Líria Almeida Nogueira
Luciana Nepomuceno Alencar

SUMÁRIO: Introdução; 1 A convicção de verdade; 2 A participação do juiz no processo;3 A falseabilidade das provas;3.1 O Código de Ética e Disciplina da OAB;4 A livre apreciação da prova;Conclusão;Referência.

RESUMO
Aborda-se o processo de construção da verdade na esfera processual cível assim como a participação do juiz no que tange a formação desta. Observa-se a falseabilidade e as limitações das provas obtidas na lide processual. Destaca-se o mecanismo do convencimento judicial. Problematiza-se essa dicotomia de produção da verdade diante das provas produzidas pelas partes.
PALAVRAS-CHAVE
Verdade processual. Falseabilidade das provas. Convencimento judicial.

INTRODUÇÃO
Faz-se necessário em um primeiro momento distinguirmos a diferença existente entre a busca da verdade e a convicção de verdade. Após realizada esta distinção cabe analisarmos a participação do juiz no processo, bem como a contribuição do medievo para esta iniciativa.Ato contínuo, há a necessidade de discutirmos a falseabilidade das provas obtidas no processo e a sua ingerência sob o convencimento do juiz.Discute-se a importância do Código de Ética e Disciplina da OAB no que tange a esta discussão.E por último, problematiza-se de que modo a verdade é construída no processo diante da pretensões das partes.

1 A CONVICÇÃO DE VERDADE

Embora em um primeiro momento possa nos dar a nítida ilusão de tratarem de pontos semelhantes ou até de mesma de natureza conteúdista, a busca da verdade não representa o mesmo que a convicção de verdade. Apesar de ser bem acalourada o seu estudo na filosofia, principalmente com a contribuição de Voltaire e Descartes, a análise de tais preceitos não encontra sua discussão, pelo menos, de forma satisfatória, no campo do Direito. O que possibilita a construção de paradigmas tortuosos sobre o papel do juiz no processo. É tanto que se encontra arraigado no senso comum a idéia de que o juiz deve estar iluminado pela verdade no momento da confecção das sentenças processuais, como se o mesmo pudesse tocá-la ou mesmo sentí-la. Marinoni, no tocante a este aspecto, defende que
De toda sorte, permanecer cultuando a ilusão de que a decisão judicial está calcada na verdade dos fatos, gerando a falsa impressão de que o juiz limita-se, no julgamento, a um simples silogismo, a um juízo de subsunção do fato à norma, é algo que não tem mais o menor respaldo, sendo mito que deve ser contestado. Este mito, de qualquer forma, já está em derrocada, e não é a manutenção da miragem da verdade substancial que conseguirá impedir o naufrágio destas idéias.

No entanto, é importante ressaltarmos que a essência da verdade é inatingível não somente no processo, mas a todo método que se pretende chegar à verdade dos fatos. Sendo assim, é impossível ao magistrado descobrir o cerne da verdade, visto que, a reconstrução de um fato sempre será influenciada pela subjetividade daqueles que o presenciaram, alterando consubstancialmente a realidade, mesmo que inconscientemente. Desta forma, o julgador não poderá alegar que a realidade posta em estudo não possa ter contornos e liames diversos daquela que a sua impressão o levara a produzir . Isto é, "jamais poderá afirmar, com segurança absoluta, que o produto encontrado efetivamente corresponde à verdade. Realmente, a essência da verdade é inatingível (ou ao menos o é a certeza da aquisição desta)."
Sabendo-se que a sua essência é impenetrável, o magistrado não poderá furtar-se de analisar o mérito sem a convicção de verdade. Sendo assim, estar convicto da verdade não é o mesmo que encontrá-la na medida em que
o juiz chega a convicção da verdade a partir da consciência da impossibilidade da descoberta da sua essência, uma vez que é essa que demonstra a falibilidade do processo para tanto.Dessa tomada de consciência, para a conclusão de que o processo, apesar de tudo isso, não pode impedir a eliminação dos conflitos, é um passo.Em resumo,o juiz para pôr fim a um conflito, deve estar convicto, dentro de suas limitações, a respeito da verdade.

