Introdução

O sentido da existência das normas legais parte da premissa de que o direito não possui um fim em si mesmo, mas deve servir de meio para um fim almejado, qual seja, a justiça e a pacificação social. Partindo-se desse pressuposto, fica evidente que o direito está em constante mudança, sempre se amoldando às relações sociais. Com as normas processuais não haveria de ser diferente.
As vicissitudes de situações fáticas demandam do Poder Judiciário uma constante (re)construção do direito. Institutos que até então eram tratados como dogmas (no sentido de "verdades absolutas", inquestionáveis) passam a ser discutidos e rediscutidos. O grande problema das novas construções jurisprudenciais e/ou doutrinárias ocorre quando se confunde a finalidade do direito que, como já visto, deve pairar na pacificação dos conflitos sociais, na justiça (refutando o Direito como um fim em si mesmo).
Nesse sentido, tema que tem suscitado calorosas discussões é o da relativização da coisa julgada inconstitucional. O instituto da coisa julgada figura como garantia constitucional da segurança jurídica. Está, portanto, sob o manto constitucional. Porém, o que fazer quando a proteção a coisa julgada afrontar a própria Constituição? A relativização da coisa julgada nestes casos deve ser admitida ou não?
É com base nesses questionamentos que o presente trabalho tem como objetivo trazer à tona os recentes debates doutrinários e jurisprudenciais que discorrem sobre o tema: coisa julgada inconstitucional. Para tanto, faz-se mister que se discorra sobre as características da coisa julgada e sua relação com o princípio constitucional da segurança jurídica.

1 Coisa julgada: conceito e características.

A coisa julgada possui status de garantia fundamental com expressa previsão no art. 5º, XXXVI, da Constituição Federal. Para o professor Leonardo Greco (2009), a coisa julgada é uma importante garantia fundamental e, como tal, um verdadeiro direito fundamental, como instrumento indispensável à eficácia concreta do direito à segurança, inscrito como valor e como direito no preâmbulo e no caput do art. 5º da Constituição Federal. A segurança não é apenas a proteção da vida, da incolumidade física ou do patrimônio, mas também e principalmente a segurança jurídica.
O Decreto-Lei 4.657/1942 (Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro) conceitua coisa julgada em seu artigo 6º, §3º como sendo a decisão de que já não caiba mais recurso. Porém, a doutrina vai além. O autor que parece melhor definir coisa julgada é Enrico Tullio Liebman cuja definição é citada por Alexandre Câmara (2009) e Scarpinella Bueno (2009) como sendo a "imutabilidade do comando emergente de uma sentença", ou seja, a imutabilidade em sua existência formal e dos efeitos dela provenientes.
Possui, portanto, a coisa julgada duas facetas: a faceta formal e a faceta material. De acordo com Wambier (2003), a faceta formal representa a imutabilidade da decisão dentro do mesmo processo, consistindo na impossibilidade de se utilizar qualquer recurso para alterar o decisum, sendo tal faceta inerente a todas as decisões judiciais preclusas (por isto é comum designá-la como preclusão máxima), ou seja, é efeito característico tanto das sentenças definitivas quanto das sentenças meramente terminativas. Já a faceta material se configura na impossibilidade da discussão da mesma matéria por qualquer processo posterior, sendo intangível a decisão judicial, tornando-se imune a alteração por novo ato judicial, legislativo ou administrativo (é efeito característico das decisões de cunho definitivo).
Essas características são trazidas pelo CPC nos artigos 467 a 474.

