1 A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO FUNDAMENTAL À SAÚDE NO BRASIL
1.1CONSIDERAÇÕES INTRODUTÓRIAS

Mister se faz inicialmente salientar que, até o século XIX no Brasil, o atendimento médico teve sua abrangência restrita, delimitando-se sua caracterização pela configuração familiar, em especial observância à residual e hospitalar, sem expressividade, apresentando apenas modestas alternativas comunitárias e populares, a saber, a figura dos barbeiros onde se pode verificar a realização de algumas pequenas intervenções como as incisões de tumores como o preparo de remédios caseiros, conhecidos popularmente de garrafadas, entretanto não se pode desconsiderar tal fato, eis que foram os primeiros indícios de desenvolvimento no país da experiência nos serviços de saúde.
Nesse diapasão, encontram-se na Constituição do Império do Brasil os primeiros indícios da obrigação do Estado, de forma simplória, a promover a garantia de socorros públicos caracterizados como o mero encaminhamento de pessoas indigentes para as Casas de Misericórdia.
Assim, as políticas direcionadas ao setor da saúde começaram somente a ser implantado no final do século XIX com a criação do Instituto Soroterápico de Manguinhos em 1899 para a produção de soros e vacinas no combate da varíola, epidemias de febre amarela, peste bubônica, febre tifóide e cólera (REZENDE; TRINDADE, 2003, p. 14).
Nas notas que se seguem, serão abordados temas e tendências dominantes nas políticas de saúde no Brasil desde a Primeira República (1889-1930), passando-se pelo Período Populista Varguista (1930-1950), pelo Período do Desenvolvimentismo (1950-1964), pela Ditadura Militar (1964-1984) e pela Redemocratização e a Luta pela Reforma Sanitária até os dias atuais.


1.2 Primeira República (1889-1930)

Com a consolidação da República no final do século XIX e início do século XX, o Brasil foi marcado por um contundente movimento sanitarista que estava intimamente interligado ao capitalismo nacional desenvolvido no país, tendo como principal produto o café, produzido com o escopo de exportação. Concomitantemente, verificava-se uma intensa imigração econômica e de urbanização.
Neste instante, é oportuno afirmar que a questão social da saúde se enquadra, na perspectiva histórica brasileira, como injustiça social, portanto tolerável, ou melhor, admitida, haja vista que o Poder Público vai tratá-la como política pública só tardiamente.
Com estas transformações, assolaram-se algumas epidemias e, por via de conseqüência, repercutiram no sistema econômico agroexportador do país, posto que com o risco de contágio das doenças infecto-contagiosas o país se viu prejudicado no comércio, devendo para tanto sanear os espaços de circulação do café (portos brasileiros) e o controle das doenças que prejudicavam as exportações, como a peste, a cólera e a varíola, por exemplo, doenças como corriqueiras nesta época. (LIMA, 2006, p. 04).
Nesse cenário brasileiro, o Estado promoveu uma campanha de vacinação obrigatória no Rio de Janeiro e, em especial, no Porto de Santos conhecida como Revolta da Vacina em 1904, sendo a saúde tratada como uma questão de polícia.

Este projeto tinha como objetivo tornar a cidade do Rio de Janeiro mais atraente para os imigrantes e para os investimentos estrangeiros [...]
[...] a vacinação contra a varíola tornou-se obrigatória, o que culminou com o movimento intitulado a ?Revolta da Vacina?, que durou cinco dias, nos quais a cidade do Rio de Janeiro se transformou em verdadeira praça de guerra, e que deu origem à organização da ?Liga Contra a Vacinação obrigatória?.
Não existia, até aquele momento, nenhum direito previdenciário assegurado aos trabalhadores e em algumas campanhas, especialmente em São Paulo, existiam sociedades beneficentes com ação limitada a prestar socorros médicos e fornecer medicamentos aos trabalhadores pobres e seus dependentes. (REZENDE; TRINDADE, 2003, p. 15) .

O cuidado para com as epidemias nas cidades, principalmente as cidades portuárias de Santos e do Rio de Janeiro, esteve na origem da criação das duas maiores instituições de pesquisa biomédica e de saúde no Brasil: O Instituto Soroterápico Federal (atual Fundação Oswaldo Cruz) no Rio de Janeiro e o Instituto Butantan em São Paulo (LIMA, 2006, p. 04).
Deste modo, nos fins da década de 1910 verifica-se uma incipiente intervenção do poder estatal nas políticas de saúde, tendo em vista a influência e a conscientização da elite dos efeitos negativos decorrentes do quadro sanitário. (MESQUITA, 2008, p. 9).
Com efeito, este período da República é caracterizado como a Era do Saneamento em razão da crescente conscientização da elite brasileira em relação à situação sanitária e, comumente, a responsabilidade do Estado no tocante às questões de saúde a partir de então, criando assim o Departamento Nacional de Saúde em 1920, dirigido até 1926 por Carlos Chagas. (LIMA, 2006, p. 7).
Por seu turno, comumente a este cenário, o Brasil sente as dificuldades da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), impulsionando, por conseguinte, o processo de industrialização, ampliando o processo de urbanização e, por conseguinte, o surgimento de uma classe trabalhadora: a operária.
Essa classe passou a exigir por melhores condições de trabalho, eclodindo diversas greves em 1917, 1918 e 1919 com o fito de se atingir tais objetivos e uma dessas conquistas foram a Lei Elói Chaves de 1923 que resultou na criação das Caixas de Aposentadorias e Previdência ? CAPs que consistiam em fundos constituídos nas fábricas com contribuição dos empregados, dos empregadores e do governo. Este fundo tinha por escopo assegurar a aposentadoria de seus contribuintes e desenvolver ações em saúde. (LIMA, 2006, p. 9).
Por tudo considerado, a partir dos anos 1930 , verifica-se, portanto, um modesto sistema nacional de saúde que marcará o sistema de saúde a partir deste momento até os dias atuais, tendo em vista a concentração e verticalização como elementos caracterizadores do governo federal.



