A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO ADMINISTRATIVO E O CONTROLE DE MÉRITO (OPORTUNIDADE E CONVENIÊNCIA) DO ATO ADMINISTRATIVO DISCRICIONÁRIO PELO PODER JUDICIÁRIO BRASILEIRO

 

Mayara Almeida[1]

Hugo Assis Passos [2]

Sumário: Introdução; 1. O conceito de ato administrativo vinculado e discricionário; 2. O controle de mérito do ato administrativo discricionário; 3. O controle da discricionariedade na jurisprudência dos tribunais; 5. Conclusão; 6. Referências

 

                                                   RESUMO

O presente trabalho consiste, precipuamente, em discutir a (im) possibilidade de controle de mérito (oportunidade e conveniência) do ato administrativo discricionário pelo poder judiciário brasileiro. Assim, torna-se importante examinar o verdadeiro sentindo desse controle de mérito realizado pelo Poder Judiciário no atual cenário forense. Para isso, far-se-á uma ampla pesquisa sobre todo o tema em questão através de uma análise doutrinária e jurisprudencial.

PALAVRAS-CHAVES

Controle. Mérito administrativo. Ato Discricionário.

INTRODUÇÃO

 

O tema escolhido para o presente trabalho é, inegavelmente, muito polêmico no atual cenário jurídico, causando muita divergência doutrinária e os mais diferentes posicionamentos jurisprudenciais. Isso porque, durante muito tempo, o ato dos administradores era tido como inquestionável, estando imune a qualquer tipo de controle feito por qualquer tipo de órgão. Assim, o Estado não tinha limite algum e inúmeras arbitrariedades eram perpetradas no seio da sociedade, que, atônita, assistia à supressão de garantias que eram dela por direito.

Esse quadro mudou com a instituição de um Estado Democrático de Direito, que passou a prezar pelos mínimos existenciais, fazendo com que o administrador público obedecesse os comandos legais para que fosse atingida a finalidade desejada, qual  seja:  promoção do interesse público. Dentro desse contexto, passou-se a reduzir o espectro do administrador, que deveria usar seus artifícios sempre visando o bem comum e o exato cumprimento dos ditames legais, bem como ao seguimento de princípios constitucionais. Por esse motivo é que compete ao judiciário fiscalizar e observar se a finalidade da lei está sendo seguida quando da edição de um ato administrativo. A doutrina é pacífica quando esse controle é feito nos atos administrativos vinculados, uma vez que se esses não seguirem a lei, estarão sujeitos, inevitavelmente, a alguma sanção. Todavia, em relação ao controle feito aos atos discricionários há uma verdadeira polêmica quanto à atuação do judiciário. 

Ocorre que, em face do crescente descrédito das instituições públicas, dos constantes abusos de poder e de corrupção, passou-se a questionar uma real possibilidade de intervenção do poder judiciário nos atos discricionários da administração pública. De um lado surgiram os adeptos da total impossibilidade de adentrar-se na discricionariedade do administrador, uma vez que essa atribuição foi conferida a ele por lei, não podendo outro poder intervir nesses atos, sob pena de grande afetação ao princípio da separação dos poderes; de outro, passou-se a defender a intervenção do judiciário como forma de garantir um efetivo controle e evitar abusos.

 Como o tema é de grande importância no atual cenário, o objetivo é trazer a problemática em questão, levantando a real possibilidade desse controle feito pelo judiciário, bem como os limites impostos a essa atuação. Para isso, em um primeiro momento, será diferenciado ato administrativo vinculado de discricionário; posteriormente, será analisado o controle de mérito nos atos discricionários e, por fim, a real aplicação desse instituto nos tribunais pátrios.

