Artigo

Titulo: A construção sociocultural do corpo e sua relação com a religião
Resumo: O presente artigo faz uma análise sociocultural do corpo e busca na teoria sociológica das técnicas corporais postuladas por Marcel Mauss as relações do corpo como um construto sociocultural e procura delinear a partir de tal concepção a sua relação com a religião na sociedade moderna. Diante de tais constatações faz-se necessário identificarmos até que ponto a religião e a sociedade tornam tradicionais os modos de aceitar as configurações que o corpo recebe ou de como modificá-lo no que concerne aos elementos fundamentais de sua estrutura.
Palavras-chave: Corpo, sociedade, técnicas corporais, religião, homossexualidade.

Abstract: This article makes an analysis of sociocultural and body search techniques in sociological theory postulated by Marcel Mauss bodily relations of the body as a sociocultural construct and seeks to draw from such a conception to its relationship with religion in modern society. Given these findings it is necessary to identify the extent to which religion and society render the traditional ways of accepting the settings that the body receives or how to modify it in relation to the fundamental elements of its structure.
Keywords: Body, society, physical expression, religion, homosexuality.

Introdução
A análise da relação entre corpo e homossexualidade restitui ao centro da nossa discussão confrontos com elementos de um mundo que varia conforme as condições materiais, os meios de habitação, os estados físicos, os sentidos, a imposição de modos diferentes de experimentar as crenças, enfim, um mundo que também apresenta uma variedade de culturas e elementos simbólicos que ao mesmo tempo, interagem e ao mesmo tempo, se chocam.
Evoluímos, de certa forma, no que concerne ao avanço científico e tecnológico, as barreiras intransponíveis com relação às pesquisas em nível tecnológico e científico têm sido cada vez mais transpostas devido à eficiência das pesquisas, porém no que concerne às relações sociais, percebemos que as barreiras se impõem numa dinâmica que pressupõe um recalcamento, um eterno retorno do reprimido e da repressão, para tal constatação, basta olharmos os noticiários e sermos atentos ao mundo que está a nossa volta. Em meio a toda essa gama de situações que envolvem o corpo e sua relação em sociedade, percebemos claramente que a nossa cultura, científica, tecnológica, religiosa e secularizada, precisa de uma profunda reflexão sobre o lugar que o corpo ocupa na sociedade e seus desdobramentos, pois na história do corpo revela-se o universo cultural, religioso, social e econômico do indivíduo e da sociedade, e há de se levar em consideração que não há como analisarmos a homossexualidade sem dissociá-la dessa questão, uma vez que não nos faltam exemplos de que a oposição entre coação e liberdade ainda continua sendo ventilada sob os pilares de uma "insensível" e suposta democratização que marca o mundo moderno, cerceado por discriminações duráveis, principalmente em relação à homossexualidade, que em pleno século XXI ainda continuam sendo o "ponto-fronteira" entre religião e sociedade, ao invés de ser o "ponto-emancipação" de uma sociedade que se autodenomina democrática e livre.
Se o corpo é reflexo de uma sociedade, qual é o seu espaço numa sociedade moderna? Será que em relação à homossexualidade, esse corpo reflete as insígnias de uma sociedade tradicional? O corpo contemporâneo é livre ou controlado? Quais os limites que a religião impõe a esse corpo e suas possibilidades de "significar" quanto à homossexualidade? Para tantas inquietações é plausível identificarmos até que ponto a religião e a sociedade tornam tradicionais os modos de aceitar as configurações que o corpo recebe ou de como modificá-lo no que concerne aos elementos fundamentais de sua estrutura.
1. O corpo como um construto social
Cada sociedade produz uma compreensão de representações sociais de grupos particulares, Mauss indica-nos que a produção das técnicas corporais eficazes e tradicionais de uma sociedade, permite-nos entender certas especificidades de uma cultura. Através desta análise, podemos observar que uma série de atos são repassados à pessoa pela educação, pela sociedade e pelo papel que ela ocupa nela. O corpo e sua simbologia, conforme defende Mauss, é o instrumento primeiro e o mais natural objeto técnico do ser humano onde são inscritas as tradições de todo sistema da sociedade. (MAUSS, 1974, p. 211)
Desta forma, uma pequena ação ou gesto podem traduzir com clareza certos elementos culturais aprendidos pelo indivíduo dentro de sua comunidade. As técnicas corporais, inserem -se assim, num sistema de montagens simbólicas que são apreendidas pelos indivíduos que compõem determinado grupo social. "O corpo constitui um subsistema cultural, por meio do qual o indivíduo cria valores, coesão e interage com o mundo e com o outro". (VILLAÇA, 2007, p. 56)
Assim, sendo, é pertinente considerarmos que ocorre um processo de socialização onde a cultura, enquanto instrumento de controle, dita normas em relação ao corpo; normas estas a que o indivíduo tenderá a adaptar-se a certos padrões de comportamento que se tornarão naturais e comuns, que serão transmitidos por certos fatores a serem considerados decisivos nesse processo, ou seja, pela educação, quando se insiste que o indivíduo aprenda algo ou pela imitação, quando o indivíduo imita o que considera atos legítimos. Portanto, podemos considerar que os fatores que determinam as técnicas corporais como a educação, a sociedade da qual fazemos parte e o lugar que ocupamos na sociedade, são determinantes no que concerne à construção das dinâmicas sociais e das identidades locais que se chocam, se aliam, e por vezes, se cruzam.
Na análise do autor José Carlos Rodrigues, o corpo se torna uma expressão restrita e controlada pela sociedade. "No corpo está simbolicamente impressa a estrutura social e a atividade corporal não faz mais que torná-las expressas. Assim, a experiência do corpo (do sujeito) é sempre modificada pela experiência da cultura". (RODRIGUES, 1975, p. 125)
O corpo se torna um dado importante na forma como a sociedade dele se serve e a partir dos qual cria ordem e consonância de percepção nos níveis simbólicos. "Certos padrões culturais podem também ser expressos e representados através dos ritos simbólicos onde a manipulação e a experiência do corpo podem ser controladas". (FASSHEBER, 2001, p. 6)
