A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO ADMINISTRATIVO BRASILEIRO: A possibilidade de controle jurisdicional do mérito dos atos administrativos discricionários à luz da Emenda n. 19/1998.

Cynthia Esteves de Andrade

Acadêmico de Direito na Unidade de Ensino Superior Dom Bosco – UNDB

Mariana Costa Heluy

Acadêmico de Direito na Unidade de Ensino Superior Dom Bosco – UNDB

Trabalho orientado pelo Prof. Esp. Hugo de Assis Passo, professor, Especialista em Direito Constitucional Aplicado, advogado. 

RESUMO

O presente artigo objetiva realizar uma análise sobre a possibilidade do controle jurisdicional do mérito dos atos administrativos discricionários diante da Emenda n. 19/1998. Procurou-se delimitar no contexto deste trabalho um conjunto de reflexões capazes de conduzir um conhecimento crítico e reflexivo considerando a Administração Pública, delimitando a função administrativa à luz dos princípios constitucionais. Buscou-se também fazer a distinção dos atos administrativos vinculados e discricionários como uma forma de evidenciar as principais diferenças destes institutos que fazem parte da função administrativa, considerando, em especial, o marco na jurisprudência brasileira, que visualizou a possibilidade de o Judiciário examinar estes últimos. Por fim, propõe-se a fixação de parâmetros a fim de delimitar o alcance e os limites do controle dos atos administrativos discricionários pelo Poder Judiciário diante da atual necessidade de uma política de resultados. 

PALAVRAS-CHAVE

Administração Pública; atos discricionários; princípio da eficiência; poder judiciário.


INTRODUÇÃO


A Administração Pública deve controlar seus próprios atos, apreciando-os quanto ao mérito (oportunidade e conveniência) e quanto à legalidade. Cabe tanto a anulação dos atos ilegais, juízo este feito pelo Poder Judiciário, como a revogação de atos válidos e eficazes, quando considerados inconvenientes ou inoportunos aos fins buscados pela Administração.

A classificação dos atos administrativos merece especial atenção, tendo em vista não só o grau de liberdade de apreciação da Administração Pública, como a possibilidade de controle dos mesmos. Por muito tempo, no Brasil, a doutrina mais conservadora preconizava que a análise do mérito dos atos administrativos era inatacável pelo Poder Judiciário, dado que essa faculdade revogadora é reconhecida e atribuída exclusivamente ao Poder Público, como implícita na função administrativa (FAGUNDES, 1944, p. 98 apud MEIRELLES; ALEIXO; BURLE FILHO, 2012, p. 210), logo, seria uma espécie de imunidade à apreciação jurisdicional, limitado tão somente à análise da legalidade do ato.

Todavia, com o advento da Emenda Constitucional n. 19/1998, o princípio eficiência foi consagrado como um princípio basilar da Administração Pública, sendo um ponto importante para a evolução do ordenamento jurídico, e, por conseguinte, do surgimento de um novo entendimento que vem se estabelecendo na doutrina e na jurisprudência brasileira, segundo o qual a atuação administrativa, por meio dos atos administrativos, também está sujeita a dois limites essenciais, quais sejam, o interesse público e a legalidade (AUTRAN, 2005), acrescentando-se a isso a necessidade da conjugação com a política de resultados.

Deste modo, faz-se essencial realizar na presente pesquisa um estudo reflexivo e crítico acerca das mudanças, bem como estabelecer limites para o controle jurisdicional dos atos administrativos, como o escopo de atender aos preceitos do Estado Democrático de Direito e buscar uma interpretação mais sistemática e coerente das normas jurídicas, como uma forma de concretização do princípio da eficiência, legalidade e interesse público.

Este trabalho terá como base os ensinamentos de Odete Medauar, Miguel Seabra Fagundes e Alexandre de Moraes que defendem com uma inovadora proposta, a possibilidade do controle judicial nos atos administrativos discricionários, sob o viés dos princípios constitucionais e administrativos, com especial atenção aos princípios da legalidade, interesse público e legalidade. Outrossim, também será levado em consideração o grande marco paradigmático na jurisprudência pátria, trazido pela decisão da Ministra Eliana Calmon, do Superior Tribunal de Justiça, que visualizou a possibilidade de o Judiciário examinar, inclusive, as razões de conveniência e oportunidade do administrador (BRASIL, 2004).

