A CONTRADIÇÃO DA IGREJA AO PERMITIR ANULAÇÕES DE MATRIMÔNIO: `O QUE DEUS UNIU` NINGUÉM SEPARA?* 

      Janaína de Mendonça Baldez**                                                                                                                                                                       Luiza Fonseca Campos

RESUMO

No presente trabalho, adentraremos no campo matrimonial do Direito Canônico. Sobre o sacramento da instituição religiosa do matrimônio e em como a Igreja se contradiz ao permitir a anulação do matrimônio mesmo quando prega que esse é indissolúvel. Explana-se também sobre as principais diferenças entre a anulação do matrimônio, o divórcio e o desquite e nas influências do Direito Canônico nos processos matrimoniais atuais. 

                                                     PALAVRAS-CHAVE

     Direito Canônico. Matrimônio. Anulação.

INTRODUÇÃO

 

            É dito na própria Bíblia que “o que Deus uniu homem nenhum separa”[1], o matrimônio é um sacramento, uma instituição da Igreja Católica tida como eterna e indissolúvel, é um pacto feito entre as partes para que os cônjuges comunguem intimamente da vida um do  outro.

            Porém apesar de toda essa inflexibilidade da Igreja Católica em relação à durabilidade, validade e nulidade do matrimônio este em alguns casos ainda pode ser anulado por solicitação dos próprios contraentes. Devido fidelidade e tradição na doutrina do Cristianismo a Igreja Católica não admite o divórcio, mas reconhece que algumas vezes pode acontecer de que núpcias contraídas em condições normais podem apresentar características que fundamentem um pedido de anulação por uma parte ou por outra. Ou seja, em alguns casos é admitida a anulação o que acaba indo de encontro ao que foi pregado no evangelho de São Marcos logo acima.

                A Igreja Católica, portanto, permite somente a anulação do casamento, o que é bem diferente do divórcio e do desquite, evoluções no decorrer da história dos processos matrimoniais, que não deixaram de ser influenciados pelo Direito Canônico.

                

1 O MATRIMÔNIO COMO SACRAMENTO   

 

                Todo e qualquer matrimônio deve ter elementos constitutivos básicos, como é descrito no próprio Cânon 1055 do Código do Direito Canônico:

                                                                           

                        "O pacto matrimonial, pelo qual o homem e a mulher constituem entre si o consórcio de toda a vida, por sua índole natural ordenado ao bem dos cônjuges e à geração e educação da prole, entre batizados foi por Cristo Senhor elevado à dignidade de sacramento."

            Logo no início a Bíblia começa falando que Deus criou o homem à sua imagem e semelhança[2]. Diz então que o matrimônio é um sacramento natural à pessoa humana, assim como a própria criação, no matrimônio válido origina-se um vínculo de natureza eterna e exclusiva, o vínculo matrimonial portanto é indissolúvel, dá origem a uma aliança irrevogável.   

            O amor conjugal tem algumas exigências, obviamente, é respaldado pela afetividade e pela força do sentimento e exige fidelidade e abre-se também para a fecundidade.

            A consideração sacramental do matrimônio levou em tempos recentes a ser qualificado como aliança e não como contrato, uma aliança assim entre pessoas humanas. A aliança não existe concretamente antes do acordo de vontade entre as partes , na verdade, a aliança é o efeito do sacramento.[3]

            O matrimônio visto como sacramento é tão importante que os profetas do Antigo Testamento se referiram à ele em seus textos. [4]

            O amor conjugal exige do casal uma fidelidade que não pode ser violada, mesmo sendo difícil coabitar para o resto da vida com outra pessoa, é essencial para a verdadeira manutenção do matrimônio.

            A mulher que se separar do seu marido para coabitar com outro estará cometendo adultério e vice versa. Assim como fala o evangelho de São Marcos, 10, 11-12.

“E ele lhes disse: Qualquer que deixar a sua mulher e                        casar com outra, adultera contra ela.. E se mulher deixar a seu marido e casa com outro , adultera.

