* Wellington Albuquerque Assis TON

Não obstante a limpidez da regra constitucional (artigo 37), em especial do inciso II, que trata da investidura em cargo ou emprego público por meio de aprovação prévia em concurso público, milhares têm sido as contratações de servidores pela Administração Pública sem realização de concurso, o que, na prática, gera efeitos irreversíveis para ambos os lados.

Se for certo que o capítulo destinado à administração pública o legislador impôs para a observância dos princípios da publicidade e moralidade, a prévia aprovação do servidor em concurso público, não é menos verdade que, no Título I, ao tratar dos princípios fundamentais, o legislador constitucional impôs como fundamentos, dentre outros, a dignidade da pessoa humana e o valor social do trabalho.

Desse modo, a contratação de servidores sem a realização de competente e necessário certame, implica grave violação às normas constitucionais trabalhistas, principalmente dos princípios já mencionados, da dignidade da pessoa humana e do valor social do trabalho.

Por outro lado, a contratação de servidor sem prestação de concurso público pode gerar para a Administração Pública uma punição por tratar-se de um ato de nítida improbidade administrativa.

Já o "servidor" contratado sem passar pelo crivo de um concurso público, também é penalizado, tendo em vista que, na grande maioria dos casos, recebe um salário inferior ao próprio mínimo legal e ainda vê-se tolhido dos demais direitos inerentes ao trabalhador, sendo ele concursado ou não.

É notório que, via de regra, após a promulgação da Constituição de 1988, a contratação de servidor só se dará através de concurso público, salvo exceções elencadas nos artigos seguintes, sendo tal contratação considerada nula de pleno direito, gerando ao trabalhador tão somente o direito à percepção da contraprestação pactuada e o número de horas trabalhadas, bem como os valores referentes aos depósitos do FGTS.

Onera-se, portanto, severamente o trabalhador, que de boa-fé entregou a sua força de trabalho ao Ente Público diante da necessidade de buscar sustento para si e sua família, ao passo que é beneficiada a Administração Pública, permitindo-se que essa possa locupletar-se da própria torpeza.

Esse quadro de exploração de mão-de-obra barata, frisa-se, mão-de-obra barata, é reflexo do paternalismo judicial no sentido de não punir os Administradores diante desta exploração; isso sem mencionar a queda de braço travada entre Justiça do Trabalho e Justiça Comum no tocante a competência para apreciação da matéria discutida.

Conforme preconiza o inciso I do artigo 114 da Constituição Federal, a relação de trabalho é gênero, estando implícita a competência da Justiça do Trabalho para julgar questões inerentes a discutida neste artigo.

Várias decisões no âmbito do Superior Tribunal de Justiça e do Tribunal Superior do Trabalho foram no sentido de que as contratações de servidores públicos sem prévia aprovação em concurso são irregulares e compete a justiça do trabalho processar e julgar a questão.

Nessa esteira, o Supremo Tribunal Federal, em sede de liminar na ADI 3.395-6, suspendeu qualquer tipo de interpretação dada ao inciso I do artigo 114 da Constituição Federal, que incluía, na competência da Justiça do Trabalho, a apreciação de causas que sejam instauradas entre o Poder Público e seus servidores, a ele vinculados por típica relação de ordem estatutária ou de caráter jurídico-administrativo.

Ocorre que, com o devido respeito, o caso ventilado não se enquadra em nenhuma das duas situações mencionadas na liminar deferida pelo Egrégio STF, pois não se trata aqui de servidores concursados, regidos por estatuto do servidor público e, muito menos, servidores contratados em caráter jurídico-administrativo, ou seja, em caráter temporário.

A prestação de serviços em comento refere-se a uma contratação sem prestação de concurso público, de caráter precário, e já reconhecida por muitos Tribunais como uma contratação nula, não se enquadrando, portanto, nos moldes alinhavados na liminar da ADI 3.395-6.

Diante disso, é louvável a mudança de pensamento que floresce nas decisões de alguns magistrados, condenando o Ente Público ao pagamento de um salário mínimo mensal diante da carga horária estipulada pela Constituição e também ao pagamento do Fundo de Garantia pelo Tempo de Serviço, bem como uma indenização justa, baseada no montante de verbas indenizatórias a que o trabalhador teria direito, tudo à luz dos Princípios da dignidade da pessoa humana e do valor social do trabalho.

Neste sentido os ensinamentos de ORLANDO GOMES e ELSON GOTTSCHALK ("Curso de Direito do Trabalho", 1ª edição, Forense, 1990, vols. I e II, pags. 136/137): "O princípio, segundo o qual o que é nulo nenhum efeito produz, não pode ser aplicado ao contrato de trabalho. É impossível aceitá-lo em face da natureza da prestação devida pelo empregado. Consistindo em força trabalho, que implica em dispêndio de energia física e intelectual, é, por isso mesmo, insuscetível de restituição ... Deve-se admitir em toda extensão o princípio segundo o qual 'trabalho feito é salário ganho'. Pouco importa que a prestação de serviço tenha por fundamento uma convenção nula. Em Direito do Trabalho, a regra geral há  de ser a 'irretroatividade das nulidades'. O contrato nulo produz efeitos até a data em que for decretada a nulidade. Subverte-se, desse modo, um dos princípios cardeais da teoria civilista das nulidades. A distinção entre os efeitos do ato nulo e do ato anulável, se permanece para alguns, não subsiste em relação a este contrato".

