RESUMO

O trabalho procura demonstrar o contraponto entre os preceitos legais e morais e a formação de ideias sobre a violência dos adolescentes e o seu uso como manipulação de massa através dos meios de comunicação e das disciplinas, nos moldes ensinados por Michel Foucault, a partir da obra Vigiar e Punir.

  1. INTRODUÇÃO

      

                   Vivemos na sociedade da informação. Diante disso um dos maiores fenômenos sociais que se apresenta é o uso da comunicação de massa, a qual termina inevitavelmente por interferir Nas palavras de McLuhan[1] estamos nos aproximando rapidamente da fase final das extensões do homem.

“(...) a simulação tecnológica da consciência, pela qual o processo criativo do conhecimento se estenderá coletiva e corporativamente a toda sociedade humana, tal como já se fez com nossos sentidos e nossos nervos através dos diversos meios e veículos. “

                   Na medida em que transmitem acontecimentos e opiniões por meio da escrita, sons e imagens, os meios de comunicação funcionam como instrumentos de influência na construção e compreensão da realidade. A mídia, portanto, exerce uma espécie de controle social de forma indireta, informal, na medida em que dita comportamentos, modismos, costumes, dissemina ideologias. A opinião pública é construída sob forte influência midiática.

                   Vivemos, também, na sociedade que se funda sobre o alicerce do Direito. O Estado detêm a prerrogativa de estabelecer regras que regulam o convívio social e deve se valer delas para conter os abusos nos demais organismos de atuação humana.

                   Pretende-se demonstrar com esse trabalho o atual desequilíbrio na relação entre estes dois meios de controle e a influencia excessiva da mídia, em especial, na esfera Penal, a fim de propor a fim de aclarar o nebuloso pensamento de massa que retrata a mera reprodução descontrolada de instintos de poder presentes no homem desde a existência dos grupos gentílicos e por isso de fácil aceitação e inserção.

         3.1. O discurso sobre a violência adolescente na atualidade

 

“Simultaneamente ao crescimento populacional desenfreado, degradação do meio ambiente, abruptas modificações nos padrões morais socialmente aceitos, aumento do uso de entorpecentes, agravamento dos problemas de segurança pública e colapso dos serviços públicos de primeira necessidade, observa-se piora significativa em um problema social de primeira grandeza: nossas crianças e jovens estão cada vez mais envolvidos com o uso de drogas e com a ilegalidade.”

A partir de tal discurso podemos perceber a persistência da mesma estrutura de norma social encontrada desde o surgimento da prisão de que a descrição no texto acima pode ser lida tanto como uma representação de nossa atualidade, como poderia ter sido extraído do discurso do século XVIII, que podemos encontrar em Vigiar e Punir “...A maior parte dos observadores sustenta que a delinquência aumenta. É claro que os partidários de maior rigor é que o afirmam.”[2] Assim, se estabeleciam os clamores por meios de punição eficazes, numa época em que os delitos mudavam junto com a sociedade, tornando-se menos violentos e mais voltados à ofensa ao patrimônio em números enquanto outros clamavam para a instituição de penas mais brandas, que poderiam ser mais facilmente impostas. Época em que Foucault relata que os magistrados já entendiam o numero de processos como excessivo e afirmavam que “a miséria do povo e a corrupção dos costumes multiplicaram os crimes e os culpados”[3]

Não é um discurso novo, permeia nossas relações e se cristalizou desde o sucesso da imposição da moral dominante que ocorreu gradativamente na passagem para a modernidade. A aceitação dos padrões de certo e errado dos detentores do poder pelos demais indivíduos, o fim da tolerância das ilegalidades deste grupo foi inevitável. Tornou-se sobremaneira valorizada a propriedade e as punições instituídas para os atos que contra elas atentassem ficaram mais severas. Traduzem, portanto, o sistema que sustenta de poder vigente.

Nesta senda, este seria um discurso possível para, a pretexto de “salvar” nossa sociedade, de conter a violência desenfreada, ser utilizado para fundamentar qualquer teoria jurídica tendente a endurecer medidas para controle, vigilância e adestramento dos adolescentes com a mesma intensidade que poderia servir para defender uma politica assistencialista.

Ocorre que a marginalidade adolescente é veiculada como um fenômeno de em números assustadores, vem sendo revelada de maneira cada vez mais violenta, construindo uma imagem de descontrole, perda da infância, bem como a falência de um modelo social desejado, desvirtuamentos e, consequentemente, gerando medo, comoção e chocando a opinião pública.

