indivíduos previamente dotados, pela ação familiar, com distintos níveis de competência artística -, envolve jovens já "iniciados" nesse domínio cultural. A escola, ao inculcar disposições duradouras à prática culta, auxiliando decisivamente na transmissão do código das obras da cultura erudita, transforma as desigualdades diante da cultura em desigualdades de sucesso".

A Escola, dentro da perspectiva daideologia do dom, naturaliza, um modelo de indivíduo culto e um padrão de êxito escolar, que na verdade reflete uma condição social que dispõe um maior ou menor acesso aos meios de apropriação e utilização da cultura erudita, ao "capital cultural".

Bourdieu (2001, p.241) afirma ser o sistema de ensino uma poderosa instituição legitimadora dos privilégios sociais, sob uma aparente neutralidade. Sobre o fato, verifica:

"[...] o sistema de ensino tende a transformar os privilégios sociais em privilégios naturais, e 'não de nascimento': a 'inteligência', o 'talento' ou o 'dom' são títulos de nobreza da sociedade burguesa que a Escola consagra e legitima ao dissimular o fato de que as hierarquias escolares que ela produz por uma ação de inculcação e de seleção aparentemente neutra, reproduzem as hierarquias sociais no duplo sentido do termo".

O ensino de arte, objetivando o acesso aos bens culturais e à criação em arte, não exclui do próprio sistema o fator gerador das diferenças de êxito, seja na produção artística como na interpretação das obras de arte, naturalizando o dom e a vocação como atributos pessoais.De fato, é comum nas aulas de arte se escutar comentários referentes aos alunos "talentosos" ou àqueles que não têm de fato "dom" para as atividades artísticas. Isto demonstra como as concepções sobre poder criador e dom para arte são construídas, refletindo um imaginário social, que tende a reproduzir através das distinções de êxito, a condição de classe e de acesso aos bens culturais legitimados. O conhecimento artístico, nesse contexto, é marcado como condição de "cultura", enquanto um bem simbólico que confere e determina um ethos[3], numa propriedade de percepção cultivada.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este artigo teve por objetivo analisar alguns conceitos relacionados com a teoria de Pierre Bourdieu, segundo a ideologia do dom, que podem contribuir para a análise do ensino de arte, quanto ao convívio com referências estéticas presentes na obras de arte, assim como em relação à criação artística.

Foi verificado que tal relação existe de fato e se estabelece no ensino de arte. A criatividade artística é entendida como um "dom", porém também é apresentada como uma capacidade potencial, que pode ser desenvolvida através da interferência do aprendizado, principalmente através da arte.

Foi apresentado que o conhecimento estético, segundo Bourdieu, habilita o indivíduo a reconhecer na obra de arte suas características estéticas, sendo, o mesmo, identificado como "dotado" de um dom para arte. Constatou-se que essa capacidade de domínio dos "códigos de deciframento estético" é, na verdade, uma "competência" cultivada através do contato com obras de arte e do aprendizado de referências estéticas. Porém quando esse suposto "dom" é analisado, quanto à ideologia do dom, segundo os fundamentos teóricos de Pierre Bourdieu, vê-se que ele se naturaliza de tal forma a não se identificar a origem do seu aprendizado, manifestando-se como "natural" ou inato, mascarando as condições de acesso à cultura e aos bens culturais, identificando a capacidade criativa como atributo natural, como um "dom" natural e diferenciado para a criação em arte.

É possível concluir que a percepção estética, segundo os estudos apresentados, é um processo cultivado que depende principalmente da ação escolar. Criar e ser criativo depende fundamentalmente do desenvolvimento e do estímulo, de maneira a possibilitar a estruturação de um conhecimento que habilite o aluno a reconhecer na arte suas propriedades estéticas, e a produzir sua própria representação artística, nas mais diferentes linguagens, dentro do contexto das relações educacionais, estéticas e cotidianas com a arte. Conhecer o universo da arte possibilita reconhecer em si mesmo o potencial criador, através do seu desenvolvimento. A educação através da arte constitui um importante meio para o desenvolvimento da criatividade e do cultivo do conhecimento estético, através do conhecimento da produção artística consagrada e da elaboração de uma expressão estética pessoal.

Referênciasbibliográficas

BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. 5. ed. São Paulo: Perspectiva, 2001.

______ . A Escola conservadora: as desigualdades frente à escola e à cultura. In: NOGUEIRA, Maria Alice ; CATANI, Afrânio (Org.). Escritos de educação. 2. ed. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 1998.

______ . O poder simbólico. 7. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004.

BOURDIEU, Pierre; DARBEL, Alain. O amor pela arte: os museus de arte na Europa e seu público. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo: Zouk, 2003.

PANOFSKY, Erwin. Significado das artes visuais. São Paulo: Perspectiva,1979.

PAREYSON, Luigi. Os problemas da estética. São Paulo: Martins Fontes, 1984.

PORCHER, Louis (Org.). Educação Artística: luxo ou necessidade? 5. ed. São Paulo: Summus, 1982.


[1] Este artigo é obra científica resultante de pesquisa realizada pela autora durante o curso de Mestrado em Educação.A autora é docente do ensino superior, cursos de graduação e pós-graduação, Mestre em Educação pela USF, Licenciada em Pedagogia e Licenciada em Artes Plásticas pela FAAP.

[2] Louis Porcher, em seu livro Educação Artística, Luxo ou Necessidade?, desenvolveu estudos relacionados ao prazer estético, através da interferência da aprendizagem escolarizada, em arte. Utilizou, dentre as fontes teóricas citadas, os estudos de Pierre Bourdieu em L' amour de l'art, Lês musées d'art europées et leur public, ed. De Minuit, 1965, p. 108.

[3]Segundo Bourdieu, ethos (in Escritos de Educação: p.42) refere-se à "um sistema de valores implícitos e profundamente interiorizados que contribui para definir, entre coisas, a atitude face ao capital cultural e à instituição escolar".