2.3 Período Populista Varguista (1930-1950)

A Era Vargas representa um marco nas políticas sociais, porquanto foram as mudanças institucionais ocorridas nesse período que moldaram a política pública brasileira na saúde, estabelecendo um arcabouço jurídico que estruturou o sistema de proteção social até um período recente. (LIMA, 2006, p. 8).
Neste sentir, o Estado teve de se adequar à nova situação, passando a assumir a provisão dos direitos sociais, notadamente no campo da Saúde e Saneamento, Previdência e Nutrição (SANTOS, 2007, p. 38), prevendo na Constituição de 1934, nos artigos 10 e 115 , a competência concorrente da União e dos Estados sobre a matéria da saúde, estabelecendo que a ordem econômica fosse organizada de maneira que possibilitasse, a todos os brasileiros, existência com dignidade.
Assim, é a lição de Juliano Carvalho Lima:
(...) a expansão das políticas sociais na Era Vargas teve feições particulares. Em que pese esse período seja marcado pela crescente ingerência do Estado no âmbito das relações de trabalho e, posteriormente, para a legislação previdenciária, é relevante também, para a compreensão dos movimentos ocorridos no campo da saúde nesse período, o aparecimento de um novo ator no cenário político nacional: o movimento sindical. Os imigrantes traziam consigo a história do movimento operário na Europa e dos direitos trabalhistas que já tinham sido conquistados pelos trabalhadores europeus. Influenciaram na mobilização e na organização da classe operária no Brasil na luta pela conquistas dos seus direitos, principalmente no âmbito da regulação do trabalho. No entanto, mais do que decorrência da ação exclusiva dos movimentos sindicais da época, são as particulares relações jurídicas entre o movimento sindical, o Estado e os empregadores que irão conformar uma nova agenda no âmbito das políticas sociais em geral e de saúde em particular. (2006, p. 8-9).

O Governo Varguista buscou dar sustentação ao seu novo regime político através de uma aproximação com o movimento sindical e com as classes operárias por meio da criação de leis trabalhistas e, conseqüentemente, o atrelamento do movimento sindical ao governo, demonstrando avanços de direitos para classe trabalhadora e, concomitantemente, a qualificação da mão-de-obra necessária à industrialização.
No ano de 1933, cria-se o Instituto de Aposentadorias e Pensões dos Marítimos -IAPM, seguindo-se o dos Comerciários-IAPC e o dos Bancários-IAPB em 1934, o dos Industriários-IAPI em 1936, o dos Servidores do Estado-IPASE e dos Trabalhadores dos Transportes e Cargas- IAPETEC em 1938. Na prática esta verdadeira engenharia institucional dos IAPs significava que o acesso aos direitos de cidadania estava limitado apenas aos membros da comunidade localizados nas ocupações definidas em lei e que contribuíam para a Previdência (LIMA, 2006, p. 9-10).
Na perspectiva de Ana Cleusa Serra Mesquita:

Quanto à dicotomia entre assistência médica previdenciária e ações de saúde coletiva, vale destacar seu reflexo diferenciado no financiamento das ações nos dois segmentos (COHN, 2005). Como a primeira se desenvolvia no interior das instituições previdenciárias, contava com recursos das contribuições dos trabalhadores, alavancadas com o desenvolvimento econômico e o crescimento da massa salarial. Enquanto isso, as ações de saúde coletiva, desenvolvidas pelas instituições públicas, dependiam dos escassos recursos orçamentários. Portanto, em última instância, a segmentação das ações do sistema de saúde se transfigurava na oposição entre um segmento rico e capitalizado (o da esfera previdenciária) e outro, sempre com parcos recursos, destinado às ações de saúde coletivas e a cobertura assistencial (insuficiente) dos mais pobres. (2008, p. 13).

Com efeito, como verificado alhures, após 1933, boa parte das lutas sociais por saúde serão, indubitavelmente, lutas das categorias profissionais para acessar os benefícios previdenciários.
No Estado Novo, com a promulgação da Constituição de 1937, o regime ditatorial de Vargas dispôs sobre os direitos sociais, nos dispositivos 16, 18, 127 e 137, onde previa o governo federal como defensor e protetor da saúde para com os brasileiros, em especial à saúde das crianças. (SANTOS, 2007, p. 38).
Portanto, na Era Vargas é percebível que a despeito de ter havido a promoção da centralização da previdência e, conseqüentemente, uma maior intervenção estatal, a atenção à questão da saúde permaneceu restrita a quem tinha capacidade de contribuir, caracterizando a chamada cidadania regulada .

2.4 Período do Desenvolvimentismo (1950-1964)

Durante toda a década 1950 e início dos anos 1960, as ações de saúde pública giraram em torno do combate às endemias rurais, posto que estiveram associadas aos projetos e às ideologias de desenvolvimento. (LIMA, 2006, p. 13).
Com efeito, os principais marcos institucionais desse período foram a criação do Ministério da Saúde em 1953, a reorganização dos serviços nacionais do Departamento Nacionais de Endemias Rurais - DNERu em 1956 e a campanha nacional contra a hanseníase e outras doenças endêmicas. Esses eventos reforçam pontos importantes do Sistema de Saúde Brasileiro (LIMA, 2006, p. 13).
Para Ana Cleusa Serra Mesquita:

Não obstante a pujança da medicina previdenciária, sua expansão no âmbito dos IAPs vai encontrar limites a partir dos anos 1950. Nesta década, os custos da assistência vão apresentar forte elevação, impulsionados pelo avanço tecnológico no setor saúde (descoberta de novos fármacos, equipamentos de diagnóstico e tratamento mais sofisticados). Junto com o progresso tecnológico veio a tecnificação e a elevação de custos dos atos médicos. Além da pressão exercida pela elevação dos custos, cresceu a prestação de serviços de assistência média. Juntos, esses fatores vão deflagrar uma crise econômico-financeira no sistema previdenciário, a qual se manifestava na participação ascendente dos gastos com assistência médica no total das despesas dos IAPs (BRAGA E PAULA, 1981). Essas limitações da medicina previdenciária vão se mostrar mais fortemente no início dos anos 1960 quando se torna mais acentuada a crise do sistema previdenciário. Eram sinais incontestes da incapacidade do sistema de assegurar a expansão da cobertura então requerida pelo rápido crescimento dos assalariados urbanos. Tal incapacidade resultava da carência de bases financeiras sólidas, mas também do problema trazido pela grande diversidade entre os benefícios prestados pelos institutos.(2008, p. 14).


Por seu turno, em decorrência destas tentativas de reestruturação do sistema previdenciária que em 1960 foi promulgada a Lei Orgânica da Previdência Social - LOPS na tentativa de se buscar a unificação dos benefícios dos IAPs, contudo, não obteve êxito. Em 1967, ocorreram transformações no âmbito da reforma administrativa que eliminou os IAPs e criou o Instituto Nacional de Previdência Social (INPS), abrangendo todas as atividades da previdência social. (MESQUITA, 2008, p. 14).
Em 1962, houve o Plano Trienal do Governo Goulart e o XV Congresso Brasileiro de Higiene de 1962 onde os sanitaristas-desenvolvimentistas conquistaram o comando da Sociedade Brasileira de Higiene, demonstrando a preocupação com as temáticas como: 1) a rediscussão das responsabilidades dos Entes Federativos; 2) a avaliação crítica da realidade sanitária do País e; 3) uma posição favorável à municipalização de ações em saúde em razão da circunstância caótica que assola a saúde pública no Brasil. (LABRA, 2005 apud LIMA, 2006, p. 15).
Com efeito, elucida LIMA (2006, p. 15) quanto ao discurso de João Goulart na abertura da 3ª Conferência Nacional de Saúde, apresentando as mudanças que se iniciavam no setor da saúde
"a política que o Ministério da Saúde deseja implementar na orientação das atividades médico-sanitárias do País se enquadra precisamente dentro da filosofia de que a saúde da população brasileira será uma conseqüência do processo de desenvolvimento econômico nacional, mas que para ajudar nesse processo o Ministério da Saúde deve dar uma grande contribuição, incorporando os municípios do País em uma rede básica de serviços médico-sanitários" (Lima, Fonseca e Hochman, 2005, p.54 apud LIMA, 2006, p. 15).
Por tudo considerado, em razão da realidade social verificada no país, houve um aumento significativo no setor da saúde, tendo em vista a industrialização e a urbanização, exigindo, assim, do poder público investimentos na saúde pública, trazendo concepções novas para este setor como a descentralização e horizontalização das ações e serviços de saúde.
Conclui-se, por todo o exposto, que a saúde, de um modo geral, nas décadas de 1940, 1950 e inicio da década de 60 foram marcadas, segundo, Lima (2006, p. 16) "pelo acirramento da pressão por expansão dos benefícios, em função do crescimento da massa de assalariados urbanos e da sua organização e força política, e pela tensão gerada em torno da isonomia de direitos dos beneficiários, as quais não foram plenamente equalizadas pelo governo".
Saliente-se que em razão da situação política no país, no início dos anos 60 ? mais especificadamente no ano de 1964 - a ideologia transformadora no âmbito da saúde pública caracterizado por João Goulart foi interrompido em decorrência do golpe militar, prevalecendo, assim, a ideologia dos conversadores em que a saúde pública seria dominada pelo perfil da Previdência Social.


2.5 Ditadura Militar (1964-1984)

Com o golpe militar em 1964, as questões sociais, em especial, a saúde, acabaram por sofrer represália por parte do Estado, no que tange à hegemonização do modelo de saúde divulgado por João Goulart.
Assim, houve uma centralização da Previdência Social, com a substituição dos IAPs pelo Instituto Nacional de Previdência Social-INPS em 1966, o que gerou uma ampliação da cobertura do sistema, com a inclusão de vários segmentos antes não beneficiários do Sistema da Previdência.
Em 1971 instituiu-se o Programa de Assistência ao Trabalhador Rural (Pró-Rural) e, em 1972, foram incluídas na Previdência as empregadas domésticas com a Lei 5.859/1972 e os autônomos que contribuíssem. Logo em seguida, no ano de 1974 é lançado o Plano de Pronta Ação (PPA), que torna universal o direito de atendimento nas emergências. (LIMA, 2006, p. 17-18).
Neste diapasão, analisando a inclusão dos trabalhadores rurais e seus dependentes ao Sistema Nacional de Saúde, Nacôr Paulo Pereira dos Santos, com propriedade, explana que:

"A inclusão dos trabalhadores rurais e seus dependentes ao Sistema Nacional de Saúde, que ocorreu através da Lei Complementar nº 11/1971, expressamente, condicionava os serviços de saúde à possibilidade dos recursos orçamentários do Fundo de Assistência ao Trabalhador Rural (FUNRURAL). Essa categoria de beneficiários também se identificou pelo regime de gratuidade total ou parcial, cujos recursos para custear os serviços médico-hospitalares e demais beneficiários do Programa de Assistência ao Trabalhador Rural seriam proveniente de contribuição devida pelo produtor e pela contribuição previdenciária das empresas. Esse mecanismo constituiu-se basicamente pelo princípio da solidariedade compulsória, através da qual o Estado obrigava terceiros, no caso o produtor rural, por meio do adquirente dos produtos agrícolas, e as empresas em geral, a contribuírem para o FUNRURAL, mantendo o custeio do Programa de Assistência ao Trabalhador Rural". (2007, p. 40).