2 O princípio da segurança jurídica e sua relação com a coisa julgada.

O instituto da coisa julgada está umbilicalmente ligado ao princípio da segurança jurídica. De nada valeria a tentativa de se solucionar os conflitos se não houvesse uma previsão de término da lide. Essa previsão de termo e a garantia de execução da decisão é que dá azo à coisa julgada, sendo resguardada de forma expressa pela Constituição Federal (art. 5º, XXXVI).
Como preleciona Marinoni (2008), a segurança jurídica pode ser analisada em duas dimensões, uma objetiva e outra subjetiva. No plano objetivo, a segurança jurídica recai sobre a ordem jurídica objetivamente considerada, aí importando a irretroatividade e a previsibilidade dos atos estatais. Em uma perspectiva subjetiva, a segurança jurídica é vista a partir do ângulo dos cidadãos em face dos atos do Poder Público.
E arremata: A coisa julgada, enquanto instituto jurídico, tutela o princípio da segurança em sua dimensão objetiva, deixando claro que as decisões judiciais são definitivas e imodificáveis. Na outra dimensão, quando importa a proteção da confiança, a coisa julgada garante ao cidadão que nenhum outro ato estatal poderá modificar ou violar a decisão que definiu o litígio. (MARINONI, 2008)
É, portanto, imprescindível à manutenção da ordem jurídica e, por conseguinte, ao Estado de Direito, que haja o mínimo de segurança nas decisões jurídicas, de modo a garantir ao cidadão a possibilidade de pleitear direito seu que fora violado, com a confiança nas decisões do Poder Judiciário.

3 A relativização da coisa julgada

3.1 A (re)construção da coisa julgada pela doutrina brasileira: a possibilidade da relativização

A moderna doutrina processualista vem aceitando a possibilidade de se relativizar a coisa julgada sempre que houver manifesta afronta à Constituição. É sabido que a sentença de mérito, transitada em julgado e eivada de vícios de legalidade, dentre outros casos arrolados no art. 485 do CPC, pode ser rescindida. Porém, a mesma previsão não existe no caso de inconstitucionalidade. Por extensão, a doutrina que defende a relativização da coisa julgada admite a revisão da coisa julgada, em certas situações, mesmo depois de transcorrido o prazo da ação rescisória.
Cabe destacar que a coisa julgada inconstitucional é exceção e deve ser tratada como tal. É exatamente aí que reside um dos pontos mais criticados pela doutrina que se opõe à relativização: a banalização da coisa julgada inconstitucional. Nesse sentido, Scarpinella Bueno defende a relativização, mas sem generalizações:
A aceitação da relativização da coisa julgada deve depender das especificidades de cada caso concreto ? vedada, por sua definição, sua generalização -, em que se possa contrastar, frente a frente, o conflito dos valores envolvidos (...). Não se pode, justamente por causa da influência do modelo constitucional do direito processual civil, sustentar a aplicação indiscriminada, até mesmo generalizada da tese da relativização da coisa julgada.(BUENO, 2009, p. 403)

Considerando o Direito como meio para um fim almejado, qual seja, a pacificação social com base nos critérios de justiça, já mencionado alhures, Alexandre Câmara, em artigo publicado por Fredie Didier Jr., se posiciona:
É preciso se relativizar a coisa julgada material, como forma de se manifestar crença na possibilidade de se criar um mundo mais justo. O processo só pode ser aceito como meio de acesso a uma ordem jurídica justa. E é preciso crer na possibilidade de construção dessa ordem jurídica justa para que à mesma se possa chegar. (DIDIER, 2008, p. 37-38)

Vale ressaltar que alguns autores não consideram inconstitucional a coisa julgada, mas a sentença que transitou em julgado. Para o Professor Barbosa Moreira, citado por Humberto Theodoro Jr, na mesma coletânea coordenada por Didier,
O correto não é afirmar-se inconstitucional uma coisa julgada, pois esta é apenas a imutabilidade daquilo que a sentença decidiu. Por isso, se se cometer ofensa à Constituição, quem a terá praticado será a sentença, e não a coisa julgada. (DIDIER, 2008, p. 217)

Porém, a diferenciação feita pelo professor Barbosa não altera o resultado da conseqüência, que reside na reforma da decisão frente a uma inconstitucionalidade.
As considerações apontadas por estes doutrinadores representam uma pequena parcela daqueles que aceitam a relativização da coisa julgada. A doutrina não afasta a delicadeza do tema, tampouco refuta as principais críticas apontadas pelos seus opositores. Porém, não aceitam que a premissa da segurança jurídica se sobreponha à finalidade maior do Direito: a justiça. A segurança jurídica deve ser considerada sim, mas não de forma a se sobrepor aos próprios preceitos constitucionais. Isso seria afrontar o próprio Estado de Direito com decisões arbitrárias, inaceitável em um ordenamento sob a égide de uma Constituição democrática.

