Resenha: A concepção da palavra em Sartre e Graciliano Ramos: uma abordagem filosófica e educacional da palavra na formação do ser humano

SARTRE, Jean-Paul. As palavras. 4ª ed. Trad. J. Guinsburg. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1970.
RAMOS, Graciliano. Infância. 89ª ed. São Paulo: Editora Record, 2003.
A palavra, como uma temática que povoa o contexto do universo literário de Sartre, é abordada em sua obra "As Palavras" como sendo parte de um processo de construção cultural e de formação pessoal. O livro além de ter uma proposta de autobiografia cultural do autor, revela-nos elementos importantes de toda a sua trajetória de vida e aprendizado, desde sua introdução ao mundo das letras na infância até a sua escolha como um escritor existencialista. A obra em destaque, de Sartre, não se reduz a um universo puramente literário, mas possui indícios de um teor filosófico que nos inspira à crítica e à reflexão sobre o ?pensar? a vida sob os pilares de uma herança cultural.
Quando Sartre descreve a sua infância no livro "As Palavras", ele o faz relatando com minúcias a sua relação familiar, seus encantos e desencantos com relação ao pai, à sua mãe e ao seu avô, esse último, sua referência no que diz respeito ao interesse pela leitura e pela escrita. Nessa primeira parte do livro, Sartre demonstra as expectativas de sua família em relação à sua genialidade e destaca a figura do avô como sendo o principal incentivador de sua trajetória literária. Aliás, o avô tinha a certeza de que naquele jovem garoto havia um futuro shakesperiano a ser explorado e revelado ao mundo.
Em sua idade tenra o menino imaginava "romances". Dizia a si mesmo: "Nasci para escrever". E, no círculo da família, havia a certeza de que ele escreveria e o avô lhe dizia: "É preciso aprender a ver." E citava o caso de Maupassant: "Você sabe o que fazia Flaubert quando Maupassant era pequeno? Instalava-o diante de uma árvore e concedia-lhe duas horas para descrevê-la". Assim aprendeu Sartre a ver.
Mas, o importante nessa história é que ao "aprender a ver" a vida pela leitura e pela escrita, Sartre soube como ninguém que as palavras são a base do pensamento e de tudo que delas emana e se transforma em códigos de escrita. Por meio delas, expressamos nossos sentimentos e expectativas em relação ao mundo. Se são doces ou amargas, não importa, o que importa é saber traduzi-las por meio da leitura e da escrita. Sartre, em seu dilema entre idealismo ou realismo, busca nas palavras o alicerce entre as coisas pensadas e as que existem, e entre as que o pensamento pode dar continuidade e sentido à existência.
Sartre, a partir de suas descobertas sobre as palavras, revela-se um idealista, no sentido filosófico da palavra, e mostra-nos a importância de não acreditarmos na existência das coisas como destituídas de significado, essas coisas não são independentes do pensamento que as recebe, antes assumem sua existência porque são escritas. É nesse sentido que apontamos a importância de um livro como "As palavras" em que Sartre revela de que modo se aproximou delas, ora amando-as, ora temendo-as, copiando-as ou transformando-as em suas como o fazem todos escritores que as concebe não só na cabeça, mas nas própria maneira de colocá-las a serviço daqueles que vêm nelas a possibilidade de um futuro promissor.
Em contrapartida, a obra "Infância", de Graciliano Ramos, também como proposta de autobiografia cultural do autor, revela-nos um outro lado da história de formação sociocultural desse autor, que ao contrário de Sartre, que teve uma infância menos dolorosa, Graciliano, como uma criança oprimida e humilhada, buscou nas palavras a forma de superação das intempéries da vida. Sua obra é toda perpassada por esse contexto e mostra-nos a ?dor? como uma temática existencial vivida pelo autor nesse período de sua vida e se torna a mola propulsora para as suas obras literárias que somam o elemento pessoal ao social.