De qualquer forma, vejamos que traduz um sentimento de que apenas uma categoria de pessoas de conduta desviada seria responsável por todos os problemas a serem enfrentados em relação a delinquência juvenil. Revela o desejo de que uma parcela da população seja declarada indesejada, inútil, e dessa forma merecendo ser apartada do convívio social.

Esse discurso, fortemente presente em nossos dias e contido de forma resumida nas palavras em destaque, retratam o senso comum vigente, atende aos anseios de um tratamento que protegeria a sociedade e as pessoas que são cumpridoras das normas, que seriam as que merecem realmente proteção, a sociedade normal.

Costurando esse raciocínio ainda se apresentam os argumentos mais práticos, pontuando as possíveis diferenças entre “os jovens de hoje e os de antigamente”, que por um lado, nesta condição tão desfavorável, não tem chance de recuperação e por outro convivem em uma sociedade muito avançada, que permite acesso a toda sorte de informação, desenvolvem sexualidade e aptidões muito cedo e portanto toda essa proteção a esses adolescentes, conforme prevista na lei, não se justificaria. 

Argumentos favoráveis à redução da maioridade penal não faltam, e contam com o apoio da grande maioria da população quando objeto de consulta. Só não se firmou ainda uma politica criminal que inclua definitivamente esses jovens no Direito Penal em razão de outras forças de poder que dependem do discurso protetivo, aos quais se unem os participantes e defensores dos movimentos de proteção que culminaram na atual legislação. O discurso de preservação de direitos, proteção, também é imposto por organismos internacionais e interfere diretamente na imagem do país, o que por sua vez pode trazer consequências econômicas negativas.

 Cabe-nos então ressaltar que a discussão sobre o sistema punitivo[4] para os adolescentes, ou até crianças, é constantemente alvo de exploração da mídia, vez ou outra ganhando novo fôlego que faz o tema voltar ao centro das atenções.

Com a votação em segundo turno da Câmara dos Deputados aprovando a PEC (Proposta de Emenda Constitucional) n. 171/93, há pouco menos de um ano e seu encaminhamento para votação junto ao Senado Federal reacendeu-se o debate nos meios de imprensa, nas redes sociais, no meio político, fomentando mais uma vez uma acirrada discussão que coloca em pauta o sentido da internação, sua eficiência, sua “legitimidade”.

            Mas imediatamente à aprovação da medida surgiram notas de repúdio à PEC emanadas por organizações não governamentais e pela própria ONU - ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, nas quais se enfatiza de forma pungente a necessidade do respeito à condição peculiar às convenções internacionais.[5]

Com referido retorno dos discursos de legitimação surge a preocupação em dar eficiência ao sistema vigente para que possa se manter e assim agradando a todos, pois se houver diminuição da delinquência entre os adolescentes e parte deles se mantiver encarcerada, mas sob uma roupagem de medida de proteção, atendidos estarão todos os desejos. É nesse sentido que vem uma nova proposta de alteração do ECA, como se observa na fala a seguir transcrita:

“É um projeto extremamente atual. Em vez de tratar da redução da maioridade penal, seguiu um caminho alternativo de ampliar o prazo de internação dos jovens delinquentes. Com essa modificação, o juiz poderá, com base no exame criminológico, decretar o regime de semiliberdade ou liberdade assistida do jovem infrator que não esteja apto a voltar ao convívio social. O projeto promove, indiscutivelmente, um necessário aprimoramento no ECA”, avaliou Ana Amélia.[6]

 Embora a comunicação não seja o cerne deste trabalho, não podemos ignorar seu papel paradoxal em nossa sociedade, ressaltando-se dois pontos dois pontos: que houve uma evolução imensurável dos seus meios nas últimas décadas e que o volume de trânsito de informações é incomparavelmente maior.

Com tal facilidade da disseminação de informação pela mídia, rapidamente, barbáries cometidas por adolescentes, cada vez mais jovens, chegam ao conhecimento geral, muitas vezes acompanhada de uma formatação supervalorizada, ficando a impressão de que a solução está em medidas duras e imediatas, diante da sensação de medo, unida à desilusão com a irrecuperabilidade daqueles jovens que seriam uma esperança de melhora futura.

E se essas convicções, impregnadas em nossa sociedade, foram cuidadosamente plantadas nas bases de nossa formação, pela pedagogia tradicional[8], em nossos dias, indubitavelmente, boa parte dessa “pedagogia” se dá não pela família ou escola, mas através do que é propagado por meio da televisão, cinema e internet, embora os outros meios continuem importantes, inclusive valendo-se dessas novas ferramentas.

