A CONSTRUÇÃO DE SI COMO UM HERDEIRO: PEDRO NAVA E OS
EPISÓDIOS DE BAÚ DE OSSOS
Juliana Ferreira de Melo

José Roberto Pinto
1- INTRODUÇÃO

Este resumo tem como propósito, essencialmente apresentar, alguns aspectos relevantes do estudo literário sobre a obra do autor Pedro Nava em A CONSTRUÇÃO DE SI COMO UM HERDEIRO: PEDRO NAVA E OS EPISÓDIOS DE BAÚ DE OSSOS, na ótica de Juliana Ferreira de Melo, em perspectiva de alguns conceitos e ideias da Análise do Discurso, considerando-se a ligação entre o texto do autor e as condições sócio-históricas de sua produção. O objetivo é evidenciar a relação entre o autor-narrador, seu enunciado e o mundo encenado em suas memórias, compreendendo que o escritor, em muitos episódios de sua literatura, constrói uma imagem de si como um herdeiro da cultura familiar. Um mundo recriado pelo discurso memorialista, em uma relação dicotômica da ficção autobiográfica. Tal relação se confunde pelo que lhe foi disponibilizado no processo natural da herança cultural familiar e que lhe serve de subsídios para criação verossímil do percurso de sua expressão literária. Devo esclarecer que a abordagem escolhida não se configura no padrão "artigo" e em alguns momentos reservo o direito da expressão poética no frasear menos formal. Pressuponho clareza e objetividade, e me situo no flanco, disponibilizando-me a criticas e ensinamentos.






2 ? MEMÓRIAS EM CONSTRUÇÃO

2.1 - Pedro Nava.


Pedro Nava, sua saga tem inicio na cidade de Juiz de Fora, e tem como amigo o poeta Carlos Drumond de Andrade. Oriundo das elites econômicas traz na escola e família papel relevante em sua formação sociocultural. Alguns ritos irão particularizar e assegurar para as próximas gerações uma memória familiar que constitui a identidade de seus membros.


"Esse folclore jorra e vai vivendo do contato do moço com o velho [...]. Só o velho sabe daquele vizinho de sua avó, há muito coisa mineral nos cemitérios, sem lembrança nos outros e sem rastro na terra ? mas que ele pode suscitar de repente [...] para o menino que está escutando e vai prolongar por mais cinqüenta, sessenta anos a lembrança que lhe chega, não como coisa morta, mas viva qual flor olorosa e colorida, límpida e nítida e flagrante como um fato presente (NAVA, 2002, p.9)." (J.F.M.)


"Na perspectiva de Souza (2004, p.32), o memorialista Nava, mesmo retratando o período Vargas, não hostiliza o governo, pelo contrario, se mantém "cordial e amigo"(J.F.M.) , não ele, mas o Brasil que apresenta em suas construções. Histórias de família; ficcionada no passado, reconstruindo objetos e pessoas, enaltecendo e vigorando os fatos narrados, qual flor olorosa e colorida, segundo o autor.


2.2 ? A Herança da Cultura Escrita


O mundo da escrita, diarizado no ato comum de seus parentes, o contagia quando menino. Ouvir histórias, contos, folhear e recortar revista, tudo, nesse universo das atividades de leitura e escrita, o instrumentaliza, dando-lhe as habilidades e proficiência ao ato literário. Em suas memórias, o autor constrói uma relação com o leitor e consigo mesmo; de manutenção das concepções de herdeiro das tradições familiar. A singularidade dessa relação tradição família contribui em si, para a formação do autor narrador, em que a escrita memorialista se revela pela tênue relação autobiográfica e ficcional. "Conforme Bakhtin (1992b, p.111), o centro organizador e formador da expressão situa-se no meio social em que está inserido o indivíduo. Logo, a enunciação é resultado da interação social, portanto é indispensável o trabalho tanto com os elementos propriamente linguísticos das memórias de Nava, quanto com os elementos extralinguísticos de sua narrativa. (J.F.M.)"


"Não possuía noção de leitura e já minhas tias mandavam para Juiz de Fora revista infantil que eu folheava e cortava. Vejo isto numa carta escrita por meu Pai a 22 de fevereiro de 1908, agradecendo a remessa de publicação chamada Fafasinho. Viveu só dois anos, 1907 a 1908. Não conheceu o destino de O Tico-Tico, que durou mais de meio século, 1905-1959. Ignoro as razões obscuras que me fizeram erigir o quarto lateral do nosso sobrado em sala de leitura. O silêncio? A claridade? Sua janela aberta para as nuvens que passavam? Sei que para lá eu carregava exemplares do Malho e da Careta, onde me deleitava com os desenhos, as fotografias e ia soletrando, na última, penosamente, as Cartas de um Matuto, onde eram contadas, em verso, as bestidades do Tibúrcio da Anunciação (NAVA, 2002, p.353-354)." (J.F.M.)


Outros elementos se farão importantes na construção de Nava. O prezo a família; as relações de civilidade e tributo à cultura.