3.2 A (re)construção da coisa julgada pela jurisprudência brasileira

Os Tribunais, em especial o Superior Tribunal de Justiça (por meio de ação rescisória), têm se deparado com a polêmica questão da coisa julgada inconstitucional. Diferenciando questão de ilegalidade de questão de inconstitucionalidade, o STJ tem considerado a apreciação da ação rescisória sem que aplique o prazo decadencial de dois anos para o manejo da ação.
Desse modo a admissão da ação rescisória não significa a sujeição da declaração de inconstitucionalidade da coisa julgada ao prazo decadencial de dois anos, a exemplo do que se dá com a coisa julgada que contempla algumas nulidades absolutas, como é o exemplo do processo em que há vício de citação:
Rescisória. Sentença nula. Defeito da Citação. Dispensa Rescisória. Não há prazo decadencial. Para a hipótese do artigo 741, I, do atual CPC, que é a falta ou nulidade da citação (...) (STF, RE 97.589, Pleno, rel. Min. Moreira Alves).

A questão da relativização já havia sido suscitada na década de 1980 pelo Supremo Tribunal Federal. Na ocasião o Tribunal entendeu ser possível a realização de nova perícia em imóvel desapropriado, mesmo depois de já haver transitado em julgado a sentença que fixara o valor indenizatório. Os Ministros sustentaram que em certos casos específicos, a garantia da coisa julgada deve ser ponderada com a garantia da justa indenização, constitucionalmente assegurada. (DIDIER, 2008)
O Ministro José Delgado em voto proferido em seção no STJ já manifestou seu posicionamento de não atribuir caráter absoluto à garantia da coisa julgada, sustentando que a segurança jurídica, que embasa o instituto, não pode sobrepor-se a outros princípios também importantes, como a moralidade pública. (RAMOS, 2007)
Questão referente ao tema e que tem se apresentado com maior freqüência, é a investigação de paternidade. Transitada em julgado a sentença proferida nesse tipo de ação, num determinado sentido, pode ser que exame de DNA superveniente demonstre a incorreção da decisão. Nesses casos, a jurisprudência do STJ tem admitido a revisão da sentença. Porém, frise-se, essa revisão é feita por propositura de ação rescisória com base no art. 485, VII, CPC (obtenção de documento novo...). (RAMOS, 2007)
Em outro julgado, decidiu o STJ:
CONSTITUCIONAL ? PROCESSUAL CIVIL ? RESCISÓRIA ? AUSÊNCIA NOS AUTOS DE ACÓRDÃO QUE APRECIOU CONSTITUCIONALIDADE DE LEI ? INDEFERIMENTO DA INICIAL ? IMPROCEDÊNCIA ? SÚMULA 343 ? STF ? INAPLICABILIDADE ? INEXISTÊNCIA DE OFENSA À COISA JULGADA ? 1 ? A juntada do acórdão que proclamou, incidenter tantum, inconstitucionalidade de lei só é necessária para possibilitar julgamento do extraordinário, não constituindo solenidade essencial ao ajuizamento da ação rescisória. 2 ? A ação rescisória (art. 485, V, CPC) é via adequada para desconstituir decisão trânsita em julgado que, em desacordo com pronunciamento do Supremo Tribunal Federal, deixa de aplicar uma lei por considerá-la inconstitucional ou a aplica por tê-la como de acordo com a Carta Magna. 3 ? A coisa julgada em matéria tributária não produz efeitos além dos princípios pétreos postos na Carta Magna, a destacar o da isonomia. 4 ? O controle da constitucionalidade das leis, de forma cogente e imperativa, em nosso ordenamento jurídico, é feito, de modo absoluto, pelo colendo Supremo Tribunal. 5 ? Agravo regimental improvido.