A esse respeito, Foucault chegou a declarar que “O medo do crime, que é permanentemente atiçado pelo cinema, pela televisão e pela imprensa é condição para que o sistema de vigilância policial seja aceito.”[9]

Justifica, enfim, não só a vigilância da policia, mas de todo o sistema, afinal, estamos em um contexto no qual a lei enuncia que a pena se presta a recuperar, e se os jovens são o futuro, a esperança, nada mais natural que a pena, a prisão, para lhes ensinar as necessárias lições e garantir que tenham a utilidade esperada.

Esta certamente é uma das maiores verdades a se questionar no âmbito desse estudo, o que se pode chamar de “senso comum” sobre este assunto, tão largamente difundido, debatido e enraizado em cada individuo (que se permitiu manipular) como um conhecimento adquirido e comprovado.

 Mesmo a ideia de debater a questão da violência sob novos paradigmas nos causa estranheza e inquietação no primeiro momento, pois em todos é muito viva a sensação de já conhecer a verdade sobre essas questões, de estar contrariando algo que já está claro, consolidado, provado, compreendido, incorporado ao “senso comum”.

Mas o que ocorre é que em caso de insucesso na ressocialização, o sistema se mostra eficiente em extirpá-los do convívio social quantas vezes forem necessárias, mantendo-os sempre à margem ainda que em sociedade, a fim de que se identifique neles o indesejado, o anormal, o excluído. Ao menos até que mereçam retornar, recuperados. Assim está garantida a manutenção da normalidade.

Porém, há outra faceta para esse debate. Embora não seja tão volumosa a informação que chega às pessoas, pela mesma mídia, capaz de ensejar uma discussão dos porquês desses fatos, através do questionamento dos números, do debate sobre as causas e possíveis modos de reverter essa conjuntura de formação em escala de jovens marginais, é nesta mesma mídia que se poderá encontrar as ferramentas para tanto.

  A publicidade dos atos penais e a consideração da opinião pública para a definição da politica criminal não são novas. Foucault explica a importância da indução pela informação na governabilidade desenvolvida na era moderna, pautada na descoberta dos anseios do grupo a ser governado e seu atendimento a fim de manter sob controle a massa de normais.

Especificamente no que cerne à punição, podemos encontrar nos escritos de Michel Foucault diversas formas de tratamento do que será comunicado e do que será escondido durante a evolução da pena, sua execução e das formas jurídicas como um todo. Como se lê em sua obra Vigiar e Punir, há sempre uma razão pautada no poder para o uso de uma das técnicas de manipulação de informação.

É um jogo de publicidade e segredo, de divulgação concomitante a técnicas de manutenção do oculto durante a prática de atos jurídicos processuais e de execução das penas. A escolha do que fica oculto e do que é mostrado se dá a partir dos anseios de cada realidade social em cada época, daquilo que se pretende obter com o que se revela e do que se pretende esconder das pessoas. Vejamos uma narrativa de execução nos moldes dos espetáculos públicos, em 1757

“Depois de duas ou três tentativas, o carrasco Samson e o que lhe havia atenazado tiraram cada qual do bolso uma faca e lhe cortaram as coxas na junção com o tronco do corpo; os quatro cavalos, colocando toda a força, levaram-lhe as duas coxas de arrasto, isto é,: do lado direito por primeiro, e depois a outra; a seguir fizeram o mesmo com os braços. Com as espáduas e axilas e as quatro partes; foi preciso cortar as carnes até quase os ossos; os cavalos, puxando com toda força, arrebataram-lhe o braço direito primeiro e depois o outro. O cumprimento das sentenças era realizado em locais públicos. O cadafalso era o palco das cenas de horror, assistidas...”[10]

As minúcias eram acompanhadas pela população atenta, que se atemorizava, comovia e buscava respostas sobre o comportamento causador do sofrimento, sobre justiça, sobre a dignidade do punido, tudo durante o flagelo da execução.