Assim, percebe-se que o sistema dava importantes passos rumo à universalização dos serviços na área da saúde, todavia continuava priorizando a proteção do trabalhador e seus dependentes, como é percebível com a criação do Ministério da Previdência e Assistência Social com a Lei nº 6.062/1974 e com a instituição do Sistema Nacional de Previdência e Assistência Social ? SINPAS com a Lei nº 6.439/1977, deixando a maioria da população sem atendimento com qualidade, em razão da possibilidade de orçamentos, haja vista o caráter seletiva dos serviços. (SANTOS, 2007, p. 40).
Em 1974 , o governo se viu obrigado a praticar políticas sociais, e isso se deu com o Plano Nacional de Desenvolvimento que marcou este momento, porquanto realizou um esforço para incorporação de uma dimensão social no seu projeto de desenvolvimento, apresentando um diagnóstico que apontava para a necessidade de mudança do padrão discriminatório das políticas sociais. (LIMA, 2006, p. 20).
Diante deste cenário de insatisfação, os movimentos sociais e a sociedade se articulavam sob a influência de discussões internacionais quanto nacionais no âmbito da saúde, verificando novos rumos tanto na política brasileira, em especial, na saúde , porquanto adverte Santos (2007, p. 41) que o sistema até então vigente "padecia de males crônicos como a corrupção, a ineficiência e a falta de controle social sobre as ações e serviços públicos de saúde, em face da centralização da gestão de recursos, do burocratismo e do gigantismo".

2.6 A REDEMOCRATIZAÇÃO E A LUTA PELA REFORMA SANITÁRIA: IMPLANTAÇÃO DO SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE ? SUS
Em 1986, houve o movimento organizativo do SUS tendo como marco a VIII Conferência Nacional de Saúde e a criação da Comissão Nacional de Reforma Sanitária que assegurou a "saúde como direito de todos e um dever do Estado" na Constituição Cidadã de 1988, demonstrando com isso um grande avanço em relação aos direitos sociais. (ASSIS et al. 2010, p. 245).
Em 1987, diante dos vários avanços experimentados no Sistema de Saúde no Brasil, criou-se o Sistema Unificado e Descentralizado de Saúde - SUDS (Decreto nº 94.657) com o intuito de descentralizar o sistema de saúde no país, isso proporcionou uma nova racionalidade de funcionamento do Sistema Nacional de Saúde, servindo de base para o Sistema Único de Saúde, que veio a ser promulgado pela CR/88. (SANTOS, 2007, p. 41).
Assim sendo, objetiva-se com o SUDS (Decreto nº 94.657/1987) a descentralização e integração dos serviços com responsabilidade das Secretárias Estaduais de Saúde, sendo isso alcançado mediante a transferência de recursos para os mesmos através de convênios. (LIMA, 2006, p. 26-27).
Destarte, a realização da VIII CNS, a implantação do SUDS como estratégia para reorientação da política de saúde já em consonância com os preceitos da VIII CNS, e a articulação de vários grupos de interesse em torno do projeto por meio dos Simpósios sobre Política Nacional de Saúde, realizados na Câmara dos Deputados, fizeram com que os princípios e diretrizes da reforma sanitária conquistassem na Assembléia Constituinte uma ampla base de sustentação, inclusive entre setores conservadores insatisfeitos com a situação de saúde da população. (LIMA, 2006, p. 27).
Com a promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil em 1988, cria-se o Sistema Único de Saúde - SUS que reconhece a saúde como um direito dos brasileiros e dever do Estado. A proposta de universalização do acesso a todos os níveis de atenção à saúde, independente do lugar ocupado pela pessoa no mercado de trabalho, confrontou, pela primeira vez na história do Brasil, o desenho histórico da cidadania regulada e sua expressão na política sanitária (LIMA, 2006).
Destarte, a partir de então o poder estatal tem o dever de promover e assegurar o direito à saúde através de implementação de políticas públicas, tendo o Ministério da Saúde como órgão instituidor responsável pela política de saúde, tanto de caráter individual como coletiva, posto que a saúde tem como características a universidade, a equidade e a integridade.