Apesar da concepção de verdade ser uma só costuma-se doutrinariamente dividí-la em verdade formal e verdade material tendo como diferenciador os interesses perqueridos pelo processo civil e penal.Entretanto,esta divisão não encontra mais sustentáculo,embora haja defensores nacionais a este respeito, como o é Ada Pellegrini,Cintra e Dinamarco .
No tocante a esta seara, defendem que enquanto o juiz na esfera civil se satisfaz com a verdade formal, ou seja, aquela resultante do processo, embora não possa encontrar correspondência fiel com os fatos, como ocorreram historicamente. (CPC, art.319). Na esfera penal, chega-se a uma verdade material a qual revela os fatos como ocorreram historicamente e não como as partes queiram que se mostrem realizados. Sendo assim, o processo civil realiza-se com a verdade aparente enquanto que o penal, com a real ?. O que é irascível, visto que, não existe meia verdade ou verdade aparente. Existe, sim, uma concepção de verdade a qual deve ser perseguida pelo juiz para poder assim chegar a um ideal de justiça a todos perseguido.
Ato contínuo, o papel exercido pelo juiz no processo não foi o mesmo durante o tempo, passando por mudanças que proporcionaram uma nova análise a respeito da concepção do direito. É o que veremos a seguir.

2 PARTICIPAÇÃO DO JUIZ NO PROCESSO

O juiz durante muito tempo foi visto como la bouche de la loi,ou seja, nos dizeres de Montesquieu, seria a boca da lei no qual sua função no processo restringia-se apenas a dizer a intenção da norma jurídica sobre o caso concreto.Dito isto e sem nos detivermos em uma análise histórica pormenorizada, o que não é o objeto deste estudo, verificamos que o magistrado seguiu esta linha de atuação por um longo período.Desde o momento de fundação de Roma até o ano de 149 a.C- período das legis actiones- observa-se o apego exacerbado pelo formalismo na atuação do juiz.Desta forma, um simples vocábulo poderia representar a perca da pretensão de uma das partes,pois o juiz não imprimia sobre a sua decisão a valoração sobre o caso em tela.
Contudo, no medievo esta realidade começa a ser transformada principalmente com a mudança do processo acusatório para o processo por inquérito. No processo acusatório (séculos XII e XIII) de acordo com Samyra Haydêe Naspolini "a atuação do juiz era somente a de árbitro imparcial, que orientava todo o processo, mas nunca julgava o acusado" . É tanto que em caso de dúvidas sobre a culpa ou inocência recorria-se a procedimentos irracionais como a realização de algum sinal divino que dirimisse este conflito.
Era muito comum a utilização do ordálio, espécie de teste onde atestava a culpabilidade do acusado. São exemplos desta prática a imersão do braço do acusado em água fervente ou carregar ferro em brasa, se após alguns dias as feridas se mostrassem perfeitamente curadas, dizia-se que era inocente, visto que, Deus as curou; caso contrário seria considerado culpado.
Com a sua respectiva substituição pelo processo por inquérito a partir do século XIII obtendo difusão por toda a Europa Continental, no século XVI, este sistema penal adquiriu significativa mudança, visto que, foi imprimido forte juízo humano as regras racionais do direito.O juiz, ao contrário do sistema precedente não seria mais um árbitro imparcial que regia uma lide que seria extinta por um evento sobrenatural.Aqui, assumia junto aos outros funcionários a investigação dos crimes e determinavam a culpabilidade do réu através de provas como o interrogatório, sendo tudo registrado por escrito.
Diante desta participação, observa-se que na modernidade a atuação do juiz teve um alto grau de ampliação; sendo, desta forma, legitimado a interferir diretamente sobre o desenlace da decisão. Segundo Marinoni "esse poder é absolutamente natural, pois antes de atuar sobre a decisão, é fundamental para a devida formação do seu convencimento, o qual é imprescindível para a definição do litígio"