 

1 DAS FUNÇÕES DO ESTADO: a delimitação da função administrativa

 

O Poder Constituinte possibilita a uma determinada sociedade a expressão de quais os ideais deseja ser guarnecida por meio da criação (ou reconstrução) do seu modelo de Estado. Inicialmente, insta frisar que “o Estado, uma vez constituído, realiza os seus fins por meio de três funções: legislativa, administrativa e jurisdicional” (FAGUNDES, 2010, p. 5). Dentre todas estas funções, a função inerente à Administração Pública, bem como objeto de estudo deste presente tópico será a função administrativa. Enquanto o conceito da função legislativa é facilmente visualizado como “a primeira manifestação de vitalidade do organismo político estatal” (FAGUNDES, 2010, p. 6) por ser verificado no momento de formação dos direitos, o mesmo não ocorre com a definição da função administrativa, alvo de diversas discussões doutrinárias.

Muitos são os critérios apresentados pelos estudiosos na caracterização e distinção da referida função do Estado. Para Fagundes (2010), a dificuldade de fixação de um conceito específico está na questão que concerne à fase de realização do direito, identificando-se como funções de execução tanto a função administrativa quanto a função jurisdicional (FAGUNDES, 2010). Em contrapartida, Dirley da Cunha Jr. (2007) entende que o problema está para além das funções estatais clássicas, trazendo em seu estudo os ensinamentos de Renato Alessi, o qual alega estar o problema no fato de que tanto a função política, que busca a “unidade da soberania estatal” (ALESSI, 1970 apud CUNHA JR. 2007, p. 33) quanto a função administrativa podem ser exercidas pelo mesmo agente público. O que se pode concluir é que para ambos os autores é essencial primeiramente fazer a delimitação dos institutos conflitantes, para então, poder adentrar no objeto do Direito Administrativo, que é tão somente o estudo da função administrativa.

Para o presente trabalho, focar-se-á no problema trazido pelo primeiro doutrinador supracitado. Para Fagundes (2010), o problema está, em verdade, no fato de a administração e a jurisdição constituírem, em certos casos, meios de execução de lei. A função jurisdicional seria aquela pelo qual o Estado determina “situações jurídicas individuais” (FAGUNDES, 2010, p. 8) e, nesse sentido, pode-se dizer que, por meio dos atos jurídicos, busca-se restaurar “o controle da ordem jurídica no caso concreto” (MOREIRA NETO, 2001, p. 23) em casos como quando o indivíduo recusa-se a obedecer à lei ou quando entende ter um direito protegido pelas disposições legais, embora não esteja formalmente abrangido. Daí surge a noção de “situações jurídicas individuais”, pois o que vai ser decidido dentro de determinado caso concreto, por meio da decisão judicial, será a possibilidade de “criação” de um direito que, em regra, não terá efeitos para toda a coletividade.

 

Pelo exercício da função jurisdicional, se restaura a legalidade, clima normal na vida do Estado. O seu exercício pressupõe, assim, um conflito, uma controvérsia ou um obstáculo em torno da realização de um direito e visa removê-lo pela definitiva e obrigatória interpretação da lei (FAGUNDES, 2010, p. 12)

 

Já no caso da Administração Pública, mesmo quando o ato administrativo cria situações jurídicas individuais, este não cria o “direito” nos mesmos moldes das situações jurídicas gerais, nem mesmo pelo exercício do poder discricionário, pois embora sem restrições minuciosas impostas pela lei, esta também é uma forma de execução do texto legal com um elastério que a própria lei lhe outorga (FAGUNDES, 2010). Ora, o direito já está previamente disposto por uma lei que preceitua situações gerais e abstratas, competindo tão somente à Administração Pública, em sua função executiva, aplicá-la [a lei] em casos concretos e individuais. Conforme ensina Celso Antônio Bandeira de Mello (2004), o direito “é o que é por força da qualificação que o próprio Direito lhe atribuiu” (MELLO, 2004, p. 32). Portanto, a função administrativa seria aquela atividade estatal remanescente, ou seja, “não destinada à formulação de regra legal nem à expressão da decisão jurisdicional” (MOREIRA NETO, 2001, p. 24) de modo que, tem como finalidade exclusiva os fenômenos de realização do direito, tendo como objeto atos de execução.