 

1 O CONCEITO DE ATO ADMINISTRATIVO VINCULADO E DISCRICIONÁRIO

 

Os atos administrativos são uma o espécie de ato jurídico, uma vez que este se caracteriza como manifestação humana unilateral que tem com conseqüência uma alteração no mundo jurídico. Assim, o que particulariza ato administrativo como gênero de atos jurídicos é que aquele se caracteriza uma forma de manifestação unilateral da administração pública e de quem lhe faça as vezes para a satisfação do interesse público. Desta forma, esses atos se sujeitam as normas de direito público e por esse motivo gozam de prerrogativas e atribuição próprias. Quanto assunto ensina Marcelo Alexandrino e Vicente Paulo que:            

Ato administrativo é uma manifestação ou declaração da administração pública, nesta qualidade, ou de particulares no exercício de prerrogativas públicas, que tenha por fim imediato a produção de efeitos jurídicos determinados, em conformidade com o interesse público e sob regime predominantemente público. (ALEXANDRINO, Marcelo; PAULO, Vicente, 2013, p.446).

É cabível ressaltar que apesar de ser atribuição própria do Poder Executivo a edição de atos administrativos esta prerrogativa não é inerente somente a este Poder. O legislativo e o judiciário também editam atos administrativos principalmente no que tange a sua administração interna, como por exemplo, os atos que visam a contratação de pessoal ou aquisição de materiais. Desta forma, esses atos oriundos desses dois poderes também gozam de atribuições e características típicas da administração pública visando sempre atender aos anseios da coletividade.                                                                                                

Sabe-se que administração pública possui poderes que revelam sua posição de supremacia em relação ao interesse particular. No entanto, essa supremacia é limitada conforme o que está previsto em lei, como forma de impedir abuso e arbitrariedade da administração e seus agentes. Devido a esse fato, a manifestação da administração pública materializada através de atos administrativos deve seguir o regramento do sistema vigente  que pode atingir vários aspectos e formas dependendo desse ato ser classificado como vinculado ou discricionário.                                                                                                      

Diz-se, então, que o ato administrativo é vinculado quando a lei não oferece liberdade ao agente público na tomada de decisões devendo este sempre atuar em um único sentido diante de uma determinada situação. Por esse motivo, não cabe ao agente público a avaliação de oportunidade e conveniência para a edição desse tipo de ato administrativo, uma vez que “quando atendidas as condições legais, o ato tem que ser praticado invariavelmente” (ALEXANDRINO, Marcelo; PAULO, Vicente, 2013, p.446).                                        

Nesse sentido, o ato administrativo vinculado é estritamente objetivo, na medida em que não requer avaliação subjetiva do agente público em relação a forma como irá atuar. Na verdade, ele deve agir em uma única e obrigatória direção que está disposta na legislação e é devido a esse fato que afirma Di Pietro “que o particular tem o direito subjetivo de exigir da autoridade a edição desse tipo de ato, sob pena de, não o fazendo, sujeitar-se à correção judicial” (DI PIETRO, Maria Zanella, 2013, p. 222).  Assim, na realização de um ato administrativo vinculado o agente está rigorosamente adstrito a forma de atuação prevista em lei e “a ele nada mais cabe senão praticar o ato tão logo configurado” (FILHOS, José do Santos Carvalho, 2012,p.112)                                                                                      

Em relação ao ato administrativo discricionário, a lei estabeleceu uma flexibilidade na atuação do agente público, na medida em que ofereceu uma maior liberdade para a tomada de decisão segundo critérios de conveniência e oportunidade. Como afirma Alexandrino: “os atos administrativos discricionários são aqueles que administração pode praticar com certa liberdade de escolha nos termos e limites da lei, quanto a seu conteúdo, seu modo de realização, sua oportunidade e sua conveniência administrativas”.   (ALEXANDRINO, Marcelo; PAULO, Vicente, 2013, p.446).                                              

Desta forma, configurada a hipótese legal para atuação da administração pública através de ato administrativo discricionário esta pode escolher atuar dentre as várias formas possíveis válidas dispostas na legislação. Segundo lições de Maria Zanella Di Pietro, apesar de o agente público possuir uma maior liberdade para tomada de decisão quando pratica um ato administrativo discricionário a sua atuação está condicionada aos limites traçados por lei, sob pena de sua decisão ferir o princípio da legalidade, além de ser considerada arbitrária. ((DI PIETRO, Maria Zanella, 2013, p. 222).                               