2.6.1 Sistema Único de Saúde - SUS

A consolidação da saúde como política se dá logo após a Segunda Guerra Mundial com o advento do Estado Social e dos sistemas de saúde difundidos pelo mundo, principalmente, na Europa constituindo a saúde como um dos temas mais amplamente discutidos pelas Ciências de um modo geral.
Neste sentir, indaga-se o que vem a ser saúde?
A noção de que a saúde constitui um direito humano e fundamental, passível de proteção e tutela pelo Estado, é de resultado de uma longa evolução na concepção não apenas do direito pátrio, mas da própria idéia do que seja a saúde.
A literatura especializada indica que a primeira acepção de saúde apareceu estreitamente ligada a uma explicação mágica da realidade, em que os povos primitivos viam o doente como ?vítima de demônios e espíritos malignos, mobilizados talvez por um inimigo?. Essa concepção seria questionada na Antiguidade grega, sobretudo com os estudos de Hipócrates, cujas observações empíricas não se limitaram apenas ao paciente, estendendo-se ao ambiente onde vivia. A partir disso, introduziu ele a discussão dos fatores ambientais ligados à doença e defendeu o que hoje poderia ser chamado de um ?conceito ecológico? de saúde-enfermidade, enfatizando a multicausalidade na gênese das doenças (FIGUEIREDO, 2007, p. 77).
Na Idade Média, houve um profundo retrocesso no sanitarismo, tendo em vista o período de pestilências e surtos epidêmicos decorrentes dentre tantos fatores, a miséria, a promiscuidade e falta de higienização.
No final do século XVIII e ao longo do século XIX, com a consolidação do Estado Liberal e com a Revolução Industrial , a assistência social e médica tiveram avanços, pois o Estado inclui-as no status legal-constitucional.
Nessa senda, o século XX foi marcado pela proteção sanitária, tratada como saber social e política do governo. Na seqüência, instituíram os sistemas de previdência social e, logo em seguida, o sistema de seguridade social (assistência, previdência e saúde públicas), conforme preceitua a Constituição de 1988.
Destaque-se a criação da Organização das Nações Unidas ? ONU e a promulgação da Declaração dos Direitos Humanos que incentivaram a criação de órgãos especializados a garantir alguns direitos humanos, a título de ilustração, a Organização Mundial de Saúde ? OMS .
No Brasil, o direito à saúde foi reconhecido apenas na Constituição Federal de 1988. Antes disso, o Estado apenas oferecia atendimento à saúde para trabalhadores com carteira assinada e seus familiares, demonstrando o seu caráter político, sendo que ao resto da população brasileira tinha acesso a apenas esses serviços como espécie de favor e não como um direito.
Logo, a concepção adotada pelo legislador constituinte de 1988 equipara-se ao conceito proposto pela Organização Mundial da Saúde ? OMS, afirmando-se que não pode conceituar a saúde na cura de doenças ou na assistência fornecida ao cidadão brasileiro doente, apresentando amplas proporções e, por conseguinte, exigindo do Estado medidas socioeconômicas para a promoção do direito à saúde por meio de implantação de políticas públicas.
Neste diapasão, no artigo 196 da Constituição Cidadã de 1988 previu o direito universal à saúde, a obrigação do Estado na promoção e proteção deste direito como sendo um direito de todos e dever do Estado, dando comumente status a este direito de política de relevância nos dispositivos 197 e 198 deste diploma legal .
Criou-se, assim, o Sistema Único de Saúde ? SUS (art. 200) como resultado da Reforma Sanitária, representando "o marco da maior inclusão social de que se tem notícia ", porquanto o sistema então vigente, Sistema Nacional de Saúde, criado pela Lei nº 6229/75 mostrava sinais de inoperância e ineficiência (FIGUEIREDO, 2007, p. 96).
Deste modo, o SUS é apontado como sendo a mais bem sucedida reforma da área social, haja vista o seu caráter universal e igualitário em contraste com a situação que perdurava no cenário brasileiro antes da Carta Magna de 1988, tendo por objetivo precípuo:

(...) o objeto fundamental dele vai ser o cuidado com a saúde das pessoas, que vai além da assistência médica, tem outras dimensões, mas ele tem de procurar contemplar o contexto social no qual está inserido. Por exemplo, no Brasil, um dos principais problemas da sociedade é a desigualdade e a exclusão social. Assim, ao se delinear o como fazer, tem de incorporar esses elementos, para ter eficácia social, (...) (ASSOCIAÇÃO PAULISTA DE MEDICINA, 2002. P. 14-15).


Neste diapasão, com a criação do SUS, as políticas públicas em saúde demonstraram evolução até então não vista , cuja regulamentação encontra-se na Lei n. 8.080/90,71 e, posteriormente, complementado com a edição da Lei n. 8.142/90.72 e, igualmente, implementado pelas Normas Operacionais Básicas ? NOBs que, segundo Mariana Filchtiner (2007, p. 97), consistem "em instrumentos para a fixação de estratégias e ações que reorientem a operacionalidade do SUS, a partir de avaliações periódicas acerca da implementação e do desempenho do próprio sistema".
Para Sarlet e Figueiredo (apud SOUZA, 2010, p. 74):

No âmbito da dimensão objetiva, é possível afirmar que o Sistema Único de Saúde assume a condição de autêntica garantia institucional fundamental no ordenamento jurídico brasileiro. Enquanto garantia institucional fundamental, estabelecida e regulamentada pela própria Constituição Federal, constitui-se em limite material de reforma constitucional, assim como protegida contra qualquer medida retrocessiva em geral.


Por tudo considerado, demonstra a tomada de responsabilidade por parte do Estado na área da saúde, mediante a concretização da criação do Sistema Único de Saúde - SUS, estando o núcleo central do conceito de saúde interligado diretamente com a idéia de qualidade de vida e, por conseguinte, um direito de cidadania que projeta a pretensão difusa e legítima de não apenas curar e evitar a doença, mas de ter uma vida saudável e digna, expressando uma aspiração de toda a sociedade brasileira, haja vista que faz parte do conjunto dos direitos fundamentais sociais, indagando Mariana Filchtiner Figueiredo:

O que é qualidade de vida? Como medi-la?
[...], partindo da perspectiva de saúde enquanto qualidade de vida problematiza em torno dos critérios de justiça das decisões em saúde, isto é, os "casos difíceis". Conquanto taxe de suspeita a idéia de medir a qualidade de vida, desde logo acentua que a noção de qualidade de vida é certamente pluridimensional, por envolver um aspecto individual, qual seja, o desejo não apenas de simples sobrevida, mas daquilo que torna a vida boa ? saúde, amor, sucesso, conforto, alegrias, enfim, felicidade; bem como, já sob um viés coletivo, por não se reduzir à prosperidade econômica (nível de vida e de desenvolvimento), comportando bens políticos (liberdade, igualdade, segurança), bens culturais (educação, informação, liberdade de criação), recursos demonográficos (taxa de natalidade convenientes, saúde da população globalmente considerada, pouca mortalidade). Mesmo limitando-se àquilo que, na qualidade de vida, tange à saúde [...], tem-se ainda um conceito pluridimensional. (2007, p. 82).