 

2 CLASSIFICAÇÃO DOS ATOS ADMINISTRATIVOS

 

2.1 Atos administrativos vinculados

 

De maneira geral, a doutrina entende que os atos denominados vinculados são atos por meio dos quais “a lei estabelece os requisitos e condições de sua realização” (MEIRELLES; ALEIXO; BURLE FILHO, 2012, p. 175). Seria dizer que não existe margem de escolha para o administrador, pois os elementos (competência, forma, finalidade, motivo e objeto) já encontram-se minuciosamente descritos na lei e devem ser rigorosamente observados, absorvendo, quase que por completo, a liberdade do administrador, pois, ainda de acordo com o doutrinador acima citado, “sua ação fica adstrita aos pressupostos estabelecidos pela norma legal para a validade da atividade administrativa” (MEIRELLES; ALEIXO; BURLE FILHO, 2012, p. 175).

Na visão de Celso Bandeira de Mello (1996, p. 249) “por existir prévia e objetiva tipificação legal do único possível comportamento da Administração” não haveria espaço para uma apreciação subjetiva. Logo, a liberdade da Administração Pública é limitada à norma legal para que estes referidos atos sejam considerados válidos.

Existem doutrinadores que defendem haver, mesmo que potencialmente, um juízo de oportunidade e conveniência quanto ao momento de sua execução. Hely Lopes Meirelles (2012) compartilha desse entendimento ao considerar que em nenhum momento o administrador se converte em cego e automático executor da lei, e que, apesar de seu espectro de liberdade ser reduzido, ainda cabe a ele, dentro dos estritos termos da lei, escolher a melhor oportunidade de sua execução com o escopo de alcançar o bem comum (MEIRELLES; ALEIXO; BURLE FILHO, 2012).

Com efeito, se a administração levasse em conta a oportunidade ou conveniência na edição dos atos vinculados, estaria assim pondo por terra a legalidade, pois, como já dito anteriormente, o próprio legislador já regulou previamente todos os aspectos do ato, inclusive quando ao motivo objeto e “havendo uma base de interesse camuflada com a edição do ato atribuído para a autoridade, estas questões desse não podem ser ignoradas” (MEDAUAR, 1992, p. 194).

Ademais, insta ressaltar que não há divergência nem no meio doutrinário, muito menos no meio jurisprudencial que haja essa integral submissão da Administração Pública à lei nos casos dos atos administrativos vinculados. Sem sombra de dúvidas, deve-se obedecer fielmente, neste casos, ao princípio da legalidade, e, em caso de desvirtuamento das diretrizes, cabe tanto à própria Administração, através do princípio da autotutela, como ao Poder Judiciário fazer a avaliação do ato dentro dos parâmetros legais. Caso seja detectado qualquer desatendimento a qualquer requisito “compromete-se a eficácia do ato praticado, tornando-se passível de anulação pela própria Administração, ou pelo Judiciário, se assim o requerer o interessado” (MEIRELLES; ALEIXO; BURLE FILHO, 2012, p. 175).

 

2.2 Atos Administrativos discricionários

 

Ao contrário dos atos administrativos ditos vinculados, os atos discricionários são aqueles que a “Administração pode praticar com liberdade de escolha de seu conteúdo, de seu destinatário, de sua conveniência, de sua oportunidade e do modo de sua realização” (MEIRELLES; ALEIXO; BURLE FILHO, 2012, p. 176), dado que não há lei impondo nenhum requisito. O ato administrativo apresenta-se, assim, como “afirmação de autoridade” (MEDAUAR, 1992, p. 193), porque apesar de indiretamente executar a lei, o administrador pode determinar todo o seu conteúdo da maneira que achar mais conveniente, posto que a lei, em certos casos, não teria como antecipar qual seria a medida apropriada, o que confere ao administrador a missão ou aptidão de buscar no caso concreto “a perfeição da finalidade da norma” (MELLO, 1996, p. 254). A existência desses atos administrativos é, portanto, absolutamente necessária para o normal desempenho da função administrativa, pois se tudo fosse regrado na norma, acabaria por engessar a atividade administrativa a ponto de inviabilizá-la (MELLO, 1996).