Parafraseando o Papa Pio XI: “O matrimônio é a união do homem e da mulher, o consórcio de toda a vida, comunicação do direito divino e humano.”[5]

                                                 

 

2 O PROBLEMA DA CONSUMAÇÃO COMO MOTIVO QUE LEVA À ANULAÇÃO

 

                Um dos motivos que justifica a anulação do casamento para a Igreja Católica é a não consumação do matrimônio. Os autores mais antigos chegavam a admitir como verdadeira consumação do matrimônio, uma cópula realizada pela força, porém a doutrina e jurisprudência mais atuais insistem em que a consumação de um matrimônio não se pode identificar sem mais como um ato puramente físico sem a vontade de uma das partes.[6]

            Casos como o da não consumação justificam a anulabilidade, pois o matrimônio é uma sacramento e como qualquer outro sacramento é necessária matéria, intenção e forma válidos.[7]

            A matéria do matrimônio portanto é a entrega recíproca dos corpos e das almas entre os nubentes e quando essa não é consumada o matrimônio também não o é.

            Há uma diferença entre nulidade e ilicitude. Nulo é aquele que apesar de ter aparência de validade não é capaz de produzir efeitos próprios. Ilícito é o ato válido, não nulo, mas realizado em desacordo com a lei.

            Um matrimônio, por exemplo, realizado sob as devidas ordens mas em que um dos cônjuges está predisposto a impedir o fim procriativo pode ser considerado nulo.

            Um casamento é considerado ilícito por exemplo quando a cerimônia é realizada em desacordo com as normas litúrgicas, por exemplo, ou quando os nubentes estão sob censura eclesiástica.

            Existem outros casos de nulidade de matrimônio também. É nulo o matrimônio em que um dos nubentes é obrigado a se casar pelos pais, pois não será de livre vontade esse casamento; ou uma moça que se encontra grávida e deseja casar-se pela pressão social que esse fato lhe impõe ou mesmo um católico que se case em uma igreja protestante.

            Esses são alguns exemplos, mas toda e qualquer decisão deve ser tomada pelo Tribunal Eclesiástico.

3 O TRIBUNAL ECLESIÁSTICO E SUA MAGNITUDE NAS DECISÕES MATRIMONIAIS  

            Dentro da organização da Igreja Católica há o Supremo Tribunal, também chamado de Sé Primeira, ele é o último grau de jurisdição, chegando-se nele não é permitido qualquer recurso. Qualquer católico tem o direito de reclamar perante o Tribunal Eclesiástico, o procedimento começa na Diocese regional, onde o bispo funciona como juiz de primeira instância.[8]

            Apesar do processo burocrático a ser enfrentado no tribunal canônico, os pedidos de anulação de casamento vêm crescendo cada vez mais. Em 1997 foram mais de 100 pedidos apenas na Cúria de São Paulo.[9]  

A existência do Tribunal Eclesiástico é importantíssima para a resolução dos conflitos e litígios na sociedade que é a Igreja. O juiz eclesiástico é a figura mais marcante dessa situação. As mais diversas causas podem ser julgadas pelo Tribunal Eclesiástico, imposição de excomunhão, delitos cometidos por sacerdotes, mas as causa mais comuns dizem respeito ao que se refere à anulação de matrimônios, a partir da entrada do pedido, devem ser avaliados os fatos e daí é tomada a decisão.

Cerca de 90 % dos casos resolvidos pelo Tribunal Eclesiástico estão ligados à questão matrimonial [10], o tribunal eclesiástico é um órgão da cúria diocesana. A principal finalidade dele é a resolução dos conflitos, sobretudo através das vias conciliatórias, haja vista os imperativos evangélicos do perdão das ofensas e do amor fraterno. Por diversos motivos, entretanto, estas cortes eclesiásticas transformaram-se em autênticos tribunais matrimoniais, onde se propõem ações declaratórias de nulidade do sacramento do matrimônio, exatamente por que esses casos são mais comuns.

Casos que dizem respeito à beatificação ou canonização de santos são direcionados e resolvidos pelo próprio Papa.