Logo, essa noção de qualidade de vida acaba por acarretar colossais conseqüências no plano sanitário, seja em termos de decisões individuais seja em se tratando de políticas públicas.
Em suma, o direito fundamental à saúde deve abarcar a fruição de toda uma gama de facilidades, bens, serviços e condições, necessários para que a pessoa alcance e mantenha o mais alto nível possível de saúde, compreendendo dois elementos: o direito à conservação do ?capital de saúde? herdado, por outro lado, o direito de acesso aos serviços de saúde adequados em caso de dano a esse capital, por outro (FIGUEIREDO, 2007, p. 84).
Neste sentir, o SUS é regido pelos seguintes princípios: 1) universalidade; 2) integridade; e 3) equidade, tendo em vista que a adequada compreensão dos conteúdos jurídicos dos princípios éticos-políticos constitucionais informadores das políticas públicas de saúde é relevante para a determinação das exigências do direito à saúde no âmbito do Sistema Único de Saúde ? SUS.
O princípio constitucional da universalidade consiste em assegurar as condições indispensáveis a todos os brasileiros e estrangeiros residentes no Brasil no que tange a prestação de serviço público de saúde, tendo este princípio o desafio de ofertar a todos que necessitem dos serviços e ações de saúde de forma adequada, eficaz e eficiente (BRASIL, 2000, p. 30).
O Estado compete, portanto, garantir as condições imprescindíveis para se obter um pleno exercício e o acesso à atenção e assistência à saúde em todos os níveis de complexidade, pois com a universalidade, o indivíduo passa a ter direito de acesso a todos os serviços públicos de saúde, assim como àqueles contratados pelo poder público.
Contudo, a despeito de o ordenamento pátrio aponte para um sistema unificado, universal sob a tutela estatal, a realidade social demonstra que, na atualidade, um dos objetos de desejo do cidadão brasileiro é ter um plano de saúde . (ANDRADE 2010, p. 67-68)
Outrossim, o princípio da universalidade está intimamente interligado à gratuidade no acesso aos serviços e ações de saúde em observância à política pública instituída pelo Sistema Único de Saúde ? SUS com a promulgação da Constituição de 1988, independentemente da condição econômica, todos compartilham os mesmos serviços de saúde.
Registre-se que o direito à saúde, regido pela dicção constitucional que ordena o "acesso universal igualitário" (art. 196), reclama respeitar e observar as diferentes situações experimentadas pelos indivíduos e grupos quando do desenvolvimento das políticas públicas. Numa sociedade plural e diversa, cumprir a obrigação de propiciar acesso universal igualitário significa, na medida do possível, considerar a diversidade cultural, social, econômica, geográfica, etc., presente nos indivíduos e grupos destinatários das políticas públicas de saúde, tornando o sistema de fornecimento de bens e serviços pertinentes à saúde capaz de atendê-los. Nesta linha, pode-se falar num direito difuso a um sistema de saúde que conjugue medidas genéricas e medidas específicas (que consideram a especificidade de cada grupo) de prevenção e promoção da saúde. (RIOS, p. 06).
Quanto ao princípio da integralidade, informador das políticas públicas de saúde, está prevista no artigo 198, inciso II do texto constitucional. Refere-se à assistência oferecida pelo SUS que deve ser a mais ampla possível, nada obstante a existência de certos limites, especialmente de natureza técnica, vinculando aos princípios da precaução e da prevenção, avultando a prioridade das atividades preventivas, tanto no sentido restrito das ações de medicina preventiva, quanto no sentido mais amplo, como ações e políticas sanitárias, saneamento básico e um meio ambiente saudável e equilibrado. (SOUZA, 2010, p. 76).
Nessa senda, a integralidade requer racionalização do sistema de serviço, de modo hierarquizado, buscando articular ações de baixa, média e alta complexidade, bem como humanizar os serviços e as ações do SUS (BRASIL, 2000, p. 31), ou seja, é o reconhecimento na prática dos serviços de que o homem é um ser integral, bio-psíco-social, e deverá ser atendido com esta visão integral por um sistema de saúde também integral, voltado a promover, proteger e recuperar não somente a vida de uns ou alguns indivíduos, mas sim de toda a coletividade .
Por derradeiro, tem-se o princípio da equidade que consiste em buscar uma maior justiça social e, por conseguinte, diminuição das desigualdades sócio-econômicas.
O princípio da equidade reafirma que essa necessidade de reduzir as disparidades sociais também por meio das ações e dos serviços de saúde. Contudo, não se pode perder de vista que há uma sinergia e uma série de externalidades positivas geradas a partir da melhora das condições de saúde da população o que faz concluir que de fato a saúde é fundamental na busca de uma maior equidade (BRASIL, 2000).
Tudo considerado, a despeito das conquistas e avanços obtidos com a criação o SUS e a conseqüente garantia da saúde enquanto um direito de cidadania e um dever do Estado, a sua implementação vem sendo marcada pelo enfrentamento de uma série de constrangimentos impostos principalmente pelo modelo econômico adotado no país favorecendo a política neoliberal de estado mínimo, pois, como bem adverte Nacôr Paulo Pereira dos Santos, "a desigualdade social e regional, que se reflete no Sistema Único de Saúde, sinalizada comparativamente à evidência da concentração de riquezas nas mãos de poucos, restringe o princípio da igualdade a uma dimensão meramente formal e, por conseguinte, o da acessibilidade universal, a uma mera ilusão". (2007, p. 54).
Característica importante do SUS, outrossim, são as diretrizes que organizam este sistema: a descentralização e a participação da comunidade. Por descentralização, entende-se:
(...) a atuação regionalizada, atendendo as diretrizes da OMS e as reivindicações do Movimento de Reforma Sanitária, permitindo a adaptação das ações de saúde ao perfil epidemiológico local. O caráter regionalizado de organização sanitária colabora para a redução da complexidade do amplo espectro de situações e possibilidades que o direito sanitário engendra, a partir da análise individualizada de cada região. Corolário desta diretriz é o fenômeno, no Brasil, da municipalização da saúde, que, embora necessite de um planejamento nacional, mediante normas gerais, reforça a autonomia municipal e corresponde, de forma mais fidedigna, à formação histórico-sócio-cultural e política do Brasil. (SOUZA, 2010, p. 75-76).