Por outro lado, a “liberdade” que a norma haja conferido ao administrador não lhe outorga que faça dela o uso que bem entenda. É muito visível que o grau de discricionariedade administrativa é crescente, ainda mais no âmbito do conteúdo e do objeto. No que respeita ao motivo, essa discrição se refere a “ocasião de praticá-lo (oportunidade) e à sua utilidade (conveniência)” e no que concerne ao objeto está o administrador em “poder praticar o ato com o objetivo variável” (FAGUNDES, 2010, p. 92), ao seu entender. Todavia, isso não pode se dar de qualquer jeito.  

Com efeito, o que preocupa certa parcela da doutrina é justamente a aplicabilidade de conceitos muito vagos, que não possibilitam a um consenso do que seria “oportuno” e “conveniente”, o que resultaria possivelmente na “discricionariedade nas situações marginais” (MELLO, 1996, p. 254), como explica-nos Celso Antônio Bandeira de Mello (1996):

 

Mesmo estes conceitos chamados de “fluidos” possuem um núcleo significativo certo e um halo circundante, uma auréola marginal, vaga ou imprecisa. Daí resulta que haverá sempre uma zona de certeza positiva, na qual ninguém duvidará do cabimento da aplicabilidade do conceito, uma zona circundante, onde justamente proliferarão incertezas que não podem ser eliminadas objetivamente, e, finalmente, uma zona de certeza negativa, onde será indisputavelmente seguro que descabe a aplicação do conceito (MELLO, 1996, p. 254).

 

Deve-se frisar que em nenhum momento deve-se abrir margem para a existência de um “ato jurídico privado”, pois apesar da liberdade acerca dos motivos e do objeto (ou conteúdo) do ato, este jamais poderá ser “isolado, avulso e imobilizado” (MEDAUAR, 1992, p. 193) das demais atribuições e competências do administrador, bem como dos princípios e diretrizes que regem a Administração Pública.

Por fim, o controle do referido ato bem como uma possível revogação, por ser considerado inoportuno ou inconveniente, é de competência exclusiva da própria Administração Pública, mesmo havendo doutrinadores que admitem ser possível incidir nos mesmos moldes dos casos de invalidez dos atos vinculados quanto a sua finalidade, forma e competência do agente (FAGUNDES, 2010, p. 94). Todavia, existe um debate entre a doutrina conservadora e a mais moderna sobre a possibilidade de análise do próprio mérito pelo Poder Judiciário, pois o desvio de conduta aberrante em relação ao padrão moral consagrado pela comunidade pode por em risco a concretização da política de resultados exigida pelo princípio da eficiência, portanto, “o ato administrativo discricionário também deverá ser analisado por seu aspecto meritório” (MORAES, 2007, p. 146), o que será melhor explanado no tópico a seguir.

 

3 CONTROLE JURISDICIONAL DOS ATOS DISCRICIONÁRIOS DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA: a necessidade da concretização de uma política de resultados

 

Todas as atividades da Administração Pública são limitadas pela subordinação à ordem jurídica, ou seja, à legalidade. A Constituição de 1988 constitucionalizou regras rígidas de regência da Administração Pública e com o passar dos tempos várias normas infraconstitucionais foram surgindo, estabelecendo como se daria a responsabilização dos administradores públicos corruptos, com a finalidade de “garantir a honestidade na gerência da res publicae e possibilitar a responsabilização dos agentes públicos que se afastarem dessas diretrizes obrigatórias” (MORAES, 2002, p.32). Entretanto, como é de conhecimento geral, nem sempre a criação de norma mais severas é capaz de conceder os resultados esperados e o normal desenvolvimento das atividades estatais. 