As construções e representações que cada sociedade faz dos seus corpos revelam a maneira como produzimos e reproduzimos nossas organizações e conhecimentos. "Ao manter contato com outras pessoas, revelamo-nos pelos gestos, pelas atitudes, pela mímica, pelo olhar, pelos movimentos que expressam nossas manifestações corporais". (GALLO, 2003, p. 65)
Apesar de vivermos numa sociedade moderna que tem como característica a fragmentação e a superação à qualquer forma de organização e tradição, soa-nos estranho pensar numa articulação em relação à tradição que pressupõe comportamentos corporais em consonância com a experiência de propagação e reprodução, mas segundo Ortiz, as diferentes tradições se articulam na modernidade. O processo de transformação das tradições é radical no âmbito da modernidade. Na sociedade contemporânea, cuja cultura é mundializada (ORTIZ, 2007), certos elementos técnicos são retirados do seu lugar de origem e colocados num lugar de destaque, como referentes globalizados.
Em relação às técnicas corporais, determinados gestos são colocados em movimento pela mundialização da cultura e a modernidade tende a universalizá-los. Contudo, não podemos esquecer que tais gestos técnicos são construções culturais que surgiram em contextos históricos e socialmente concretos, portanto, sua origem é local. Também não se pode perder de vista que a modernidade que se apresenta em nossa sociedade e sua pretensão de universalidade não ocorrem de forma justa e democrática em todos os contextos. Como conseqüência, não são apenas as técnicas que se tornam universais, mas também as ideologias que surgem com elas. Isso explica porque determinados gestos técnicos tradicionais e eficazes no plano local são postos de lado em nome de certos "universais" na dinâmica da modernidade-mundo. Isso gera certas ideologias sobre as técnicas corporais que são perceptíveis no âmbito simbólico.
O conceito de imitação prestigiosa de Mauss, segundo a qual "aprende-se o que se deve ou não fazer com o corpo por meio de um processo simultâneo de transmissão/aquisição" (RIVERA, 2005, p. 14). Nesse caso, pressupõe que os atos de pessoas bem sucedidas tendem a ser imitados e tornam-se referências no que concerne a um controle social dos corpos por intermédio de determinadas instituições, inclusive as religiosas.
Existe uma maneira adquirida e não natural de se comportar e de se dispor o corpo. Isso evidencia o quanto as técnicas são aprendidas socialmente e o quanto a elas estamos ligados, na medida em que recebemos uma educação que nos leva a adotar determinado tipo de comportamento. "Essa "natureza social do habitus", varia não simplesmente de acordo com os indivíduos e suas imitações, mas sobretudo, com as sociedades, a educação, as conveniências, as modas, os prestígios". (MAUSS, 1974, p. 214)
Toda sociedade tende a desenvolver, assim, a sua própria maneira de compreender o mundo e nele se insere criando técnicas corporais nas quais desenvolvem-se todas as formas de uso do corpo criadas pelos seres humanos em sociedade ao longo do tempo. O ser humano cria, ao longo de sua existência e em função do contexto cultural no qual está inserido, certos costumes que vão se tornando tradicionais, e que são transmitidos de geração em geração, justamente porque são dotados de eficácia simbólica, ou seja, respondem a certas demandas da sociedade local, adotando significados que se tornam importantes para aquele determinado grupo social e que cria os modos operantes de organização desse mesmo grupo. Portanto, os mecanismos de controle social do corpo desenvolvem-se de acordo com o conjunto de valores, normas e costumes instituídos pela sociedade.
Focault evoca também o conceito de um corpo concebido como alvo do poder, como um objeto tão investido e modelado por ele que segrega uma visão do mundo e da sociedade na qual está inserido (FOUCAULT, 1987). O corpo quando sujeito às normas se torna um corpo corrigido, no qual a sujeição física se torna numa consciência também subjugada. Isso determina os fatores preponderantes com relação à homossexualidade em nossa sociedade, uma vez que as normas, as técnicas corporais desenvolvidas ao longo dos tempos determinaram a maneira pela qual esse corpo haveria de ser controlado, regimentado, o que permite-nos analisar o corpo não só como um produto biológico, mas como um processo de construção social que revela como os nossos gestos mais "naturais", como as nossas posturas diante do que é considerado "diferente" são fabricadas e bricoladas por normas coletivas que impõem o que é ?certo? ou o que é comumente ?errado?.
"O simples recenseamento de Mauss mostra-nos um "ser humano total" no qual muitos valores se encarnam nos usos mais concretos do corpo" (CORBIN, 2008, p. 7). Pode nos parecer estranho afirmar que por meio das técnicas corporais podemos tentar entender um dos fatores da prática da homofobia na sociedade, mas isso não seria tão absurdamente incoerente, se compreendermos as técnicas como uma forma de educação que recebemos e apreendemos, que criam modos de organização que subjugam a consciência de forma coletiva e que se desenvolvem por meio do conjunto de valores culturais e costumes que são instituídos e ditam o que é "certo e o que é errado", conforme mencionado em linhas anteriores.
A religião, como detentora de tais normas e costumes, representa um papel preponderante no que concerne à criação e adaptação a essa visão de mundo, quando desenvolve uma sexualidade moralizada baseada em fatores que determinam o corpo como "natureza" e não como "cultura" propriamente dita.
1.2 Homossexualidade e religião
Por vezes, a discussão sobre o tema "religião e homossexualidade" vem à baila na mídia, nos centros acadêmicos, mas ainda soa-nos estranho haver uma relação entre religião e homossexualidade, justamente porque se busca as respostas por meio das prescrições comportamentais, consideradas naturais mais do que pelas matizes do discernimento.
A religião judaico-cristã tem sido a grande responsável pela idéia de perversão sexual, visto que foi ela que estabeleceu, na cultura ocidental, o que é "natural" e o que é "antinatural", tecendo as normas técnicas que orientam a vida social. (TOMITA, 1999, p. 11)

