1.        Introdução

           Procurar-se-á com o presente artigo analisar, por meio de uma visão aristotélica, a ética na conduta extrajudicial dos advogados que esteja direta ou indiretamente relacionada à determinada contenda judicial.

           A escolha do tema é fruto do inconformismo deste autor a respeito de situações concretas que vivenciou recentemente, nas quais os advogados ex adversos deixaram de observar uma conduta ética que já existiu outrora e foi muito respeitada nos bastidores da prática forense.

           Apenas a título de exemplo, tem-se notícia do convívio com admiráveis advogados mais experientes que sempre foi – assim como ainda deveria ser – da praxe forense, sob uma pretensa observância dos preceitos éticos entre colegas de profissão, que um advogado deveria comunicar o patrono ex adverso de que pretendia sustentar oralmente no julgamento de determinado recurso, a fim de que este último pudesse se preparar para, eventualmente, defender os interesses de seu cliente perante a turma julgadora em igualdade de condições.    

           Também se tem notícia do preceito ético no sentido de que o advogado, ao encerrar uma tratativa infrutífera de negociação prévia, deveria comunicar o patrono ex adverso que a deu por encerrada e que, portanto, sentir-se-ia livre para ingressar com as medidas judiciais cabíveis.

           Constata-se, ainda, que virou praxe entre os advogados, ao formular a pretensão em juízo, alterar a verdade dos fatos, em estrita violação, não só aos preceitos éticos, mas também à legislação processual civil.

           Em todas essas hipóteses, além de tantas outras, percebe-se que os advogados têm preferido atender a todo custo os anseios de seus clientes – por mais absurdos que sejam – em detrimento do comportamento ético, seja para com a justiça, seja para com seus colegas de profissão.

           Tal análise tem por finalidade, pois, refletir sobre qual seria a disposição da excelência no comportamento do advogado que, na defesa dos interesses de seu cliente, exerce uma atividade meio com vistas à obtenção da tutela jurisdicional por ele almejada. Consiste, em síntese, verificar qual a natureza da conduta do advogado que procura a obtenção da tutela jurisdicional postulada em juízo a todo custo, sem qualquer comprometimento ético, seja com a verdade dos fatos, seja com o patrono ex adverso.

2.        Análise das disposições de caráter do advogado no exercício de suas funções

           Ao analisar as disposições de caráter, Aristóteles[1] defende com todo seu brilhantismo que existem três disposições de caráter, sendo duas delas perversas (excesso e defeito), e a outra a da excelência, que se apresenta como uma posição intermediária.       

           Diz, ainda, que todas elas se opõem, sendo as perversas (excesso e defeito) contrárias entre si e, ao mesmo tempo, contrárias à da excelência (intermediária), verbis:

 “Havendo três disposições de caráter, duas são perversas, a que é por excesso e a que é por defeito, e uma é a da excelência, a qual corresponde à posição intermediária. Todas elas se opõem, de algum modo, umas às outras. As das posições extremas são, por um lado, contrárias à da posição intermédia e, por outro, contrárias uma da outra”.

          Para tanto, exemplifica o renomado autor com as disposições da: (i) audácia (excesso), coragem (intermédia) e covardia (defeito); (ii) do devasso (excesso), temperado (intermédia) e insensível (defeito); e (iii) do esbanjador (excesso), generoso (intermédia) e avaro (defeito).

          É com base em tais premissas aristotélicas que se passará a analisar o comportamento dos advogados ex adversos que, na defesa dos interesses de seus constituintes, exercem uma atividade meio com vistas à obtenção da tutela jurisdicional por ele almejada   

           No que se refere às hipóteses legais de abuso do processo, ou seja, aquelas expressamente positivadas no Código de Processo Civil, ainda que exemplificativamente, podemos dizer que se tratam de condutas perversas de forma absoluta, sobre a quais não se pode imaginar uma posição intermediária que possa evidenciar a excelência da ação.     

          Em casos análogos a tais situações, a lapidar análise ética de Aristóteles[2], verbis:

 “Contudo, nem toda ação, nem toda afecção, admitem uma posição intermédia. Podem ser nomeadas algumas afecções que estão logo implicadas na perversidade, como a maldade, a falta de vergonha, a inveja, e o mesmo se passa com alguns nomes de ações como o adultério, o roubo, o homicídio. Todas essas ações e afecções, e outras deste gênero, são compreendidas como sendo perversas de forma absoluta e não por constituírem excessos ou defeitos.”