Em outro momento, Foucault assevera a mudança ocorrida de uma época a outra, passando o que era secreto a ser público e vice versa, conforme os interesses a atender, os impactos pretendidos com o processo e a punição. Haveria um processo de questionamento a partir de então dos métodos punitivos e até mesmo da noção de culpa gerando uma ambigüidade que resultaria a seguir no questionamento da punição, tornando desinteressante a manutenção dos espetáculos públicos de execução, como se explicita:

“Enfim, a lentidão do suplício, suas peripécias, os gritos e o sofrimento do condenado têm, ao termo do ritual judiciário, o papel de uma derradeira prova. Como qualquer agonia, a que se desenrola no cadafalso diz uma certa verdade: mas com mais intensidade, na medida em que é pressionada pela dor; com mais rigor, pois está exatamente no ponto de junção do julgamento dos homens com o de Deus; com mais ostentação, pois se desenrola em público. O sofrimento do suplício prolonga o da tortura preparatória; nesta, entretanto, o jogo não estava feito e a vida podia ser salva; agora a morte é certa, trata-se de salvar a alma. O jogo eterno já começou; o suplício antecipa as penas do além; mostra o que são elas; ele é o teatro do inferno; os gritos do condenado, sua revolta, suas blasfêmias já significam seu destino irremediável. Mas as dores deste mundo podem valer também como penitência para aliviar os castigos do além; um martírio desses, se é suportado com resignação, Deus não deixará de levar em conta. A crueldade da punição terrestre é considerada como dedução da pena futura; nela se esboça a promessa cio perdão. Mas pode-se dizer ainda: um sofrimento tão vivo não seria sinal de que Deus abandonou o culpado nas mãos dos homens? E longe de garantir uma futura absolvição, ele representa a danação iminente; enquanto que, se o condenado morre rápido, sem agonia prolongada, não é isso a prova de que Deus quis protegê-lo e impedir' que ele caísse no desespero? Portanto, ambigüidade desse sofrimento que pode do mesmo modo significar,a verdade do crime ou o erro dos juízes, a bondade ou a maldade do criminoso, a coincidência ou a divergência entre o julgamento dos homens e o de Deus. Daí essa extraordinária curiosidade que leva os espectadores a se comprimirem em torno do cadafalso e do sofrimento que este exibe; lêem-se aí o crime e a inocência, o passado e o futuro, este mundo e o eterno.”[11]

Num dado momento, a intenção e reforma do sistema penal desembocou em um raciocínio de que a realização do processo penal, permitindo em tese seu controle pela população, deslocaria a certeza, o conhecimento verdadeiro para fora da execução e, por outro lado, uma execução que passou a ser ‘humanizada”, com objetivos ressocializadores, seriam os fundamentos de legitimação da punição[12].

“O suplício faz parte do procedimento que estabelece a realidade do que é punido. Mas não é só: a atrocidade de um crime é também a violência do desafio lançado ao soberano: é o que vai provocar da parte dele uma réplica que tem por função ir mais longe que essa atrocidade, dominá-la, vencê-la por um excesso que a anula. A atrocidade que paira sobre o suplício desempenha portanto um duplo papel: sendo princípio da comunicação do crime com a pena, ela é por outro lado a exasperação do castigo em relação ao crime. Realiza ao mesmo tempo a ostentação da verdade e do poder; é o ritual do inquérito que termina e da cerimônia onde triunfa o soberano. E ela os une no corpo supliciado. A prática punitiva do século XIX procurará pôr o máximo de distância possível entre a pesquisa "serena- da verdade e a violência que não se pode eliminar inteiramente da punição. Será feito o possível para marcar a heterogeneidade que separa o crime que deve ser sancionado e o castigo imposto pelo poder público. Entre a verdade e a punição só deverá haver agora uma relação de conseqüência legítima. Que o poder que sanciona não se macule mais por um crime maior que o que ele quis castigar. Que fique inocente da pena que inflige.”

Dentro de uma proposta de estudarmos a aplicação da medida de internação a adolescentes infratores há muitos fatores a serem considerados, estudados e debatidos. Haja vista o domínio das técnicas que envolvem a escolha, imposição e cumprimento de tal sorte de medida, conclui-se que cabe aos pensadores e operadores do Direito boa parte responsabilidade na formação da opinião pública.

É preciso evitar que se trilhe um caminho de supressão de direitos sem respaldo e justamente de quem nunca teve seus direitos garantidos. Mas não é só, é preciso deixar de fomentar um sistema de produção de delinquentes e de pessoas sem individualidade, de seres úteis em razão de uma docilidade adquirida, ou seja, não basta manter a defesa no campo dos enunciados.

Mas também é verdade que as mídias disponíveis sempre detiveram o papel de propagadoras das verdades desejadas, de veículos de propaganda dos interesses disciplinadores. Comentando a relação de Foucault com a mídia e a religião

   A mídia (os meios de comunicação), que poderia assumir o papel de reveladora das formas jurídicas, vem se prestando muito mais a essa fabricação de réplicas.