Para alguns grupos religiosos, o modelo natural de criação homem e mulher, aliado à idéia de procriação, onde Deus, ao criar-nos também criou um só modelo de moral sexual para todas as pessoas: o modelo da monogamia heterossexual pressupõe um modelo da ordem criada que não pode se sujeitar à mudanças culturais ou históricas (JURKEWICZ, 2006, p. 2). Essa maneira de pensar o corpo por meio do que é "natural" exprime, à sua maneira um duplo movimento que vai desde o enobrecimento do corpo até o menosprezo no que tange às questões relativas à sexualidade, ou seja, criou-se por meio dessas técnicas e gestos, costumes que estigmatizaram o corpo, a cristianização da sociedade trouxe consigo a expressão de um antigo fundo de uma cultura homofóbica, na qual o corpo "natural" é aquele que obedece às regras e normas impostas como sendo próprias da "natureza" e não da cultura que se constrói na diversidade. Portanto, o ser humano é constituído de heranças que perpassam todo o seu universo simbólico que nem sempre leva em conta, e por vezes até rejeita e combate, práticas que lhe parecem duvidosas e repassa uma imagem que remete a esquemas de pensamentos e valores, a ponto de tornar a devoção religiosa aceitável e irrevogável.
O grande problema da religião com relação à homossexualidade é estabelecer esses limites entre o natural e o cultural, que designa o corpo como um lugar de aposta da experiência religiosa, aposta essa que se legitima e assume contornos que tem como antigo e renovável ponto de apoio, o corpo depreciado de um ser humano ?pecador?, pois, afinal, é pelo corpo que a pessoa corre o risco de perder-se, por isso, a necessidade de se estabelecer um modelo de vivência sexual que pode ser natural ou moralmente aceitável. Essa vivência tida como "natural", elabora a maneira como os corpos produzem e reproduzem suas organizações e conhecimento acerca da sexualidade, que em consonância com a experiência de propagação e reprodução, se difunde a partir de um padrão de segregação que separa os "puros (as)" dos "impuros (as)", fazendo com que a sociedade estabeleça a sua maneira, ao corpo do pecador (a) que é só desordem, aviltamento, tendo como pressuposto de que a pessoa não consegue controlar suas paixões e se opõe ao paraíso harmonioso e perdido de Adão e Eva.
A religião na medida em que desenvolve seus mecanismos de controle social do corpo, dele se serve como forma de manter um modelo legítimo do corpo, isso faz com que o indivíduo se adeque à influência do grande corpo coletivo. Esse grande corpo coletivo subsiste e lança os patamares de uma vivência que se reproduz em todos os âmbitos dessa mesma sociedade, na escola, no trabalho, no lazer, no dia-a-dia, um fenômeno convulsionário chamado preconceito e discriminação, que se impõe e que penaliza o "corpo pecador" a fim de impedir suas expectativas quanto a um desabrochamento pessoal na busca de uma valorização de si mesmo enquanto ser humano.
Essa abordagem diferencial do corpo por meio da religião implica uma relação de controle e de poder, normatizada sob a influência de contexto sócio-cultural e político, que estabelece os contornos sociais aceitáveis, para que tenhamos uma visão tão somente naturalista acerca do que significa a homossexualidade (FOCAULT, 1988). Seguir modelos, sejam eles quais forem, conduz-nos a uma dolorosa liberdade: a liberdade de um contínuo criar, de responsabilizar-se por si mesmo, fazendo de si uma obra moldada, que nos impede de criar um modo de vida que admita a pluralidade, um modo que recrie de forma íntegra e autocrítica, maneiras de sobrepujar qualquer espécie de normatividade que seja prejudicial ao exercício da democracia e da liberdade.
O posicionamento das religiões em relação à homossexualidade tem sido motivo de muitas polêmicas e controvérsias na sociedade (BRASH, 1998). Mas, o que temos que ter em consideração é que os estudos avançaram nesse sentido e a homossexualidade não é considerada uma doença, como há anos atrás o era, os estudos da antropologia cultural apontam para a compreensão da homossexualidade nas sociedades de forma adversa, ou seja, ela é parte do mundo que conhecemos, portanto, é vista de maneiras diferentes em diversas culturas.
O que existe de problemático na nossa sociedade ocidental é que os corpos são portadores de valores, inculcados por gestos que os tornam o lugar de poder, gestos que se transformam em valores culturais dominantes e que desenvolvem um sistema de exclusões baseados em leituras literais de textos religiosos fundamentalistas e que se tornam a normativa para sustentar as bases das relações na sociedade.
Essas questões estão em lenta maturação em nossa sociedade, mas a homossexualidade é um fato que se impõe e que não pode ser negado ou desconsiderado pela religião e pela sociedade em si. A tensão entre controle e experiência, entre o que é natural e o que é cultural só pode ser superada se considerarmos que os direitos individuais são antes de qualquer coisa direitos coletivos.
O coletivo deve prezar por uma ética que seja responsável e convicta de que o princípio da isonomia, tão ventilado pelas leis constitucionais, deve ser a mola propulsora para se garantir que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, e que o direito à vida, à liberdade, deve ser resguardado não só pelo Estado, mas pelas instituições que o compõem, sejam elas educacionais, religiosas, etc.
O objetivo fundamental do Estado é a promoção do bem-estar coletivo, sem qualquer tipo de discriminação com relação à orientação sexual. A identificação da orientação sexual está condicionada à identificação do sexo da pessoa escolhida, em relação à pessoa que escolhe, e tal escolha não pode ser alvo de tratamento diferenciado. (DIAS, 2008, p. 4)