Como visto anteriormente, o desenvolvimento e crescimento da administração ao longo do tempo terminou por influenciar nas visíveis extrapolações e abusos da Administração Pública em suas prerrogativas. Nesse ínterim, verifica-se com mais clareza a possibilidade da corrupção dentro dos atos administrativos discricionários, tendo em vista uma menor rigidez por parte do texto legal na disciplinação do ato, reconhecendo ao “Poder Executivo uma certa liberdade de movimentos” (FAGUNDES, 2010, p. 121). Por muito tempo, existia o entendimento doutrinário predominante que ao levar-se em consideração que foi o próprio regime legal que fixou os casos em que existiria a possibilidade de “conciliar a execução com as conveniências de tempo e utilidade” (FAGUNDES, 2010, p. 122), estes atos não poderiam ser objeto de reexame da instância jurisdicional, pois esta não possuía competência para fazer o julgamento da inconveniência ou inoportunidade do ato discricionário, bem como os motivos que o vinculam ao administrador público (CUNHA JR., 2007).

Todavia, em 1998, tal entendimento começou a mudar, ao passo que as regras rígidas impostas para a Administração Pública foram complementadas pela Emenda Constitucional nº 19, que, além de outros significativos acréscimos, introduziu na Carta Magna o princípio da eficiência, o qual determina:

 

O direcionamento da atividade e dos serviços públicos à efetividade do bem comum, conjugado com os princípios da imparcialidade, neutralidade, transparência, participação e aproximação dos serviços públicos da população, eficácia, desburocratização e busca da qualidade (MORAES, 2002, p. 39).

 

Anote-se que, apesar da inexistência expressa do referido princípio, a jurisprudência já vinha se manifestando a respeito, considerando uma espécie de “poder indeclinável” a obrigação indireta de “regulamentar e controlar os serviços públicos” (STJ, RMS nº 7.730-96/RS apud MORAES, 2002, p. 33). No âmbito doutrinário, uma das repercussoras do estudo da problemática foi Odete Medauar (1992), que desde aquela época pregava a “necessidade de entender a vontade que se exprime no ato como momento objetivo, não como fato psíquico de caráter subjetivo” (MEDAUAR, 1992, p. 194). Tudo isso foi extremamente necessário para que, em 2004, a ministra do Superior Tribunal de Justiça Eliana Calmon proferisse parecer afirmando que não se trataria de uma intromissão indevida do Judiciário na esfera Executiva.

No caso originário do referido parecer emblemático, a ministra critica a conduta do Prefeito ao baixar a Resolução 04/97, pois, se não havia verba, não poderia o administrador ter traçado um programa de combate ao alcoolismo e drogas focado em crianças e adolescentes tão somente para efeitos eleitoreiros, mas sim pela visível necessidade da sociedade local (BRASIL, 2004). Ora, a alegação posterior da falta de recursos financeiros é absolutamente impertinente, pois deveria o Prefeito se ater à elaboração das suas leis orçamentárias e determinar os recursos suficientes para resguardar a execução de projeto destinado ao tratamento de drogadição de crianças, adolescentes e respectivos pais, dado que vive-se hoje um Estado social e democrático de direito, em que as políticas intervencionistas devem ser cumpridas não porque é a instância judiciária que determina, mas sim a própria Constituição Federal, juntamente com o ECA e o Conselho Municipal em questão (BRASIL, 2004). Diante disso, a ministra chega à conclusão que:

 

Não é mais possível dizer, como no passado foi dito, inclusive por mim mesma, que o Judiciário não pode imiscuir-se na conveniência e oportunidade do ato administrativo, adentrando-se na discricionariedade do administrador. E as atividades estatais, impostas por lei, passam a ser fiscalizadas pela sociedade, através do Ministério Público que, no desempenho de suas atividades precípuas, a representa (BRASIL, 2004, p. 5).

 

Ao se retirar a imunidade da análise do mérito dos atos administrativos pelo Poder Judiciário, não se pretende substituir o juízo de oportunidade e conveniência feito pelo administrador, muito menos fazer uma intromissão indevida à esfera administrativa, antes, tal conduta advém da necessidade da concretização de uma política de resultados pregada pela Emenda n. 19/1998, que consagrou o princípio da eficiência como um “verdadeiro instrumento de combate à corrupção em todos os níveis da Administração Pública, em defesa da legitimidade do regime democrático” (MORAES, 2002, p. 30), além de uma garantia da boa gerência da res pública e da maior efetividade na prestação dos serviços públicos.