Graciliano Ramos em "Infância" descortina o universo frio das suas relações familiares, onde descreve a secura com que sua mãe sempre o tratava, colocando-lhe apelidos que o estigmatizavam e punham em evidência seus problemas físicos, como o relacionado à perda parcial da visão, sua mãe o chamava de "Cabra-cega". Essa relação conturbada e pouco afetiva se manifestava nas atitudes de seu pai, que como ele descreve, era uma figura rude e extremamente tirana. O episódio em que surra o filho por achar que este havia sumido com um cinturão (descobre depois que a acusação era falsa) é dos mais dramáticos. Talvez só perca para o momento em que esse autoritarismo se mistura ao abuso de poder e injustiça contra o mendigo Venta-Romba. Discretamente, o narrador procura uma justificativa, como os problemas financeiros do pai, como forma de amenizar as mazelas que lhe acometem, mas que não remediam o estrago na confiança no ser humano.
A situação narrada pelo protagonista da história é de constante opressão, mesmo quando não é afetado por ela de forma explicita, o é quando as pessoas o satirizam com seus risos e gozações humilhantes. Até seu processo de descobrimento do mundo das palavras pela alfabetização é angustiante, porque nasce nesse contexto e revela um escritor pessimista e desencantado com a vida. No entanto, é nesse universo que Graciliano Ramos vai se ancorar é nele que o autor descobre a sua válvula de escape e nele mergulha, pois com o acometimento de uma doença que o fez ficar temporariamente cego e preso em seu quarto, é que ele descobre nas palavras o sentido para a sua dura e amarga existência.
Ao passo que Sartre teve na figura do avô seu maior incentivador para se tornar um escritor, Guimarães Rosa encontra na biblioteca de Jerônimo Barreto, a ampliação de seus horizontes que o faz despertar para uma maneira diferente de encarar a vida. O escritor nasce com o apoio de Mário Venâncio e por meio desse apoio, liberto graças à literatura, parte da infância para o mundo dos adultos e descobre na arte de manejar as palavras a maneira mais eficiente de aplacar a dor vivenciada pelas desventuras de sua vida.

Considerações finais
O que percebemos em ambas as histórias de infância, na de Sartre e de Graciliano Ramos é que a palavra, com seu potencial libertador, introduz o ser humano a um universo de descobertas e de sentido da vida e se transforma num facilitador nas relações com o mundo concreto e material. É nelas que ambos descobrem-se potencialmente vivos e abertos para torná-las num futuro que pode ser colhido amanhã.
A descoberta da leitura e da escrita, como objeto de prazer, reflexão e mudança, encontra em Sartre e Graciliano Ramos uma razão comunicativa que se orienta para uma razão solidária, na medida em que seus escritos traduzem a natureza do que é "ser" humano numa sociedade que por vezes se mostra cruel e desumana. Nas palavras encontramos o alento e o estímulo a uma mudança pessoal e coletiva. Por meio delas, grandes homens e mulheres mudaram o destino de nações, de vidas potencialmente presas à ignorância das que se faz presente nas mazelas humanas.
Aprender com as palavras e ensiná-las requer além de uma habilidade intelectual, uma sensibilidade sensorial, afetiva, sem a qual um professor (a) não consegue alcançar os mais diferentes níveis e realidades educacionais numa sociedade. Uma sociedade que só se orienta pelos slogans é uma sociedade rendida à manipulação, que ao invés de construir grandes pensadores, constrói meros ?robores?, repetidores de uma realidade que só se faz cada vez mais alienada e desprovida de sentidos.
A infância de Sartre e Ramos foi diferente quanto ao aspecto familiar, mas foi igual no sentido de que em ambos, as palavras tornaram-se a mola mestra para a superação de si mesmo e do mundo que os rodeava. Contudo, salvar a palavra no contexto educacional atual, estimular a sua descoberta de forma prazerosa, encantadora e revolucionária, representa a melhor forma de preservar a liberdade, assim como aconteceu com Sartre e Graciliano Ramos.