A valorização da dignidade humana deveria ser um valor inquestionável em qualquer sociedade e cultura, uma vez que quando se valoriza o outro, temos a oportunidade de exercer os nossos direitos de forma plena e saudável. Respeitar significa antes de mais nada, o olhar como sendo uma das maneiras de exercitarmos uma das ações mais nobres e, ao mesmo tempo, tão esquecida na sociedade em que vivemos, o respeito. A palavra respeitar traz o sentido de "olhar a", "olhar para". Olhar a pessoa como um ser único e singular, sem julgamentos ou críticas, olhar e ver o que ela é, sem negações ou distorções.
Quando há respeito, sempre se procura ajudar o outro a se desenvolver, dando uma oportunidade, um voto de confiança, por isso, a sociedade deveria se desvencilhar do orgulho, de conceitos e preconceitos, que gera ao desenvolver certas normas de padrão de conduta e as religiões deveriam aprender a economizar as suas palavras e discursar com os gestos, gestos que anulem qualquer atitude que pressupunha a discriminação e a ausência de tolerância.
A questão da homossexualidade é um fato social, que nenhuma religião ou o Estado pode ignorar. O corpo é antes de tudo, uma ação criativa que nos permite deslocar sob a superfície privilegiada dos sentidos, isso significa que o corpo pode "ser e tornar-se" como forma de buscar seus próprios caminhos de superação e sobrevivência, como uma propriedade imutável que não pertence a ninguém, senão, a si mesmo.
Longe de ser obliterado, o corpo vem se delineando não mais como uma totalidade homogênea, mas como um mosaico flexível e permeável, cujas formas e estruturas se tornam voláteis, e essas formas e estruturas sofrem as mais diversas variações nas sociedades, variações estas que não podem ser desconsideradas, uma vez que se constituem no modo de organicidade da vida contemporânea, de modo a permitir não o controle ou as identificações estabelecidas por esse ou aquele grupo religioso, mas sim, permite-nos a criação de novas relações que ao mesmo tempo, interagem, se completam e se doam nessa grande aventura chamada vida.
Vida, esse é o sentido de todas as relações, pois o que importa não são as regras normativas que se impõem e estabelecem o indivíduo como heterossexual ou homossexual, certo ou errado, branco ou negro. O que importa é que as relações sejam de respeito, de responsabilidade e que promovam o bem-estar social, para tanto, a vida em sociedade tem que considerar o corpo como expressão de versões singulares, entendendo que a tudo o que se resiste, persiste, portanto, não existe nada mais desafiador do que exercitarmos a consciência de que os limites do corpo, suas escolhas, precisam passar por um processo de redefinição e ressignificação, onde o contato com novas posturas e uma nova liberdade, estimule uma inspiração natural do que é interagir e questionar o controle do que supostamente nos é apresentado como ?diferente?.
Interagir com o ?diferente? nos possibilita a descoberta do que é real, do que é de fato experimentado por aquele (a) que consideramos diferente, aliás, se assim o fosse, não existiria o ?diferente?, existiria ?gente? e assim, seria considerada como tal.