Outra hipótese na qual é cabível uma ação discricionária da administração pública, segundo a maioria da doutrina, se dá quando a lei emprega conceitos jurídicos indeterminados no tocante ao motivo que enseja a prática de determinado ato administrativo. Nessa hipótese segundo Alexandrino e Vicente Paulo (2013, p. 452) “o agente se depara com situações em que não existe possibilidade de afirmar, com certeza, a ocorrência ou não do enquadramento do fato no conteúdo da norma” e, por esse motivo, não será possível uma atuação unívoca da administração pública, pelo contrário ela deverá analisar a hipótese legal de forma oportuna e conveniente para determinar dentre as várias possibilidades dispostas em lei a que mais se enquadra no conteúdo do conceito jurídico indeterminado tendo em vista entender ao interesse da coletividade.                   

Desse modo, enquanto para produção do ato administrativo vinculado a atuação do agente público está estritamente ligada a lei, na medida em que o atos administrativo a serem produzidos devem-se seguir rigorosamente os critérios de competência, finalidade, forma e motivo; para a produção do ato administrativo discricionário o agente possui uma certa liberdade de escolha dentro dos ditames legais em relação a valoração dos motivos e escolher do objeto conforme critério de oportunidade e conveniência para a produção do ato. (ALEXANDRINO, Marcelo; PAULO, Vicente, 2013, p.451).    Nas duas hipóteses apresentadas, o agente público na produção do ato discricionário deve atuar não só seguindo os ditames da lei, mas também deve ter em vista os princípios administrativos (eficiência, moralidade, legalidade , dentre outros).                                                                    

Assim, nota-se a distinção que existe na produção desses dois atos que compõem a administração pública está relacionada ao grau de liberdade conferido por lei para atuação do agente público. Portanto, para a produção desses atos administrativos o agente  público não pode atuar ferindo os ditames legais, sob pena de agir arbitrariamente e abusivamente comprometendo a satisfação do interesse público.

2 CONTROLE DE MÉRITO DO ATO ADMINISTRATIVO DISCRICIONÁRIO

Como já foi fartamente explicado nas linhas acima, no ato administrativo discricionário a lei deixa um espaço para que o administrador opte por uma das várias opções dispostas no texto legal, levando em conta conveniência e oportunidade. Entretanto, o grande dilema encontra-se no possível controle dos atos feito pelo Judiciário, e isso tem uma razão de ser. Explica-se: a discricionariedade é um poder que já foi limitado anteriormente pelo legislador, não podendo, por esse motivo, o Judiciário adentrar nessa esfera e substituir os próprios critérios dispostos na legislação (DI PIETRO, 2013).

Ocorre que essa discricionariedade administrativa perpassou séculos e sempre foi tida como absoluta e incondicionada, não podendo sofrer, anteriormente, em quaisquer hipóteses, interferências pelo judiciário. Isso porque com o surgimento do Princípio da Separação dos Poderes, estes foram tendo absoluta autonomia e independência, não sendo admitida a imposição de limites nos atos praticados, sob pena de violar a harmonia entre eles (MATTOS, 2005).

Antes da Revolução Francesa, a vontade do soberano era absolutamente inquestionável, não podendo ser alvo de qualquer controle judicial. Após a onda de inúmeros movimentos que repudiavam o sistema absolutista, chegou-se a um Estado Democrático de Direito, que prezava, sobretudo, pelas garantias individuais e pela limitação do poder estatal. Dentro desse contexto, o Brasil passou a adotar modelo de jurisdição una, que reza que o judiciário apreciará os atos praticados pela administração pública. Todavia, como já ressaltado, quando os atos são decorrentes do poder discricionário da administração pública, tem-se questionado, em demasia, os verdadeiros limites desse controle (NASCIMENTO, 2011).