Observa ASSIS et al (2010, 0. 245-246) que a diretriz de descentralizar a saúde no Brasil possibilitou uma maior aplicabilidade das ações locais, favoreceu o surgimento de experiências exitosas nos diversos níveis de atenção, através da regionalização da saúde e, comumente, a integração da rede.
Contudo, aqui, a despeito deste progresso, deve-se fazer a seguinte consideração: a descentralização não se fez acompanhar dos recursos necessários para atender as demandas, tendo em vista os problemas em torno da desigualdade da arrecadação de tributos, pois:

o sistema tributário brasileiro é, duplamente, perverso, pois de um lado, os cidadãos pagam uma carga excessiva de tributos, comparando-os com os ganhos individuais ou com o montante do PIB. De outro, o sistema tributário é absurdamente injusto quando a União arrecada uma fatia muito maior do que os Estados, inclusive o DF e os Municípios a despeito de a prestação dos serviços está, sobretudo, a cargo dos Estados e dos Municípios, mas a fatia maior de recursos financeiros concentra-se na União.(SANTANA, 2010, p. 54).


Ao passo que a participação da comunidade como diretriz do SUS é caracterizada pela interação da comunidade de forma direta e indireta no setor da saúde. A Lei 8142 impõe, dentre outros, normas sobre a participação da comunidade na gestão do SUS, com base nas quais podem ser criados a Conferência de Saúde e o Conselho de Saúde, instâncias colegiadas existentes em cada um dos níveis federal, estadual e municipal, atuando como catalizadores da participação e gestão democrática do sistema. (FIGUEIREDO, 2007, p. 98).
Para José Lima Santana (2010, p. 55) a participação da comunidade através dos Conselhos de Saúde atende ao chamamento da sociedade para a efetivação do que se convencionou denominar controle social da Administração Pública.
Neste sentido, os Conselhos de Saúde acabam por ter um grande papel perante a sociedade, pois contribuem para a elaboração, planejamento e controle de políticas públicas da saúde, através dos membros da sociedade que deles tomam parte. (SANTANA, 2010, p. 55).
Por seu turno, não se deve esquecer-se da importância das Conferências de Saúde no contexto do controle social tendo em vista que "são instâncias colegiadas, de caráter consultivo, que possibilitam a inserção da participação social no âmbito do poder executivo, tendo como objetivo avaliar a situação de saúde e propor as diretrizes da política de saúde em cada nível de governo". (SANTANA, 2010, p. 55).
No tocante à conformação jurídica infraconstitucional do direito à saúde, há inúmeras leis, portarias, resoluções e atos regulatórios regulando este direito, demonstrando a preocupação de assegurar o âmbito de proteção deste direito fundamental, a título de ilustração, pode-se citar a Lei nº 8080/90 que regula o sistema organizacional do SUS; a Lei nº 8142/90 que disciplina a participação da comunidade na gestão do SUS; a Lei nº 9434/97 que dispõe sobre a distribuição gratuita de medicamentos aos portadores do vírus do HIV e, especialmente, a portaria 1318/2002 que regulamenta o programa de dispensação de medicamentos excepcionais.
Tudo considerado, a despeito dos avanços indiscutíveis no marco legal, o SUS sofre uma série de limitações, seja na lógica organizacional seja na operacionalidade do sistema, a título de ilustração, pode-se citar: o despreparo dos gestores e trabalhadores de saúde para planejar e gerir uma rede complexa e polissêmica; identificação de uma política de gestão do trabalho que vincule o trabalhador ao sistema, insuficiência da avaliação de desempenho, da gestão e dos serviços e ações de saúde; recursos financeiros insuficientes e concentrados nos níveis de média e alta complexidade e um modelo de atenção à saúde centrado em procedimentos e na assistência individual e curativa, sem redefinir sua matriz tecnológica. (ASSIS et al, 2010, p. 246).
Na perspectiva de ASSIS et al (2010, p. 246):

Na composição hierárquica de sistema de saúde predominam os fluxos do menor nível hierárquico para o maior, não possibilitando, muitas vezes, caminhos alternativos para esse percurso, demonstrando na prática as dificuldades de resolubilidade das demandas apresentadas pelos usuários. A baixa oferta de serviços, principalmente na média e alta complexidade, e a excessiva burocratização promovem estrangulamentos nos pontos de articulação que impedem uma mobilidade da população aos diferentes níveis da rede.