Porém, quando assumem este papel na atualidade, não pretendem transmitir a ocorrência, revelar o que é propositadamente ocultado, mas reforçar a opinião previamente veiculada reforçando o processo de manutenção do poder.

Alguém poderia ponderar que os espetáculos que são atualmente armados por toda a imprensa quando um caso ganha a mídia seriam para permitir às pessoas que questionem o processo, debatam, desenvolvam uma opinião sadia, mas não se pode olvidar que as transmissões não são de nenhuma forma e nem tentam ser isentas. A intenção clara na postura assumida é a da elaboração de uma estratégia para permitir a aderência da opinião pública, atingindo o maior número de pessoas possível. Para isso, nada mais natural que instigar a punição.

Seria arriscado, mas não inimaginável dizer que o conteúdo do que é veiculado pelos meios de comunicação de massa está maculado, contaminado ou ao menos influenciado pelo fato de que o sustento desses meios advém da publicidade.

Mas não é sem fundamento que se coloca estes questionamentos acerca do posicionamento da mídia. Isso porque, diante desse cenário de caos e total impunidade construído, tem-se por outro lado números assustadores relativos ao encarceramento no país combinado ao total abandono dos indivíduos considerados anormais, um incômodo para a manutenção da ordem.

Finalmente, deve-se destacar que os meios de comunicação são a melhor estratégia para se identificar anseios e para propagar o novo discurso, em especial considerando que se agregam hoje as redes sociais, permitindo a expressão do leitor e o compartilhamento de diversas inferências, opiniões, digressões, complementos à primeira ideia, tudo em segundos. Revelam de forma extremamente eficiente os novos comportamentos, novas tendências, os novos valores e todo o universo de normalidades e anormalidades e expõem em minucias as individualidades de cada usuário, os detalhes de cada opinião.

A comunicação constitui cada vez mais meio de exercício das forças de poder, entendido o poder como a rede não só de imposição mas de ação das pessoas em suas relações sociais. Como se vê na explicação de Deleuze sobre o poder na obra de Foucault, temos que:

Em suma, o poder não tem homogeneidade; define-se por singularidade, pelos pontos singulares por onde passa.

Postulado da localização, o poder seria poder de Estado, estaria localizado ele próprio no aparelho de Estado, tanto que até mesmo os poderes "privados" teriam uma dispersão apenas aparente e seriam, ainda, aparelhos de Estado espe­ciais. Foucault mostra, ao contrário, que o próprio Estado aparece como efeito de conjunto ou resultante de uma multi­plicidade de engrenagens e de focos que se situam num nível bem diferente e que constituem por sua conta uma "rnicrofi­sica do poder". Não somente os sistemas privados, mas as peças explícitas do aparelho de Estado têm ao mesmo tempo uma origem, procedimentos e exercícios que o Estado aprova, controla ou se limita a preservar em vez de instituir. Uma das idéias essenciais de Vigiar e Punir é que as sociedades mo­dernas podem ser definidas como sociedades "disciplinares", mas a disciplina não pode ser identificada com uma institui­ção nem com um aparelho, exatamente porque ela é um tipo de poder, uma tecnologia, que atravessa todas as espécies de aparelhos e de instituições para reuni-los, prolongá-los, fazê-los convergir, fazer com que se apliquem de um novo modo.[13]

O poder em Foucault certamente não é centralizado, não provem de uma única fonte, mas considerando que o direito de punir em nossa sociedade está concentrado nas mãos do Estado, é a esse ente que se deve influenciar para manter ou alterar qualquer condição, é do poder que essa instituição concentra que se extrai originalmente as determinações, as imposições legais que irão direcionar a opção de tratamento desses jovens na condição de uma representação a vontade de seus governados. É este Estado que se pressiona, de quem se exige, portanto, a resposta pretendida.

Estabelece-se enfim que a exclusão desses grupos anormais, desses adolescentes infratores, que desestabilizam as relações econômicas, que interferem na capacidade de controle das questões que correspondem aos valores dessa sociedade, aos desejos da maioria, como propriedade, segurança, determinados padrões de conforto, status profissional, é conveniente a todos.

 O que não convém é ter de conviver com o temor de se ver atingido por esses indivíduos indesejados em seus interesses. Por outro lado o discurso está impregnado dos valores sociais também repletos da carga moral que funda o próprio sistema punitivo, dentro do que se inclui as conquistas de direitos e, especialmente, como já discutimos, da condição de cuidados em que se encontram os adolescentes em virtude de sua condição peculiar.