 

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

Ante a pesquisa realizada, pode-se afirmar que a atividade administrativa está sempre condicionada a estreitos limites legais preestabelecidos. Todavia, a elevada rigorosidade por parte da lei, por vezes, pode ser deixada de lado para não resultar em um nocivo entrave na realização das finalidades visadas pela atividade administrativa, especialmente nos casos dos atos administrativos discricionários.

De fato, a Administração Pública tem livre escolha quando à conveniência e oportunidade na expedição de seus atos, mesmo sob a vigilância e controle do Poder Judiciário. Todavia, muito embora haja a instituição do Estado Democrático de Direito pela Constituição de 1988, este regime não está a salvo da infiltração da corrupção nos órgãos públicos, em especial, na pessoa dos administradores públicos, sendo um fenômeno que não só leva rapidamente à desmoralização do regime, como também é um fator resultante da ineficiência das medidas em prol da coletividade.

Quando se trata de ampliar a zona de apreciação atribuída ao Poder Judiciário, não se pretende substituir o juízo de oportunidade e conveniência feito pelo administrador, muito menos sobrepor o juízo subjetivo do juiz a outro igualmente admissível. Porém, havendo a Administração Pública fundamentado sua análise de oportunidade e conveniência numa construção insustentável, desproporcional e imoral, camuflando interesses individuais do próprio administrador, visivelmente inadequados aos interesses da coletividade, considerando a política de resultados interposta pela Emenda Constitucional nº 19/1998, não se pode impedir a intervenção do Poder Judiciário, que deve buscar a restauração da ordem legal do instituto.

A construção doutrinária e jurisprudencial do Supremo Tribunal de Justiça e dos demais órgãos jurisdicionais, principalmente a partir da Constituição de 1988, é um marco fundamental para o alargamento da possibilidade de interpretação judicial desses institutos, ampliando-se a ingerência do Poder Judiciário em assuntos tradicionalmente da alçada do administrador, tendo em vista ser necessária, para a resolução de litígios aos quais a lei não fornecia qualquer princípio de solução, a aplicação de métodos de hermenêutica constitucional mais abertos e politizados para o alcance do interesse público.


REFERÊNCIAS

AUTRAN, Marcos Felipe Holmes. Discricionariedade administrativa e controle judicial. Disponível em: <http://www.escritorioonline.com/webnews/noticia.php?id_noticia=6441&>. Acesso em: 26 ago. 2013

 

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. 36. ed. São Paulo: Saraiva, 2007.

______. Supremo Tribunal de Justiça, Segunda Turma. Recurso Especial n. 4938111/SP. Julgado dia 11 nov. 2003. Relator: Min. Eliana Calmon, Diário da Justiça Eletrônico. Publicada dia: 15 mar 2004. Disponível em: < http://www.cella.com.br/conteudo/conteudo_129.pdf>. Acesso em: 25 ago 2013.

CUNHA JR. Dirley. Curso de Direito Administrativo. Salvador: Judpodivm, 2007.

FAGUNDES, M. Seabra. O Controle Dos Atos Administrativos Pelo Poder Judiciário. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010.

MEDAUAR, Odete. O Ato administrativo. In: ______, O direito administrativo em evolução. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1992, p. 191-196. à agora siiim, faltava a paginação. Obrigada J

MEIRELLES, Hely Lopes; ALEIXO, Délcio Balestero; BURLE FILHO, José Emmanuel. Direito Administrativo Brasileiro. 38. ed.  São Paulo: Malheiros, 2012.

MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 8. ed. São Paulo: Malheiros, 2004.

______. Curso de Direito Administrativo. 8. ed. São Paulo: Malheiros, 1996.

MORAES, Alexandre de.  Constitucionalização do direito administrativo e princípio da eficiência. In: FIGUEREDO, Carlos Maurício; NOBRÉGA, Marcos (orgs.). Administração Pública: direitos administrativos, financeiro e gestão pública: prática, inovações e polêmicas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 25-54.

______. Direito Constitucional Administrativo. 4 ed. São Paulo: Atlas, 2007.