Tangente ao custeio da política de saúde verifica-se que, originalmente, não houve preocupação do legislador constituinte em determinar de antemão recursos específicos para a saúde. Contudo, estabeleceu no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) em seu artigo 55, estabelecendo que, até a aprovação da Lei de Diretrizes Orçamentárias ? LDO, 30% (trinta por cento), no mínimo, dos recursos orçamentários da seguridade social, seriam destinados exclusivamente à saúde.
Prepondera Mesquita (2008, p. 72), ao analisar essa dotação mínima prevista nos ADCT, que:

O Ministério da Saúde (MS) recebeu, em 1991, 33,1% do total das contribuições, mas, em 1992, essa participação diminuiu para 20,95%. (...), a regra contida no ADCT funcionou nos dois primeiros anos de vigência da Constituição. A LDO para 1991 reproduziu o disposto no art. 55 do ADCT. Já em 1992 e 1993, optou-se pela especialização informal de fontes ao invés da definição legal de percentuais mínimos. Assim, em 1992, houve um acordo de lideranças no Congresso estabelecendo o direcionamento dos recursos da CSLL para a Assistência Social e os do Finsocial para a Saúde. No entanto, a arrecadação do Finsocial neste ano ficou comprometida pelo forte questionamento judicial sobre sua validade constitucional, o que levou posteriormente a sua transformação em Cofins. Por tabela, o financiamento da saúde foi insuficiente, eclodindo uma crise de financiamento da saúde pública em 1992, sanada com empréstimo junto ao FAT. Em 1993, a crise de financiamento se agravou, pois além de não cumprir o disposto na LOA, que previa a destinação de 15,5% dos recursos da contribuição sobre folha de salários para a saúde, o Ministério da Previdência (MP) suspendeu qualquer repasse desta fonte para o MS desse momento em diante. Desde então, as contribuições sobre folha de salário, constitucionalmente destinadas a financiar o conjunto da seguridade social, passaram a ter destinação exclusiva: a previdência44. Com o fim do repasse das contribuições sobre folha, a saúde mergulhou numa crise de financiamento e o MS foi obrigado novamente a recorrer a empréstimos de recursos do FAT.
Diante destas dificuldades, criou-se a contribuição provisória sobre movimentação financeira ? CPMF em 1996 que buscou assegurar recursos adicionais para a saúde , contudo não representou grandes progressos na busca de incrementos recursais para o setor da saúde.
Em 2000, aprovaram a Emenda Constitucional nº 29 estabelecendo uma aplicação mínima de recursos no custeio das ações e serviços públicos de saúde. Neste sentido, segundo a EC nº 29, até o ano de 2004, os Estados e Municípios deveriam comprometer com ações e serviços públicos de saúde no percentual mínimo de 12% e 15%, respectivamente, da sua receita de impostos e para a União seria de no mínimo 5% maior do que o investido no ano de 1999 para o ano de 2000, tema que será trabalhado mais detalhadamente no próximo capítulo, no item 2.3.
Por seu turno, a EC nº 29 representou um importante avanço no setor da saúde, comprometendo os entes da federação a destinarem um percentual mínimo à saúde, tudo em busca da consolidação do SUS.
Outra conduta que busca a promoção eficaz da saúde no Brasil é a denominada medicina baseada em evidências ? MBE aplicada no SUS no o intuito de tentar promover o uso de condutas eficazes, de inibir condutas inefetivas e de promover a investigação clínica de tratamentos experimentais. A MBE parte de um processo estruturado para identificação de informações de alta qualidade que possam ser utilizadas na prática médica, ajudando, sobremaneira, o magistrado ao proferir uma decisão correlata ao direito à saúde, posto que as MBE podem orientá-lo em suas decisões de forma mais técnica e com menos tendenciosidades. (CLARK; VIANNA, 2010, p. 122).
Destarte, embora passados 21 anos desde a promulgação da Lei nº 8080/1990, o SUS é um sistema que, paulatinamente, vem sendo concretizado, revelando que a realidade do SUS é, segundo elucida Assis et al (2010, p. 248), "uma aprendizagem que deve ser refletida no dia a dia dos serviços".

CONSIDERAÇÕES PARCIAIS

Neste primeiro capítulo buscou analisar a trajetória institucional da política de saúde no Brasil, desde a Primeira República até a implantação do SUS como sistema universal, equitativo e integrativo tendo como principais diretrizes a descentralização que possibilitou uma maior aplicabilidade das ações locais no setor da saúde, bem como a participação da comunidade marco pela interação da sociedade de forma direta ou indireta na promoção da saúde.
Contudo, para se chegar a este estágio de a saúde ser um direito de todos os brasileiros e um dever do poder estatal, foi percorrido um longo caminho, posto que a saúde até 1988, com a promulgação da Constituição Cidadã, tinha como principal característica a sua seletividade, haja vista que apenas parcela da população brasileira tinha acesso a ações e serviços de saúde pública, ou seja, havia uma segmentação e seletividade dos serviços de saúde, uma vez que apenas os brasileiros com carteira assinada que contribuíam com a Previdência tinham assegurados a saúde, verificando-se, assim, a chamada cidadania regulada.
Diante deste cenário, em fins dos anos 1970, tem início um processo de luta pela reforma no setor saúde, caracterizado pela busca da universalização e democratização do direito à saúde, criando-se o Sistema Único de Saúde ? SUS, ensejando mudanças amplas no tratamento dos riscos sociais através de implementação de políticas públicas.
Com efeito, a despeito dos avanços no marco legislativo com a criação da Lei nº 8080/199 e a Lei 8142/1990 e regulou o SUS. A Lei nº 9434/1997 passou a assegurar aos pacientes portadores do vírus do HIV o fornecimento gratuito de medicamentos e portarias, como a portaria nº 1318/2002 que regulou o programa de dispensação de medicamentos excepcionais dentre outras, verifica-se dificuldades diversas enfrentadas pelo SUS.
Com a promulgação da Emenda Constitucional nº 29/2000 ficou estabelecido a aplicação mínima de recursos no custeio das ações e serviços públicos de saúde, comprometendo cada ente federativo com um percentual mínimo a ser cumprido obrigatoriamente, buscando a consolidação do SUS e, por conseguinte, assegurar o direito à saúde a maior parcela possível de cidadãos brasileiros.


REFERÊNCIAS
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