Mais conveniente, então, que esta exclusão mesmo que se dê pelo sistema punitivo tradicional, encarcerador, mas revestida com o rótulo de um procedimento especialmente educativo e cuidador, dotado de medidas alternativas que circundam o encarceramento e instrumentos que transpareçam menos rigidez que o sistema adotado para os adultos.

 Consequentemente, falindo a utilização desse sistema, a exigência de medidas ainda mais duras, de maior tempo de exclusão social, que diminuam o incomodo ocasionado, geram novas pressões ao Estado para que garanta a segurança, os bens da população, endurecendo o sistema punitivo aplicável. 

E, naturalmente, interessa a quem integra esse poder estatal, ou o almeja, que a resposta penal do Estado seja a mais bem aceita junto à maior parte da população.

 Em resumo, seja quando tratamos do poder centralizado, seja quando referimo-nos ao poder difuso, os atos de quem detém poder ou dos que estão a seu serviço sempre serão tendenciosos, portanto, à manutenção do estado de coisas ou da utilização das ferramentas disponíveis que permitam a continuidade das condições conquistadas e vistas como objeto de desejo de seus detentores.

Com este breve histórico acerca da verdade e sua produção pela manipulação da informação e consequentemente do saber, nos é permitido iniciar uma análise da realidade observável menos contaminados pelo que nos foi “ensinado”, pelos que previamente “sabíamos” sobre o assunto em razão das certezas engendradas e transmitidas.

É preciso conhecer o conjunto de informações existentes acerca da realidade em comento para que se tenha uma noção suficiente a gerar questionamentos sobre o funcionamento da medida de internação, sua efetividade e seu papel atual no quadro de encarceramento.

BIBLIOGRAFIA

  1. CAMPILONGO, Celso Fernandes. Política, sistema politico e decisão judicial. 2ª ed. São Paulo. Saraiva, 2011.
  2. Deleuze, Gilles. tradução Claudia S’antana Martins. São Paulo: editora brasiliense, 2013. p. 35.
  3. GODOY, Cláudio Luiz Bueno de. A Liberdade de Imprensa e os Direitos da Personalidade. São Paulo: Atlas, 2001. p. 91.
  4. FERRY, Luc. Uma leitura das tres “Críticas”. Tradução Karina Janine. 3ª ed., Rio de Janeiro. DIFEL, 2012.
  5. FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Tradução de Raquel Ramalhete. 30a ed. Petrópolis, Vozes, 1987.

.

  1. McLUHAN, Marshall. Os Meios de Comunicação como Extensões do Homem. 11a ed. São Paulo: Cultrix, 2001.
  2. Motta, Manuel Barros da. Ditos e Escritos VIII. Segurança, Penalidade e Prisão. Rio de Janeiro, 2012. Forense Universiária. p. 107.
  1. [1]1McLUHAN, Marshall. Os Meios de Comunicação como Extensões do Homem. 11a ed. São Paulo: Cultrix, 2001. p. 17.

[2] Vigiar e Punir, p. 66

[3] Idem, ibidem.

[4] Referimo-nos algumas vezes a sistema punitivo, cabendo esclarecer a relação entre pena, sistema penal e sistema punitivo com as palavras do próprio Foucault que assevera “ A prisão, em si mesma, não é senão uma parte do sistema penal, e o sistema penal não é senão uma parte do sistema punitivo. Não serviria para nada reformar o sistema penitenciário sem reformar o sistema penal e a legislação penal.” (Motta, 2010, p. 63).

[6]Ana Amelia é a senadora , responsável pela relatoria do projeto de lei, PLS 333/2015 no senado. Fonte:  http://congressoemfoco.uol.com.br/noticias/senado-examina-alternativa-a-reducao-da-maioridade-penal/

[8] A pedagogia realizada no espaço da escola, para Foucault, é igualmente disciplina, assim como a prisão, encontrando-se em Vigiar e Punir a descrição de modelos disciplinares utilizados nas escolas. 

[9] Motta, Manuel Barros da. Ditos e Escritos VIII. Segurança, Penalidade e Prisão. Rio de Janeiro, 2012. Forense Universiária. p. 107.

[10] Vigiar e punir, 90

[11]  Idem, ibidem

[12] Vigiar e Punir, p. 114.

[13] Deleuze, Gilles. Foucault. tradução Claudia S’antana Martins. São Paulo: editora brasiliense, 2013. p. 35.