3 FALSEABILIDADE DAS PROVAS

Após analisarmos a ampliação da esfera de atuação do magistrado, cabe, neste momento, determos sobre a falseabilidade no contexto de produção do ônus da prova. Primeiramente, há que se destacar que a prova possui atualmente um caráter multifacetário na medida em que imprime aos fatos, de acordo com o prisma daquele o qual o observa, as mais diversas e ilimitadas nuances. Sendo assim, a prova assumi um "aspecto argumentativo-retórico, apto a justificar a escolha de uma das teses apresentadas pelas partes no processo"
Nesse contexto, a prova funcionaria como um meio retórico destinado a convencer o juiz da validade das proposições e objeto de impugnação realizada na relação processual. Logo, há que se mencionar que as provas não se destinam a provar fatos, sua finalidade consiste, sim, em afirmações de fato os quais podem ou não corresponder aquilo o que ocorreu no mundo do ser, numa tentativa de garantir a veracidade de suas pretensões. Assim, a prova perde o seu referencial com a verdade, na medida em que, as partes podem forjar alegações falsas sobre determinado fato, recaindo sobre a ela a falseabilidade.
Neste prisma, a noção de campo científico produzido por Pierre Bourdieu se encaixa muito bem no processo de produção de provas pelas partes, seja provando fatos que constituem direito por ele afirmado, ônus este que recai sobre o autor; seja produzindo provas que impedem, modifiquem ou extinguem o direito pleiteado pelo demandante, recaindo ao réu tal iniciativa. (CPC, art.333)
Bourdieu, profundamente comprometido com a denúncia de mecanismos de dominação em uma sociedade injusta, defende que para entender a ciência, e neste caso enquadra-se também o Direito, é necessário saber de antemão quem está falando, da onde está falando e de que contexto são oriundo tais "verdades". Após tais análises fica claro entendermos o que está sendo almejado no processo e é nesta esfera que a figura do advogado se mostra mais evidente, na defesa contagiante dos interesses de seu cliente.
Dito isto, a concepção de campo científico fica bem mais inteligível na atuação da prática jurídica, principalmente no metiér probatório. Bourdieu ratifica que campo científico, e aqui também podemos entender campo jurídico, é o espaço social onde acontecem as lutas concorrenciais em que está em jogo o monopólio da legitimidade de dizer o que é ciência, e neste caso concomitantemente a "verdade". É uma noção que caracteriza a autonomia de certo domínio de concorrência e disputa interna no qual são determinados a posição social dos agentes e onde se revelam as figuras de autoridade, detentoras de maior volume de capital simbólico, aquilo a que chamamos de prestígio ou honra e que permite identificar os agentes no espaço social.
A estrutura de distribuição do capital científico determina a estrutura de campo, isto é, as relações de força entre os agentes científicos, os advogados. A posse de uma porção importante de capital confere poder sobre o campo, logo, sobre os agentes comparativamente menos dotados de capital e desta forma, comanda a distribuição de lucro. Tudo isto nos leva a afirmar que quanto mais convincente for o argumento-retórico sustentado por uma das partes, seja ela verossímil ou não com a presunção de verdade, maior será a possibilidade de o juiz utilizá-la na formação de sua decisão, seja no todo ou em parte.

3.1 O CÓDIGO DE ÉTICA E DISCIPLINA DA OAB
Depois de tecermos sobre a esfera de atuação da prática advocatícia levando-se em consideração a tese do campo científico proposto por Pierre Bourdieu, cabe, após explicitado tais requisitos, analisarmos a posição do Código de Ética e Disciplina da OAB no que tange a atuação do advogado no exercício de seu ofício.
Já no preâmbulo deste código fica claro a observância de alguns princípios fundamentais à prática profissional do advogado, dentre eles destaca-se o aprimoramento dos princípios éticos de modo a ser o mesmo merecedor da confiança do cliente e da sociedade, o de proceder com lealdade e boa-fé nas suas relações profissionais, o de lutar pelo primado da Justiça e o de perquerir o cumprimento da Constituição e o respeito à lei. Sendo assim, o advogado fica vetado a exercer qualquer atividade que vai de encontro ao defendido por este código.
No entanto, é muito comum o não cumprimento de alguns dispostos, entre eles se encontra a ética na produção de provas, contrariando os meios adequados para produzi-la. É função do advogado agir com decoro, veracidade, honestidade e boa-fé em seu métier(art.2,II) assim como abster-se de patrocinar causa que seja contrária à ética,à moral ou a validade do ato jurídico que tenha colaborado(art.20).Desta forma, observa-se que é vetado ao advogado agir contra a veracidade e a ética,condutas estas sujeitas a procedimentos disciplinares.