          A impossibilidade de se imaginar uma conduta intermédia reside no fato de que se tratam tais hipóteses de excessos absolutos. Nas palavras de Aristóteles[3], verbis:

 “Não há, portanto, em geral posição intermédia nem no excesso nem no defeito, quando considerados absolutamente, nem em geral há excesso ou defeito na posição absolutamente intermédia.”

          Com base em tais premissas, podemos concluir que o abuso no processo, caracterizado pela litigância de má-fé e/ou ato atentatório à dignidade da justiça, por se tratar de conduta perversa de forma absoluta, constitui o excesso da atividade dos advogados na defesa dos interesses de seu cliente em juízo ou fora dele.

          Uma vez identificado o excesso, devemos refletir, agora, quais seriam as outras duas disposições de caráter, sendo uma delas perversa (consistente no defeito) e a outra a da excelência (intermediária).

         Contudo, embora tal reflexão pareça simples, na medida em que bastaria pensar na conduta diametralmente oposta àquela identificada como a do excesso, bem como naquela intermediária entre essas duas, é certo que a vastidão do vocabulário jurídico torna a missão dificílima.

          E assim se diz porquanto a multiplicidade de conceitos análogos entre si exige que se proceda com rigorismo técnico e, portanto, conceitual para tal finalidade, sob pena de empobrecimento da reflexão que se pretende fazer.

          Comprometido com tal rigorismo técnico é que, após imaginar diversas hipóteses não satisfatórias e não convincentes, encontrou-se os significados ideais – ao menos na modesta visão deste autor – após uma leitura despropositada e despretensiosa da mesma obra de Aristóteles.

          De fato, após tratar das ações involuntárias[4] e voluntárias[5], o renomado autor faz longa contraposição[6] entre a decisão e o anseio, para, em um momento posterior, distinguir o objeto de anseio para o sério (conforme com a verdade) com o objeto de anseio para o negligente (o que calha), verbis:

 “Se isto não bastar, ter-se-á de dizer isto: que simplesmente objeto de anseio e de acordo com a verdade é o bem. Por sua vez, o que é objeto de anseio para cada um em particular é apenas um bem aparente. Para o sério o objeto de anseio é conforme com a verdade. Para o negligente, é o que calha”.  

          Ora, a disposição perversa consistente no excesso foi identificada mais acima como sendo o abuso no processo, caracterizado, dentre outros, pela litigância de má-fé e pelo ato atentatório à dignidade da justiça.

          Não é demais ressaltar que diversas condutas previstas como de litigância de má-fé e/ou de ato atentatório à dignidade da justiça estão relacionadas com a verdade dos fatos e da lei, tais como alterar a verdade dos fatos, deduzir pretensão contra texto expresso de lei etc.

          Se assim é, como de fato é, entendemos que a disposição perversa diametralmente oposta ao excesso (abuso no processo) e, portanto, consistente no defeito é caracterizada pela negligência, cujo objeto de anseio é o que calha.

           Nesse diapasão, a disposição negligente do advogado constitui um defeito na medida em que, embora não altere a verdade dos fatos ou da lei, não se preocupa com a busca da verdade no exercício de seu mister, mas simplesmente com aquilo que vier a calhar. 

           De outro lado, entendemos que a disposição da excelência (intermediária) somente pode ser caracterizada pela seriedade, cujo objeto de anseio é conforme com a verdade.

          Por outras palavras, a disposição da excelência no exercício da atividade profissional de um advogado somente pode emergir da ação conforme e com a finalidade de buscar a verdade dos fatos e da lei.

          Assim, pois, no que concerne à atuação do advogado em juízo e fora dele, podemos identificar as disposições: (i) do abuso no processo (excesso), que falta com a verdade; (ii) da seriedade (intermediária), que é conforme a verdade; e (iii) da negligência (defeito), que não se importa com a verdade, mas com aquilo que calhar. 

          Uma vez delimitadas as disposições de caráter retro destacadas, cumpre-nos analisar, ainda que em breve síntese, determinadas situações concretas que não constituem abuso no processo em sentido estrito, na medida em que não se enquadram nas hipóteses previstas em lei.

          Tais condutas, em razão das circunstancias peculiares do caso concreto, assemelham-se ao abuso no processo em sentido estrito, na medida em que configuram violação aos mais comezinhos preceitos éticos, por se tratarem de ações perversas na visão aristotélica. A estas denominamos abusos no processo em sentido amplo.