4 PROCESSOS HISTÓRICOS DE SEPARAÇÃO: DO DESQUITE AO DIVÓRCIO

            O divórcio foi criado por lei em 1977, antes disso se utilizava a expressão “desquite” para se referir à  separação matrimonial, utilizava-se mais especificamente as expressões  “Desquite por mútuo consentimento” e “Desquite litigioso”, até o presente ano a sociedade conjugal se dissolvia com o desquite, o que hoje equivale à separação judicial .

            No desquite apenas a sociedade conjugal era extinta, pondo fim ao deveres de coabitação, fidelidade e ao regime de bens. Após a Lei do Divórcio[11], esse vínculo passou a ser suscetível de dissolução, pois o divórcio tem a função de romper com o vínculo matrimonial.

Com o divórcio, a relação jurídica antes existente entre os cônjuges, decorrente do casamento, se extingue, podendo o cônjuge divorciado contrair novas núpcias.

Esses processos de separação, desde o desquite até o divórcio, aprovado após 1977, tiveram influência das decisões do Tribunal Eclesiástico em relações à anulação, pois essa não deixa de ser uma forma de separação também.

A tramitação judicial de um divórcio, geralmente é demorada, mas em certos casos pode ser bem rápida, nesse caso para o casal que estiver se divorciando de forma amigável e não tiver filhos menores nem inválidos.

Nesse caso os advogados de ambas as partes irão elaborar uma minuta dos termos e condições da separação, no que diz respeito à pensão, nome de solteiro e particularidades de cada casal.

Após tudo acordado e decidido o tabelião lavrará o fato transformando em escritura pública os cônjuges assinarão. O casal ficará isento de despesa se provar que não tem condições financeiras para as despesas do cartório.[12]

No passado era inimaginável que um casal pudesse dissolver um matrimônio, que era considerado indissolúvel, tão rapidamente como desta maneira, pois em em 1900, casava-se para sempre. Não se concebia a possibilidade de algum dos cônjuges querer, um dia, separar-se. Só a morte tinha essa competência. E, sozinho, o outro teria, em geral, que ficar viúvo, fiel à memória do cônjuge falecido, atualmente as coisas já são bem diferentes.

Não foi bom somente para os casais que querem se separar, mas também para desafogar e agilizar os processos em relação à divórcio.

5 O MATRIMÔNIO MISTO E DÍSPAR

           

            Por definição, o matrimônio misto é aquele em que apenas uma das partes é católica.

            De acordo com as doutrinas católicas, a natureza sacramental do matrimônio é totalmente independente da convicção que os cônjuges ou os ministros assistentes possam ter a esse respeito: para que haja o sacramento, basta a base do batismo (que dá uma participação real no sacerdócio de Cristo) e a vontade autêntica, externamente manifestada, de constituir uma comunhão de vida conjugal.

            Para o matrimônio misto é necessária a permissão expressa da autoridade eclesiástica.

O Ordinário do lugar não pode conceder a licença para o matrimônio misto a não ser que se cumpram certas condições, tal como a que diz que “a parte católica declare que está disposta a afastar o perigo de vir a perder a fé e faça uma promessa sincera de que fará tudo o que estiver em suas forças para que toda a prole seja batizada e educada na Igreja Católica".[13]

A situação só pode ficar ainda mais grave se o casamento o matrimônio for díspar, nesse caso entre um católico e um não cristão, não haverão divergênicas somente a respeito da doutrina cristã e sim a respeito da própria fé do companheiro e na própria concepção do matrimônio.

Por isso sabiamente a Igreja exige a permissão do Ordinário do lugar (bispo ou outro) para a liceidade do matrimônio misto e a dispensa da disparidade de culto para a validez do matrimônio díspar.

Os fundamentos destes requisitos se baseiam no perigo para a parte católica de perder a fé e de que os filhos havidos no matrimônio não sejam educados de acordo com as linhas doutrinais e morais da religião católica.

 

CONCLUSÃO

Após a exposição de todas as informações acima se pode concluir que a Igreja Católica acaba se contradizendo ao permitir as anulações de casamento, pois ela mesma prega que “o que Deus uniu ninguém separa”, é paradoxal um sacramento como o matrimônio poder ser desfeito por um Tribunal, sendo que o mesmo é pregado como indissolúvel.

