Em uma tentativa de demonstrar que o mundo em que vivemos faz parte de um todo, e que, inobstante os caminhos em que trafegamos nos dirigimos a um mesmo ponto, o filme O fim e o Princípio, priva pela busca do singular, pela demonstração de que filosofar é atividade intrínseca ao se humano. Tudo isto é feito, de modo singelo, quase artesanal, por um diretor que vai ao encontro de uma comunidade rural, lugar onde as pessoas contam histórias de vida, enfim, filosofam. Observa-se da obra diálogos com lavradores, idosos, representantes de todos os demais lavradores sedentários perdidos por estes rincões do Brasil.
No filme, vemos idosos que fabulam a respeito da vida, detentores de uma sabedoria adquirida e maturada com o tempo. São principalmente camponeses que, em sua maioria, não possuem uma cultura escrita, mas que se comunicam com um estilo verbal que soa para nós, espectadores, não só interessante, mas surpreendente. A busca por um ambiente rural traz, em si, outras questões: não estamos num espaço onde o anônimo predomina, mas, ao contrário, valoriza-se a vizinhança, a história de cada morador, que conhece um ao outro, num ambiente relacional.
A obra é entrecortado com seqüências de depoimentos de moradores, dados a partir do encontro com o cineasta, e das imagens que retratam este ambiente rural, onde fica o sítio Araçás, no sertão da Paraíba. O ponto alto do documentário é a visão pelo telespectador de um grupo de pessoas caminhando e rezando numa ?estrada? de terra, no meio do sertão, como uma pequena procissão, onde se prenota que cada civilização possui seu próprio universo, onde o certo e o errado, o valioso e o sem valia é determinado pelos valores que cada ser dá para sua vida. Em contraste com esta visão medieval, Rosa, uma das personagens do filme, aparece dirigindo uma motocicleta (lambreta), demonstrando, também, a presença do moderno que bate à porta da tradição.
Várias questões, encontram-se exacerbadas, como, por exemplo: a troca lingüística, questões da comunicação e dos usos da linguagem. As falas das pessoas filmadas na fazenda Araçás, nem sempre são claras numa primeira observação. Muitas vezes, descobrimos pormenores nas enunciações das pessoas que reforçaram nossa posição, antes, apenas, uma impressão sobre o procedimento do cineasta ou do entrevistado. O resultado é uma história forte que revela vidas marcadas pelo catolicismo popular mais próximo do século 15, pela hierarquia, pelo senso familiar e pela honra, além de temperos de profunda superstição.
Espinhela caída? Inflamação nas presas? Bamboleio nas pernas? Vento caído? Isso não é problema para uma comunidade onde vive Maria Ambrosina Dantas, 94 anos, conhecedora de todas as curas, das quais não revela nenhuma. "Deixa estar, moço, num insiste não, num digo nada não. Traz o doente aqui que ele sai andando e bom." A rezadeira teve 14 filhos, dos quais vingaram apenas dois. Seu casamento, revela, foram 17 anos de sofrimento nas mãos de um marido beberrão que morreu de monumental porre de cachaça. Maria não confessa mais intimidades e faz cara de quem gostou de se lembrar. Ao seu lado, aparentemente cliente e amigo, Assis declara sobre a partida do falecido: "A vida é um parafuso, só quem distorce é Jesus quando chega a hora".
É de salientar que o filme quer mostrar e mostra, exatamente isso. Como pensa aquela gente, quais são seus valores mais intrínsecos, em sua maioria, isentos de vaidade, quase sempre desdentados, mas falando um português rico, quase castiço, quase arcaico. Pedras são seixos. Conversa é palestra. Há momentos em que a fala é ininteligível, mas o diretor do filme deixou os diálogos e não colocou legenda, deixando para o espectador o desafio de entender sua própria gente.



Rosa, abreviação afetuosa de Rosilene Batista de Sousa, verdadeiro filão de ouro que nos ligou à comunidade de Araçás, é uma pessoa desembaraçada e falante. Sua história é um exemplo da geração decidida do Nordeste. Os valores do catolicismo mais conservador estão todos corporificados em Rosa, uma católica à la João Paulo II. Ela lidera a Pastoral da Criança, puxa a procissão mensal, já que padre quase lá não pisa, e mansamente se impõe como a pessoa a quem os velhos recorrem quando necessário."
O munícipio de São João do Rio do Peixe tem cerca de 15 mil habitantes e todas as pragas institucionais: padre, prefeito e vereadores. Resta claro que, no que diz respeito à politicagem, o que realmente vale naquele município é conhecer a pessoa em quem você vota. A energia elétrica chegou há dez anos. A televisão há pouco menos. Hoje, a maioria das casas ? todas amplas para deixar a aragem da madrugada entrar sem fazer esforço ? tem sua antena parabólica. Mas a população não vive de televisão ligada. "Eu despaireço tanto quando a televisão tá ligada", delicia-se Maria Borges. Esta televisão não domesticou os mais velhos. No sertão, as pessoas ficaram isoladas durante séculos em um mundo à parte, injusto talvez, que já não existirá mais daqui a poucos anos.
Quando respondem aos questionamentos do filme, que lança perguntas simples e diretas, os personagens de O fim e o princípio tratam de um cotidiano muito singelo, mas fazem também uma elaboração filosófica às vezes intrigante. O repertório de parábolas bíblicas, com relatos que vão da gênese ao apocalipse, compõe uma espécie de metafísica popular expressa quase sempre de modo surpreendente.
Pessoas mansas e delicadas responderam, ora com brevidade, ora com incrível prolixidade às indagações que o filme as coloca. "Rezo para que os filhos que nasçam se batizem. Crescer ou não crescer é outra coisa", afiança Neném Grande, 90 anos. E vai em frente: "Isso porque anjinho que não é batizado fica no escuro pedindo para o mundo se acabar". Para ela, e todas, anjo serafim é a criança que morre sem tempo de mamar, sem comer qualquer coisa. "Só tem uma vantagem: mãe de cinco anjos serafins, quando morre, é recebida no céu por anjos tocando bandolim, deve ser muito bonito."
Naquela comunidade, o que não pode, o que determina a perda da honra, é ser ladrão. "A estes, não há perdão." Cada um pensa o que quer e Zé de Souza atesta: "O cabra que diz tudo o que sabe fica besta".
Nato, o cidadão mais próspero do Sítio dos Araçás, nem por isso deixa de ser simples, homem comum como seus vizinhos, prolixo em seus dizeres e conciso em suas sentenças: "Aquela história de herdar e receber pronto é muito ruim". Ou então: "O homem vai pro banco do colégio e aprende muitas coisas. Mas as coisas matutas ele aprende no campo. Vai convivendo, vai conversando, vai vendo, vai ficando prático". Seu resumo de vida são duas frases: "A medida do ter nunca enche" e "O homem deve trabalhar pensando que não vai morrer, e deve rezar sabendo que vai morrer".
Essa cadência da vida e morte, morte e vida, perpassa todo o filme e convida à reflexão. O conteúdo nos faz pensar. Será que estes indivíduos, marcados pelo tempo no corpo e na alma, deixam um legado filosófico de menor valia que os grandes filósofos?