          Como se noticiou exemplificativamente, os mais respeitáveis advogados da velha guarda praticavam – sob uma pretensa observância dos preceitos éticos – o costume de comunicar o patrono ex adverso de que pretendia sustentar oralmente no julgamento de determinado recurso, a fim de que este último pudesse se preparar para, eventualmente, defender os interesses de seu cliente perante a turma julgadora em igualdade de condições.            

           Analisando a situação aqui colocada, poder-se-ia dizer que a inobservância de tal praxe forense não constituiria qualquer espécie de abuso no processo em sentido estrito, na medida em que não se enquadra nas hipóteses legais expressamente previstas no Código de Processo Civil.

           No entanto, trata-se de abuso no processo em sentido amplo, na medida em que violadora dos mais comezinhos preceitos éticos, constituindo verdadeira conduta perversa, por excesso, na visão aristotélica.

           De fato, o advogado que deixa de observar tal praxe forense, desde que seja dela conhecedor, assim o faz com o único propósito de surpreender o patrono ex adverso, impedindo que este último se prepare para participar do julgamento em igualdade de condições.  

           Assim agindo, o advogado falta com a verdade e sinceridade perante o seu colega de profissão, preferindo surpreender-lhe com vistas à obtenção de uma vantagem na atividade meio voltada à obtenção da tutela jurisdicional almejada por seu constituinte.

           Por faltar com a verdade, forçoso concluir que se trata de disposição do caráter perversa, por excesso, constituindo abuso no processo em sentido amplo. O advogado sério, aquele que age conforme a verdade, observando a prática retro citada, está na disposição da excelência. Já o advogado negligente, aquele que deixa de agir apenas esperando o que vir a calhar, mas sem a pretensão de levar vantagem sobre o patrono ex adverso, está na disposição perversa, por defeito.

           O mesmo raciocínio é utilizado para o já exemplificado caso do advogado que, ao encerrar uma tratativa infrutífera de negociação prévia, deve comunicar o patrono ex adverso que a deu por encerrada e que, portanto, sente-se livre para ingressar e/ou prosseguir com as medidas judiciais cabíveis.

           Realmente, é da praxe forense que os advogados devem – em observância aos mais comezinhos preceitos éticos – suspender a adoção e/ou a prática de qualquer ato e/ou medida judicial durante o curso de uma negociação de acordo até que se dê esta por encerrada por ambas as partes.

           Assim, o advogado que ingressa com medida judicial e/ou prossegue com atos judiciais em demanda já em curso durante as tratativas de acordo com o patrono ex adverso, sem, antes, dá-las por encerrada formalmente, falta com a verdade e sinceridade perante o seu colega de profissão, ao arrepio de um comportamento ético, na medida em que o surpreende deliberadamente, com vistas à obtenção de uma vantagem na atividade meio voltada à obtenção da tutela jurisdicional almejada por seu constituinte.

           Repise-se, por faltar com a verdade perante os colegas de profissão, forçoso concluir que se trata de disposição do caráter perversa, por excesso, constituindo abuso no processo em sentido amplo. O advogado sério, aquele que age conforme a verdade, observando a prática retro citada, está na disposição da excelência. Já o advogado negligente, aquele que deixa de agir apenas esperando o que vir a calhar, mas sem a pretensão de levar vantagem sobre o patrono ex adverso, está na disposição perversa, por defeito.

 3.       Conclusão

           Assim, pois, no que concerne à atuação do advogado em juízo e fora dele, podemos identificar as disposições: (i) do abuso no processo em sentido estrito ou em sentido amplo (excesso), que falta com a verdade; (ii) da seriedade (intermediária), que é conforme a verdade; e (iii) da negligência (defeito), que não se importa com a verdade, mas com aquilo que vier a calhar. 

 4.       Referência

 ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco; tradução do grego de Antônio de Castro Caeiro. São Paulo: Atlas, 2009.

[1] ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco; tradução do grego de Antônio de Castro Caeiro. São Paulo: Atlas, 2009, p. 52.

[2] Ibidem, p. 49.

[3] Ibidem, p. 50.

[4] “Involuntárias são, assim, aquelas ações que se geram sob coação ou por ignorância”. (Ibidem, p. 56).

[5] “Sendo a ação voluntária feita sob coação e por ignorância, a ação voluntária parece ser aquela cujo princípio reside no agente que sabe das circunstâncias concretas e particulares nas quais se processa a ação” (Ibidem, p. 60).

[6] “Além do mais, anseia-se pelos fins, e decidem-se dos meios, por exemplo, nós ansiamos por restabelecer a saúde, mas apenas decidimos aquilo através do qual viremos a obter saúde”. (Ibidem, p. 61).