Nesse sentido, algumas teorias foram criadas no intuito de fixar os limites do poder discricionário da administração, levando em consideração o possível controle feito pelo Judiciário. A primeira delas menciona o desvio de poder, que preceitua que, agindo a administração em desconformidade com os comandos legais e extrapolando os poderes que lhes são de direitos, cabe intervenção do poder judiciário. Uma outra teoria, conhecida como Teoria dos Motivos Determinantes preceitua que a administração deve indicar os motivos que foram cruciais para a realização de um ato e não estando aqueles  utilizados de forma devida, caberá, mais uma vez, intervenção do judiciário para anulação do ato (DI PIETRO, 2013).

Além dessas teorias, é possível notar que a doutrina se divide em duas correntes, quais sejam: corrente clássica ou tradicional e corrente moderna ou nova visão. A primeira corrente defende a impossibilidade de adentrar no mérito dos atos administrativos discricionários, sob pena de comprometer, de forma frontal, o princípio constitucional da independência dos poderes. Nesse sentindo, José dos Santos Carvalho Filho:

O Judiciário, entretanto, não pode imiscuir-se nessa apreciação, sendo-lhe vedado exercer controle judicial sobre o mérito administrativo. Como bem aponta SEABRA FAGUNDES, com apoio em RANELLETTI, se pudesse o juiz fazê-lo, faria obra de administrador, violando, dessarte, o princípio de separação e independência dos poderes. E está de todo acertado esse fundamento: se ao juiz cabe a função jurisdicional, na qual afere aspectos de legalidade, não se lhe pode permitir que proceda a um tipo de avaliação, peculiar à função administrativa e que, na verdade, decorre da própria lei. (CARVALHO FILHO, 2008, p. 115)

Assim, para essa corrente doutrinária, a própria lei já preceitua que compete ao poder executivo a realização de determinadas atribuições, e sendo este escolhido pelo povo, não deve haver uma correção do judiciário em tais casos, pois isso iria ocasionar a invasão em um outro poder. Adepto dessa corrente, Hely Lopes Meirelles preceitua que “em tais atos [discricionários], desde que a lei confia à Administração a escolha e valoração dos motivos e do objeto, não cabe ao Judiciário rever os critérios adotados pelo administrador, porque não há padrões de legalidade para aferir essa atuação” (2008, p. 158).

Em total oposição à corrente já explanada, a corrente moderna acredita que ao judiciário incube não apenas a análise do aspecto formal do ato em questão, mas também a análise do mérito administrativo, uma vez que em um Estado Democrático de Direito deve-se prezar pela observância dos princípios jurídicos, não podendo o administrador agir com uma discricionariedade ilimitada, imune a qualquer tipo de controle (NASCIMENTO, 2011). Quanto ao assunto, discorre Moraes (2004, p. 16):

O expectro do controle judicial dos atos administrativos, antigamente reconduzido à verificação de legalidade desses atos, executável, predominante, através do método silogístico, usado em função da estrutura da regra jurídica- ante a principal fonte do direito administrativo, amplia-se para o controle da constitucionalidade dos atos administrativos, que se operacionaliza também por intermédio de outros métodos impostos pela adoção da fonte atualmente hegemônica do Direito – os princípios, estruturalmente distintos das regras. Cabe ao Poder Judiciário, além da aferição da legalidade dos atos administrativos – de sua conformidade com as regras jurídicas, o controle de juridicidade – a verificação de sua compatibilidade com os demais princípios da Administração Pública, para além da legalidade, a qual se reveste do caráter de controle de constitucionalidade dos atos normativos, pois, aqueles princípios se encontram positivados na Lei Fundamental (MORAES, 2004)

O que diz o renomado autor é que além dos atos precisarem estar em total consonância com a lei, é necessário que eles estejam, acima de tudo, em conformidade com os princípios insertos na Magna Carta, tais como: impessoalidade, moralidade, eficiência e publicidade. Segundo o princípio da impessoalidade, o administrador não deve distanciar-se do fim legal, procurando sempre realizar a promoção do interesse público e jamais de interesses privados. De acordo com o princípio da moralidade, o administrador deve agir de forma íntegra, moral e lícita para a consecução dos fins da administração pública. O princípio da eficiência informa que o administrador deve levar em conta o melhor rendimento do trabalho, sempre tendo em vista a obtenção de metas e a perfeição no mister desenvolvido. Já o princípio da publicidade visa a publicização dos atos da administração, tendo em vista informar os administrados de tudo o que ocorre para que eles, querendo, possam contestar (CALADO, 2011).