"Eu não posso me lembrar senão de caso ou outro, das conversas de minha família [...]. Se não recordo detalhes, fixei o espírito e a essência do que se dizia, principalmente do que não se dizia. [...] Jamais ouvi maledicência veiculada por meus pais e meus tios, como nunca ouvi palavras azedas de disputa na minha gente paterna. A conversa geral era cheia de preferências pelas ideias, pelas coisas e causas nobres, pelos assuntos intelectuais ? estes, versados simplesmente, como moeda de todo dia (NAVA, 2002, p.337)." (J.F.M.)



3 ? RESTABELECENDO PERSONAS


Como um autêntico memorialista construtor, o autor narrador, se dá o direito em seu processo criador das lembranças herdadas/lembradas; dos contos contados; desenhar o sujeito literário que ganha voz, na configuração das lembranças familiar, matizado nos valores e crenças paternogênicas. Sua teia é tecida nas referências à ética e moral familiar, delineando na escrita memorialista, conforme seu desejo, na medida em que frui suas lembranças, permitindo-lhe reconstruí-las em suas personagens. Como fim e propósito ao leitor, Nava enseja mostrar, talvez, o que legitima uma herança cultural, já inscrita, e confirmada pela origem histórica de sua família como posição cultural dominante. "A aprendizagem da leitura por Nava, seus usos sociais, representados em suas memórias, seriam "a simples atualização de um capital herdado?" (HÉBRARD, 1996, p.39)?" Nessa direção, para Bakhtin (1992a, p.279):"O enunciado reflete as condições específicas e as finalidades de cada uma [das] esferas, não só por seu conteúdo (temático) e por seu estilo verbal, ou seja, pela seleção operada nos recursos da língua ? recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais ?, mas também, e sobretudo, por sua construção composicional. Esses três elementos [...] fundem-se indissoluvelmente no todo do enunciado, e todos eles são marcados pela especificidade de uma esfera de comunicação." "Logo, a enunciação é resultado da interação social, portanto é indispensável o trabalho tanto com os elementos propriamente linguísticos das memórias de Nava, quanto com os elementos extralinguísticos de sua narrativa." (J.F.M.). A personagem se constrói mesmo, na medida em que há fluência das lembranças contáveis.


"Os mortos... Suas casas mortas... Parece impossível sua evocação completa porque de coisas e pessoas só ficam lembranças fragmentárias. Entretanto, pode-se tentar a recomposição de um grupo familiar desaparecido usando como material esse riso de filha que repete o riso materno; essa entonação de voz que a neta recebeu da avó, a tradição que prolonga no tempo a conversa de bocas há muito abafadas por um punhado de terra [...]; esse jeito de ser hereditário que vemos nos vivos repetindo o retrato meio apagado dos parentes defuntos [...]. Um fato deixa entrever uma vida; uma palavra, um caráter. Mas que constância prodigiosa é preciso para semelhante recriação. E que experiência... A mesma de Cuvier partindo de um dente para construir a mandíbula inevitável, o crânio obrigatório, a coluna vertebral e osso por osso, o esqueleto da besta. A mesma do arqueólogo que da curva de um pedaço de jarro conclui de sua forma restante, de sua altura, de suas asas, que ele vai reconstruir em gesso para nele encastoar o pedaço de louça que o completa e nele se completa (NAVA, 2002, p.32-3)". (J.F.M.)


Uma poesia inefável, própria das próprias apropriações do passado. Assim, presente e passado se resumem no lúmen , ou seja, lembranças viscerais a personificar a persona . Cria-se assim, personagens que permeiam o real e ficcional de Pedro Nava.
4 ? MEMÓRIAS ESCOLIDAS

4.1 ? Identidade Herdada


Normalmente a herança é herdada em seu formato material. O herdeiro recebe o que fora firmado por testamento na forma da lei; unilateralmente. A herança cultural herdada por um indivíduo é fruto do convívio gratuito no campo sociocultural e econômico de determinado grupo humano. Pedro Nava, ao tornar público o arquétipo de seus parentes, o faz por livre escolha, dentro do que lhe é disponibilizado pelos seus parentes e por ele selecionado como valores constituintes dessa herança que passa a fazer parte da apropriação de suas personagens.

"Ninguém tinha alma de parvenu. Nem seu instinto. Nem seu impulso. Nem sobra de paraísmo. A mentalidade era aquela mesma posta por Proust em suas personagens Flora e Céline ? as tias solteironas do narrador de À la Recherche du Temps Perdu, para quem Swann, em vez de subir, decrescia e ficou considerado como uma espécie de aventureiro, quando elas apuraram que ele frequentava o cote de Guermantes e que era amigo do Duque d?Aumale e do Príncipe de Gales (NAVA, 2002, p.337)". (J.F.M.)


Evidencia-se dessa forma o que o prosador lhe permite herdar como suprimento cultural advindo dessa herança, e como herdeiro, legitima uma herança, não só das letras, mas, um posicionamento social que dicotomiza paternidade e maternidade.