A demanda por anulações está cada vez maior, e os pedidos de divórcio também. Demanda essa que mostra como a população está conhecendo e exercendo seus direitos, rompendo barreiras e ultrapassando preconceitos.

Daí surge outra situação ímpar, a que mostra que mesmo com o aparente distanciamento do homem com a religiosidade, a aprovação da Igreja ainda é importante.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

REFERÊNCIAS

 

BÍBLIA SAGRADA,  King’s Cross Publicações, São Paulo, 2006

BRASIL. Legislação Complementar. Lei n. 6.515/77 de 28 de junho de 1977, São Paulo, Rideel

BRASIL. Legislação Complementar. Lei nº 11.441/07 de 4 de janeiro de 2007, São Paulo, Rideel

BRODBECK, Rafael Vitola. Hipóteses de Nulidade e Dissolução do Vínculo Matrimonial. Disponível em : http://www.veritatis.com.br/article/3188. Acesso em: 31 out 2009  

 

HORTAL, Jésus. O que Deus uniu. Edições Loyola. São Paulo, 2006

ROSA, Vânia de Almeida. Até que a morte no separe? Disponível em : http://www.assuntoprincipal.com.br/index.php?option=com_content&view=article&id=86:-atue-a-morte-nos-separe&catid=35:papo-legal. Acesso em 31 out 2009

SAMPEL, Edson Luiz. Tribunal Eclesiástico: Braço do Poder Judiciário da Igreja. Disponível em : http://www.infosbc.org.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=643:tribunal-eclesiastico-braco-do-poder-judiciario-da-igreja&catid=114:-dr-edson-luiz-sampel-&Itemid=13. Acesso em: 31 out 2009



* Artigo científico apresentado à disciplina de História do Direito do 2º período vespertino do curso de Direito da Unidade de Ensino Superior Dom Bosco (UNDB) ministrada pelo professor Elton Fogaça para obtenção de nota.

** Alunas do 2º período vespertino do curso de Direito da Unidade de Ensino Superior Dom Bosco.

[1] Por isso deixará o homem a seu pai e a sua mãe, [e unir-se-á à sua mulher,]
e serão os dois uma só carne; assim já não são mais dois, mas uma só carne.
Porquanto o que Deus ajuntou, não o separe o homem.”

Mc, 10: 7-9

[2] Gn 1, 26-27

[3] “... uma vez constituída a aliança não é o sacramento propriamente dito mas sim o efeito deste.”

HORTAL, Jésus. O que Deus uniu. Pág. 34, São Paulo, 2006

[4] Jr 2,2; 3, 1-13; Is 54, 4-9

[5] PIO XI, Carta Enc. Casti Connubii, 31 de dezembro de 1930. Ed. Vozes de Petrópolis, n 87.

[6] HORTAL, Jésus. O que Deus uniu. Edições Loyola, São Paulo, 2006

[7] Brodbeck, Rafael Vitola in http://www.veritatis.com.br/article/3188. Acesso em: 31/10/09  

[8] ROSA, Vânia de Almeida in http://www.assuntoprincipal.com.br/index.php?option=com_content&view=article&id=86:-atue-a-morte-nos-separe&catid=35:papo-legal. Acesso em 31/10/09

[9] Revista Época, edição de 22 de Junho de 1998

[10] Sampel, Edson Luiz in http://www.infosbc.org.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=643:tribunal-eclesiastico-braco-do-poder-judiciario-da-igreja&catid=114:-dr-edson-luiz-sampel-&Itemid=13. Acesso em: 31/10/09

[11] BRASIL. Legislação Complementar. Lei nº. 6.515/77 de 28 de junho de 1977.  

[12] BRASIL. Legislação Complementar. Lei nº 11.441/07 de 4 de janeiro de 2007

[13] SHUSTER, Pe. José Inácio in http://www.cnd.org.br/art/schuster/casamentomisto.asp. Acesso em: 31/10/09