Assim, conforme Moraes, o âmbito de discricionariedade do administrador foi diminuído, face à própria constitucionalização desses princípios, o que, inegavelmente, pode dar ensejo a um controle de constitucionalidade feito pelos legitimados. Segundo Binenbojm “o antigo mérito do ato administrativo sofre, assim, um sensível estreitamento, por decorrência desta incidência direta dos princípios constitucionais” (BINENBOJM apud RIBAS). Esse controle pode ser feito pela forma difusa, através de juízes e tribunais; pelo próprio Supremo Tribunal Federal, através da via direta (CF, art. 102, I, a, CF); por uma Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão, que pode ser proposta por algum dos legitimados; bem como por uma Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (CALADO, 2011).

 Assim, inúmeros são os mecanismos aptos a questionar os atos administrativos, sejam eles discricionários ou não. O que se percebe no atual contexto de constitucionalização do direito administrativo, é que a discricionariedade do administrador não pode ser usada como um óbice ao controle judicial, uma vez que cabe o gestor público agir com discricionariedade nos exatos limites impostos pela lei, não devendo guiar-se por suas próprias convicções e vontades, sendo contrário ao interesse da coletividade.

É nesse sentido que o Supremo Tribunal Federal reconhece a Teoria dos Motivos Determinantes como apta a legitimar atos administrativos, aqui entendidos também os discricionários, uma vez que se os motivos forem inverídicos e se os atos não estiverem estritamente vinculados a eles, aqueles estariam eivados de vício, o que conduziria à sua inevitável invalidação. Ora, o administrador deve explicar aos administrados quais os motivos que o conduziram a praticar determinados atos, isso porque, segundo Viegas (2011), “apesar de possuir uma margem de liberdade de atuação, se encontra na qualidade de mero gestor dos anseios da coletividade, e, assim deve explicação à população como um todo, tem um ‘dever de boa administração’”.

O que se observa é que com a constitucionalização do direito administrativo, acabou-se incluindo os princípios constitucionais dentro do conceito de legalidade em sentido amplo. Isso fez com que, no atual contexto, houvesse uma redução dos atos discricionários da administração pública e, por outro lado, uma verdadeira ampliação do controle judicial (DI PIETRO apud RIBAS, 2013). Todo esse sistema de controle tem uma razão de ser: ora, é totalmente inconcebível que inúmeros atos despóticos e sem finalidade de atingir o bem comum sejam praticados sob o manto da discricionariedade, como forma de impedir toda e qualquer supervisão do judiciário. Quanto a isso, preceitua, com maestria, Maria Sylvia Zanella Di Pietro:

Essa tendência que se observa na doutrina, de ampliar o alcance da apreciação do Poder Judiciário, não implica invasão na discricionariedade administrativa; o que se procura é colocar essa discricionariedade em seus devidos limites, para distingui-la da interpretação (apreciação que leva a uma única solução, sem interferência da vontade do intérprete) e impedir as arbitrariedades que a Administração Pública pratica sob o pretexto de agir discricionariamente. (2013, p. 204)

Diante do que foi exposto, percebe-se que a atual tendência do ordenamento jurídico brasileiro é um controle judicial efetivo dos atos administrativos discricionários, tendo em vista os comandos legais, mas sobretudo, toda a gama principiológica que norteia o ordenamento pátrio. Esse controle evitará o arbítrio dos gestores públicos, permitindo que o Judiciário realmente comprove que o ato foi editado de acordo com a finalidade da lei e em prol dos anseios da coletividade.