CONCLUSÃO


Diante das abordagens apresentadas no presente artigo, cabe-nos considerar que o corpo em suas representações, inserido em seu sistema cultural, define as matizes em que são desenvolvidos e preestabelecidos os valores e as posturas socialmente ?aceitáveis?.
Em meio a esse invólucro de técnicas corporais que se estabelecem e ditam as normas que se inserem num sistema de montagens simbólicas que são apreendidas pelos indivíduos que compõem determinado grupo social, se encontram os homossexuais, grupo minoritário que diante do controle de certas religiões, que normatizaram a heterodoxia como a maneira mais eficaz e supostamente "natural" de se viver em sociedade, sofrem com a imposição de certos limites absortos e por seus direitos restritos, que por vezes são escamoteados pela religião e pelo Estado.
O problema está em supervalorizarmos algo como supostamente ?natural? e que supostamente sobrepuja ao que é ?cultural?. Assim sendo, os corpos tornam-se portadores de valores, inculcados por gestos que os colocam numa posição de poder e traduzidos pelos mesmos gestos, se transformam em valores culturais dominantes e desenvolvem um sistema de discriminação que desconsidera a alteridade do outro.
Assim sendo, uma máxima iraquiana pode muito bem nos servir de conclusão para o presente artigo, uma vez que ela expressa aquilo que esperamos de uma vida em sociedade: "Quaisquer que sejam sua importância e sua capacidade para conhecer o outro, imagine-as mínimas. Assim, poderá penetrar corações e espíritos, tal como são,e não como você os concebe ou gostaria que fossem".



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Documentos eletrônicos

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