Cabe lembrar a previsão do artigo 158 do Código Civil Brasileiro, no sentido que "anulado o ato, restituir-se-ão as partes no estado, em que antes dele se achavam, e não sendo possível restituí-las, serão indenizados com o equivalente". (ALVACIR CORREA DOS SANTOS, "A Contratação de Trabalhador Pela Administração Pública, Sem o Prévio Concurso Público" - LTr 59-07/909 a 917).

Segundo a cátedra sempre precisa de JOSÉ MARTINS CATHARINO, "No exame concreto da imputabilidade não podem deixar de ser considerados: 1. que o empregado esteve subordinado durante o tempo em que o contrato imperfeito vigiu; 2. que a razão de ser do Direito do Trabalho é a proteção do empregado, mediante tratamento desigual compensador da desigualdade econômica entre ele e o empregador... O culpado da imperfeição do contrato de emprego deve indenizar o outro contratante inocente, o qual para a invalidade não concorreu, devendo ser esquecido que o ato praticado em estado de necessidade não é ilícito". ("compêndio de Direito do Trabalho", Saraiva, 1981, pag. 268).

No âmbito jurisprudencial, podemos citar:

"Emprego Público - ... - Nulidade do Contrato - Efeitos - O Direito do Trabalho rege-se principalmente pelo princípio da irretroativade das nulidades, onde os efeitos da decisão que declara a nulidade do contrato são "ex nunc" (TST – RR - 38036/91.7, Ac. 4ª T 1288/93, de 13.5.93, Rel. Min. Leonaldo Silva - LTr 58-02/239).

"O causador da nulidade não pode impunemente alegá-lo em favor próprio (art. 97 do CC), devendo, por conseguinte, responder pelos seus atos no limite legal, que é o custo das indenizações rescisórias" (TRT 22ª Reg. RO-RA-REO 140/93, Ac. 268/93, de 05.05.93, Rel. Juiz José Francisco Meton Marques de Lima - LTr 58-01/99).

"Sentença que reconhece a nulidade do contrato laboral tem natureza constitutiva e, consequentemente, efeito "ex nunc" permitindo que o empregado possa exigir pelos serviços prestados a mesma remuneração de um contrato válido" (Trt 22ª Reg. RO 88/92, Ac. 61.93, de 03.03.93, Rel. Juiz Antônio Ernane Cacique de New York - LTr 58-9/1136) - nos fundamentos: A nulidade assoalhada por quem lhe deu causa já  deve ser motivo de condenação, porque ninguém deve ser ouvido em juízo quando alega sua própria torpeza. Atribuir ao empregado a co-participação no ato nulo é também iniquidade. Os atos da Administração desfrutam da presunção de legalidade, o que significa a crença generalizada dos que contraem vínculo de qualquer natureza de participarem de atos legítimos. O princípio "nemo consetur ignorare" sofre temperamentos no Direito do Trabalho. Não é possível incutir que empregado humilde tenha de conhecer uma legislação que a própria Administração Pública, bem aparelhada, ignorou.

"Contratação Sem Concurso Público - A irregularidade na contratação do obreiro não possui o condão de eliminar as garantias mínimas asseguradas ao mesmo pela legislação laboral, inclusive CF/88. O Poder Público deve arcar com o ônus da contratação irregular, servindo-se posteriormente da Ação Regressiva contra o responsável pelo ato inquinado de nulidade, nos termos dos parágrafos segundo e sexto do artigo 37 da Lei Maior". (TRT 7ª Reg. REX-OF-RV 4251/93 - Ac. 1530/94, de 19.5.94, Rel. Juiz Manoel Arízio Eduardo de Castro - LTr 58-09/1100).

"Em tendo o ente público contratado ao arrepio da lei, malferindo o princípio da legalidade, não pode o Poder Judiciário referendar a contratação de ato nulo. Essa praxe constituiria porta aberta para o "inchamento" da máquina administrativa com o referendo e a conivência do judiciário. Aplicável em casos tais a regra doutrinária, qual seja, a de que em se anulando o ato os efeitos daí decorrentes se projetam "ex nunc". Todavia, em sendo impossível retornarem-se as partes ao "status quo ante" - e se o trabalhador já  deu a sua força de trabalho, esta não poderá  ser restituída - o ato nulo surtirá  todos os efeitos pecuniários. A própria lei civil também prevê exceção (art. 217, CC). E também não elimina a responsabilidade (art. 159, CPC). O que se não pode admitir é que o ente público venha a levar vantagem com a sua própria torpeza" (TRT 2ª Reg. ROE-XOFF 029940453866 - Ac. 5ª T 6435/96-0 - Rel. Juiz Francisco Antônio de Oliveira - LTr 60-05/674).

Contudo, abstraído o engessamento da teoria civilista das nulidades, espera-se que prevaleça o bom senso dos Julgadores ao apreciar questões dessa natureza, a fim de que não se prestigie a figura do locupletamento ilícito da Administração Pública em detrimento dos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e do valor social do trabalho.