3 O CONTROLE DA DISCRICIONARIEDADE NA JURISPRUDÊNCIA DOS TRIBUNAIS     

Como foi abordado em linhas anteriores, há uma vasta discussão quanto ao controle jurisdicional de mérito do ato administrativo discricionário pelo Poder Judiciário.  Na decisão proferida pelo STJ em Recurso Especial nº 429570/GO, que tratava sobre a omissão da administração na realização de obras de recuperação de área degradada por erosão que estavam causando sérios danos a população de Vila Maria em Goiás, a Ministra Eliana Calmon emitiu seu voto afirmando que na omissão da administração é cabível ao judiciário, não só realizar  o controle de legalidade , mas também realizar o controle de mérito do ato administrativo discricionário. Conforme acórdão abaixo:

ADMINISTRATIVO E PROCESSO CIVIL – AÇÃO CIVIL PÚBLICA – OBRAS DE RECUPERAÇÃO EM PROL DO MEIO AMBIENTE – ATO ADMINISTRATIVO DISCRICIONÁRIO.

1. Na atualidade, a Administração pública está submetida ao império da lei, inclusive quanto à conveniência e oportunidade do ato administrativo.  42

2. Comprovado tecnicamente ser imprescindível, para o meio ambiente, a realização de obras de recuperação do solo, tem o Ministério Público legitimidade para exigi-la.

3. O Poder Judiciário não mais se limita a examinar os aspectos extrínsecos da administração, pois pode analisar, ainda, as razões de conveniência e oportunidade, uma vez que essas razões devem observar critérios de moralidade e razoabilidade.

4. Outorga de tutela específica para que a Administração destine do orçamento verba própria para cumpri-la.

5. Recurso especial provido. (STJ, SEGUNDA TURMA, REsp 429570 / GO ; Rel. Min. ELIANA CALMON, DJ 22.03.2004 p. 277 RSTJ vol. 187 p. 219, grifo meu)

Na fundamentação do voto, a Ministra ressalta que a importância atual do Poder Judiciário em agir diante da omissão da administração está relacionado a possibilidade desse poder exercer controle das ações arbitrárias da administração pública com intuito de coibir abusos e ilegalidade que afetam o interesse público. A ministra afirma que “deu-se ao Poder Judiciário maior atribuição para imiscuir-se no âmago do ato administrativo, a fim de, mesmo nesse íntimo campo, exercer o juízo de legalidade, coibindo abusos ou vulneração aos princípios constitucionais [...]”.  (CALMON, Eliana, 2003).                                     

Outro posicionamento relevante dos tribunais a favor do controle de mérito do ato administrativo discricionário está consubstanciado no acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, no julgamento do Agravo de Instrumento nº 70018006007, que tratava da habilitação técnica de empresas em um determinado procedimento licitatório. O Relator Adão Sergio afirma que é cabível ao Poder Judiciário realizar controle de mérito do ato discricionário, uma vez que não cabe a esse poder realizar somente controle de legalidade do ato administrativo cabendo também a ele examinar se os princípios constitucionais que regem a administração pública estão sendo atendidos de forma adequada. Segue trecho do acórdão:

AGRAVO DE INSTRUMENTO. LICITAÇÃO E CONTRATO ADMINISTRATIVO. MANDADO DE SEGURANÇA. CABIMENTO. MEDIDA LIMINAR. HABILITAÇÃO NO PROCEDIMENTO LICITATÓRIO. QUALIFICAÇÃO TÉCNICA. RAZOABILIDADE E PROPORCIONALIDADE. PRINCÍPIOS DA ISONOMIA E DA COMPETITIVIDADE. LEGITIMIDADE