A partir desse julgado é possível perceber a relativização da coisa julgada e do princípio da segurança jurídica frente a outros princípios Constitucionais, notadamente a igualdade tributária e isonomia.
Percebe-se que há uma tendência dos Tribunais Superiores em considerar a relativização da coisa julgada inconstitucional. Porém, em casos bem específicos em que há manifesta afronta aos preceitos constitucionais.

Conclusão
A coisa julgada relaciona-se intimamente com o princípio da segurança jurídica, ambos com lastro constitucional. Porém, esse instituto não pode permanecer como dogma, ainda mais quando se tem em vista a finalidade principal do Direito, diversas vezes repetida: a pacificação dos conflitos sociais, a justiça.
O conflito entre duas normas de mesma hierarquia ? constitucional ? deve ser solucionado a partir do sopesamento de ambos diante do caso concreto. Assim, em casos de extrema excepcionalidade em que a coisa julgada fira preceitos constitucionais, o Poder Judiciário por meio do controle de constitucionalidade deve rever tal decisão, sem necessariamente generalizar tais casos a ponto de se alterar a legislação, o que poderia, aí sim, comprometer a segurança jurídica do ordenamento.
Destaca-se, portanto, que diante do exposto, não se está, propriamente, relativizando a coisa julgada, mas os meios de seu controle. Não se trata, assim, de necessidade de alteração legislativa, mas de uma ampliação interpretativa do artigo 285 do CPC. Seria, em sede de ação rescisória, o reconhecimento de inconstitucionalidade reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal.
De qualquer modo, o caso concreto é que determinará a possibilidade ou não da relativização da coisa julgada, de modo que não se afete a segurança jurídica do ordenamento, mas também que não admita absurdos como coisas julgadas claramente contrárias à normas fundamentais previstas na Constituição Federal. Colocar a segurança jurídica acima de direito fundamentais individuais seria atribuir maior importância ao Direito em detrimento do primado da justiça. Colocar a obsessão por regras positivas acima dos critérios de justiça é considerar o direito como um fim em si mesmo. É dar mais importância à técnica em detrimento dos fundamentos constitucionais. O modelo constitucional processual civil deve, do mesmo modo, obediência a tais preceitos, sob pena da tecnicidade alienar seus operadores, desvirtuando o foco das questões de Direito.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BUENO, Cássio Scarpinella. Curso Sistematizado de Direito Processual Civil. V.2 tomo I. 2.ed. ? São Paulo: Saraiva, 2009.

CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de Direito Processual Civil. V.1.? Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2009.

DIDIER JÚNIOR, Freddie. Relativização da Coisa Julgada: enfoque crítico. 2. ed. ? Salvador: Editora Podivm, 2008.

DIDIER JÚNIOR, Fredie; et al. Curso de Direito Processual Civil. 4ª ed. Vol. 2. ? Salvador: Editora Podivm, 2009.

GRECO, Leonardo. Eficácia da Declaração Erga Omnes de Constitucionalidade ou Inconstitucionalidade em relação à coisa julgada anterior. Disponível em: http://www.mundojuridico.adv.br/sis_artigos/artigos.asp?codigo=399, acessado em 05/11/2009.

MARINONI, Luiz Guilherme. Coisa Julgada inconstitucional: a retroatividade da decisão de (in)constitucionalidade do STF sobre a coisa julgada. A questão da relativização da coisa julgada. ? São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008.

RAMOS, André Luiz Santa Cruz. Coisa Julgada Inconstitucional. ? Salvador: Editora Podivm, 2007.

WAMBIER, Luiz Rodrigues. Curso Avançado de Processo Civil. 5 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003.