4 A LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA

Embora a verdade seja em sua essência inatingível, o juiz não deve permanecer inerte diante da sua produção, devendo este possuir uma participação ativa no processo, como o são as provas de ofício. O objetivo da mesma, segundo Marinoni é o de possibilitar "ao juiz,quando as provas produzidas pelas partes lhe parecem insuficientes, a elucidação dos fatos imprescindíveis para a formação da sua convicção sobre o mérito." Mas, não podemos deixar de mencionar que além de ser adequadamente justificadas, a participação das partes é imprescindível para a formação do convencimento judicial.
Além deste mecanismo à disposição do magistrado, a apreciação das provas quanto ao seu conteúdo e a presunção de sua veracidade pode ser feita por três sistemas a que a doutrina o disponibiliza. No entanto, optar-se-á por uma só, é o que veremos a seguir.
O sistema da prova legal, o primeiro a ser utilizado, determinava que a lei influía sobremaneira quais as provas deveriam ser produzidas, o valor probante das mesmas e as forças que as mesmas possuíam no processo.Pontes de Miranda delimitava que o seu contributo residia na vantagem que as partes tinham de qual prova utilizaria e o valor probante da mesma diante do adversário, entretanto esse sistema estabelecia um fosso entre a convicção do juiz e o que era decidido,logo concluí-se que o magistrado não tinha papel ativo na apreciação das provas.
O segundo sistema, o do livre convencimento, oposto ao anterior, permitia ao juiz o uso da liberdade para a averiguação das provas, baseando-se não somente em depoimentos e testemunhos, mas também em impressões pessoais, como as extraídas do comportamento das partes envolvidas no litígio. Entretanto, como ratifica Pontes de Miranda e Celso Agrícola Barbi este sistema apresenta vários inconvenientes, como o aumento da responsabilidade do magistrado, visto que, está intimamente influenciado por suas convicções e de não estar limitado legalmente para a averiguação das provas.
A última e a mais adequada por exigir "magistrados altamente capazes e moralmente qualificados" é denominada de persuasão racional.Nesta o juiz é livre para apreciar as provas,exigindo do mesmo o fundamento de seus posicionamentos. No entanto, a análise das provas se circunscreve as produzidas nos autos do processo,seja as trazidas pelas partes ou as determinadas ex officio.
Desta forma, fica mais transparente a importância do princípio da livre apreciação das provas, no qual "o juiz é livre na valoração dos fatos que lhe foram apresentados". Tal princípio encontra-se alicerçado no ordenamento jurídico brasileiro (art. 131,CPC).Celso Agrícola Barbi, no que tange a este dispositivo assevera que
[...] liberdade concedida ao juiz não é absoluta, no sentidode que ele possa decidir com base em provas não constante dos autos ou fundar sua convicção em informações que tenha recebido em caráter particular. O juiz é livre para convencer acerca dos fatos, mas os elementos para essa convicção são apenas os existentes nos fatos, salvo, é claro, alguma exceção, como os fatos notórios que independem de prova.

Em decorrência do que foi analisado, observa-se que a utilização do sistema da persuasão racional se torna mais eficaz para a averiguação da falseabilidade das provas assim como a formação de seu convencimento diante de uma lide processual.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Dado o exposto, observa-se que o juiz na formação de seu convencimento depara-se com a possibilidade de ocorrência da falseabilidade das provas, visto que, por ser a verdade inatingível favorece a construção de presunções de verdade alicerçadas em alegações falsas para convencer o magistrado, as partes em litígio, da veracidade de suas alegações. Diante disto, o sistema da persuasão racional se faz presente para o auxílio ao juiz no intuito de formar a sua decisão da forma mais justa possível, chegando a um ideal de justiça a todos perseguido.

REFERÊNCIAS

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MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Processo de Conhecimento. 8 ed.São Paulo:Revista dos Tribunais,capítulo 13.
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NASPOLINI, Samyra Haydêe. Aspectos históricos, políticos e legais da Inquisição. In: Fundamentos de História do Direito. 4 ed.Belo Horizonte:Del Rey,2007.
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