ATIVA AD CAUSAM. IMPETRANTE QUE NÃO FOI LICITANTE. Possível a interposição de agravo de instrumento contra decisão proferida em sede liminar no mandado de segurança (...) Ao longo do Século XX, superou-se a vetusta idéia de que os atos discricionários da Administração Pública estariam à margem do controle judicial, como reflexo, inclusive, da passagem ao contemporâneo Estado Democrático de Direito. A Administração Pública se submete não apenas à lei, mas ao Direito como um todo (regra essa doutrinária no Direito Administrativo moderno e positivada no art. 2º, parágrafo único, I, da Lei nº 9.784/99), podendo o Poder Judiciário sindicar todos os aspectos jurisdicizados do assim chamado ‘mérito’ do ato administrativo. O provimento judicial que atende tal direito não ofende o princípio da independência e harmonia dos Poderes (art. 2º da CF/88). Princípio da universalidade da jurisdição ou da inafastabilidade do controle judicial (art. 5º, XXXV, da Carta Magna). O Poder Público não está acima do controle jurisdicional. Precedentes do STJ e deste TJRS (...). A atividade administrativa vincula-se à lei para que seja proporcionada a finalidade pública, afrontando a razoabilidade e a finalidade do processo de licitação a exigência de excessiva formalidade realizada pela Administração Pública, o que ofende ainda, indiretamente, os princípios da vinculação ao edital, do julgamento objetivo e da competitividade (art. 3º da Lei de Licitações). Se a impetrante tem por objeto a prestação de serviços de advocacia na área tributária, possui legitimidade para, pela via mandamental, impugnar edital de concorrência na circunstâncias acima especificadas, que lhe impediram a participação, ainda que não tenha sido licitante. Precedente do STJ. AGRAVO CONHECIDO E PARCIALMENTE PROVIDO. (RIO GRANDE DO SUL, 2007). ( grifo nosso).

 

                      

Por outro lado, há entendimento diverso quanto a possibilidade de controle de mérito realizada pelo Poder Judiciário.  O acórdão proferido em sede de Recurso Ordinário em Mandado de Segurança nº 24823 interposto em virtude de um ato de exoneração realizada por meio de processo disciplinar pela administração, reflete bem esse posicionamento contrário. A relatora Ministra Ellen Grace afirma que é inconcebível a possibilidade de controle de mérito realizado pelo Poder judiciário do ato administrativo discricionário, uma vez que somente é atribuição desse poder examinar matérias fáticas e probatórias não cabendo a ele em hipótese alguma adentrar na análise de mérito (conveniência e oportunidade) desse tipo de ato. Conforme trechos do acórdão abaixo:

MANDADO DE SEGURANÇA. PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO. CONTRADITÓRIO E AMPLA DEFESA. 1. O art. 5º, LV, da CF ampliou o direito de defesa dos litigantes, para assegurar, em processo judicial e administrativo, aos acusados em geral, o contraditório e a ampla defesa, com os meios e os recursos a ela inerentes. Precedentes. 2. Cumpre ao Poder Judiciário, sem que tenha de apreciar necessariamente o mérito administrativo e examinar fatos e provas, exercer o controle jurisdicional do cumprimento desses princípios. 3. Recurso provido. (STF, Segunda Turma, RMS 24823 / DF, Rel. Min. ELLEN GRACIE, DJ 19-05-2006, LEXSTF v. 28, n. 330, 2006, p. 113-117).

O acórdão nº 108405010044-7/002 do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, proferido em sede de Mandado de Segurança, que versa acerca de uma decisão proferida no procedimento disciplinar também reflete posicionamento contrário ao controle de mérito jurisdicional do ato administrativo discricionário. O relator desembargador Dorival Guimarães Pereira afirma que a análise de conveniência e oportunidade do ato administrativo pelo Poder Judiciário ofende, de forma clara, o princípio da independência dos poderes do Estado, comprometendo as funções próprias do administrador, conforme decisão abaixo:

EMENTA: CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO - MANDADO DE SEGURANÇA - PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR - SERVIDOR PÚBLICO MUNICIPAL - APLICAÇÃO DA PENA DE DEMISSÃO - RECEBIMENTO DE VERBAS DE FORMA IRREGULAR - GARANTIAS CONSTITUCIONAIS DO ACUSADO - OBSERVÂNCIA - EXCESSO DE PRAZO - INVALIDAÇÃO DO PROCEDIMENTO - DESNECESSIDADE - PRETENSÃO DE RECEBIMENTO DE PARCELAS - IMPOSSIBILIDADE - VIA ELEITA INADEQUADA - CONTROLE DO JUDICIÁRIO - LEGALIDADE - DENEGAÇÃO DA SEGURANÇA - INTELIGÊNCIA DO ART. 5º, LV DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL, LEI MUNICIPAL Nº 152/2003 E SÚMULA Nº 269 DO SUMO PRETÓRIO. O excesso de prazo, para a conclusão do Processo Administrativo Disciplinar, não acarreta, de imediato, nulidade susceptível de invalidar o procedimento, salvo se tal fato tenha significado a impossibilidade do exercício do direito de defesa. É defeso ao Poder Judiciário adentrar-se no mérito do ato administrativo, para análise da conveniência, oportunidade, eficiência ou justiça do ato praticado, sob pena de substituir os deveres próprios do administrador, em cumprimento ao princípio da independência entre os Poderes. Observadas as garantias constitucionais do acusado e comprovada a prática de atos incompatíveis com o exercício de suas funções, deve ser mantida a decisão administrativa, que houve por aplicar a pena de demissão ao servidor público. A Ação Mandamental não é meio idôneo de recebimento de valores pretéritos, por não ser substituto de Ação Ordinária de Cobrança, nos termos da norma de regência. (TJMG, 5º Câmara Cível, MS 1.0184.05.010044-7/002(1), Rel. Des. DORIVAL GUIMARÃES PEREIRA, 13-02-2007)

Conclui-se, portanto, que a possibilidade de controle de mérito do ato administrativo discricionário pelo Poder Judiciário na jurisprudência brasileira ainda se mostra bastante oscilante. No entanto, a maioria das decisões atuais revela que deve haver esse controle jurisdicional efetivo dos atos administrativos discricionários como forma de evitar que sejam tomadas decisões arbitrárias e abusivas pelos agentes públicos que comprometem a satisfação dos interesses da coletividade.

5. CONCLUSÃO

Diante do que foi exposto, percebe-se que a constitucionalização do direito administrativo vem aumentando sensivelmente o papel judiciário, permitindo, inclusive, que este controle atos discricionários da administração pública. Nesse contexto, o papel do judiciário é de crucial importância para coibir abusos perpetrados por gestores públicos e evitar que injustiças e corrupções sejam cometidas, o que muito se vê na atualidade.

A jurisprudência dos tribunais pátrios vem permitindo essa fiscalização, ultrapassando a idéia retrógrada, antes comentada, de que os atos administrativos discricionários são intangíveis. Não é mais possível, como outrora, um isolamento desses atos, tendo em vista que com o nascimento de um Estado Democrático de Direito passou-se, realmente, a buscar a efetivação de alguns direitos consagrados constitucionalmente e a admitir mecanismos de controle adotados pela própria Magna Carta.

Assim, a tendência dos atuais tribunais é entender que esse controle de oportunidade e conveniência na produção do ato administrativo pelos gestores públicos tem em vista o fiel cumprimento à lei, mas, sobretudo, a observância dos princípios constitucionais que norteiam toda a Carta Política.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

                                          REFERÊNCIAS

Acórdão nº 70018006007 de Tribunal de Justiça do RS, 2ª Câmara Cível, 15 de Agosto de 2007. Disponível e: <http://br.vlex.com/vid/-44690447> Acesso em:04.nov.2013.

ALEXANDRINO, Marcelo; PAULO, Vicente. Direito Administrativo Descomplicado. 21.ed. rev.e.atual, Rio de Janeiro: forense; São Paulo: Método, 2013.

BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial Nº 429.570 - GO (2002/0046110-8). Relatora Ministra Eliana Calmon. GO, 11 de novembro de 2003. Disponível em: <http://www.mp.ms.gov.br/portal/manual_ambiental/arquivos/juris/REsp%20429570.pdf>. Acesso em:04.nov.2013.

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[1] Aluna do 7° período, do curso de Direito da UNDB- Universidade de Ensino Superior Dom Bosco

[2] Professor orientador