"[...] A herança do bisavô foi a legenda que deixou e mais o gênio feroz que, com mutações especiais, passou para os filhos. Tia Regina era religiosa, praticava a virtude ? mas com a intolerância de um Torquemada. Tio Luís e tio Júlio eram dois violentos, dois brutais, o primeiro pouco, o segundo muito inteligente ? ambos de uma lubricidade exemplar. Minha avó Maria Luísa, que foi mãe admirável, sogra execrável, sinhá odiosa para escravas e crias, amiga perfeita de poucas, inimiga não menos perfeita de muitas e corajosa como um homem ? era de boca insolente e bofetada fácil. Te quebro a boca, negra. E quebrava (NAVA, 2002, p.186)" (J.F.M.)

Algum materno não lhes figurava agradável ao refino que lhe era próprio, e este, advindo do convívio com tios paternos. De grande paixão pelo pai, e isso deixava claro, pois, se a herança renunciada refletia a violência e agressividade; o narrador protagonista evidencia sua apropriação da herança cultural advinda primordialmente de casta paterna.


4.2 ? Literatura Escolhida


A herança manipulável que lhe fora cedida abundantemente por sua família o fizera herdeiro verdadeiramente aplicado em suas escolhas, pois, "passou a viver a cultura letrada e o mundo maravilhoso da literatura com naturalidade, envolvimento e prazer".(J.F.M.)


"[...] naquele quarto, viriam encontrar-se comigo [...] Napoleão, [...] Ali-Babá com sua caverna; Aladino com sua lâmpada; Simbá, o marujo [...]; D. Quixote, Sancho e a Dulcinéia; os personagens do Tico-Tico, da Cabana do Pai Tomás, dos Ovos de Páscoa. Eu odiava os bandidos de que escapava Ali-Babá, ganhando seus cem anos de perdão; o velho infecto que fazia Simbá de montaria, o feiticeiro inimigo de Aladino; aquele repugnante canalha do Simão Legree; o infame Golo. Recebia com reservas Napoleão; os pais chatérrimos que descascavam a bunda do Chiquinho [...]; o enjoativo Saint-Claire; a escrotidão da Faustina e do Zé Macaco; o grão Senhor que se divertia mandando o pobre Sancho reinar na Barataria. Minha amizade ia para o Chiquinho, sua prima Lili, o moleque Benjamim, o Vovô e seus netos Lulu e Zezé. As minhas lágrimas para Evangelina agonizante, para D. Quixote morrendo, o negro Tomás apanhando, Elisa fugindo à deriva, sobre os blocos de gelo do rio Ohio e Genoveva de Brabant errando nas silvas [...]. Mas toda a minha admiração eu reservava para a resoluta Cassy. Altiva mulata! Quando chegava aquele episódio da fuga, os cães ladrando na charneca, de Emelina querendo desmaiar, eu perdia o fôlego, engolia períodos inteiros, lia sem separar as palavras, sua objurgatória à companheira ? Reanimatemulherquandonãomatote! [...] (NAVA, 2002, p.354)". (J.F.M.)


Nesse contexto da escrita, o ganho cultural conduziu Nava às descobertas prazerosas do mundo da escrita. Talvez a família tenha lhe revelado os caminhos da prosa. Talvez o pendor às letras lhe fosse próprio. É certo que no folhear dos contos, nos livros do tio Salles, nos recortes e colagens, o menino Nava, sem que disso pudesse se aperceber, obteve de sua família, o maior bem (herança) a ele disponibilizado. Assim feito, lhe restou revelar ao mundo sua mais preciosa herança. Sua família.









































5 ? FINALISANDO


Morte e vida. - A dicotomia existencial humana. A cada passo, o homem, em sua individualidade, caminha passo a passo para o precipício da morte. Para o leigo; finda a morte, nada deve a vida a morte. Para o Doutor, principia a lembrança da morte que fora vida. Revela nos ossos e corpos; corpos textuais; recortes de corpos; reconstruções cirúrgicas. Fragmentos de lembranças das heranças culturais friamente escolhidas. Qual frio e calculista o ato cirúrgico. "A escrita memorialista de Nava se impõe como resposta a todo desejo de encarar o passado como algo que deve ser remodelado, uma vez que se revela impossível de recuperação integral das origens"(Souza, 2005) A realidade da vida se constrói na materialização do abrigo à vida. Por ironia da vida, a morte é que inicia a vida literária de Nava. Em seu baú de ossos, as memórias são sacadas em recortes caleidoscópicos. Elaborada à maneira de uma bricolagem, fragmentos e restos de textos; lembranças e objetos guardados... Nasce um Memorialista mineiro aos moldes Marcel Proust.





















6 ? CREDITOS




1 - Revista Língua Escrita, número 7, jul./dez. de 2009
2 ? Pedro Nava por Eneida Maria de Souza ? Ed. Agir R.J,2005.