A CLASSIFICAÇÃO DOS CRIMES DE TRÂNSITO RESUMO Os crimes previstos no ordenamento jurídico brasileiro são classificados conforme diversos aspectos, dentre eles, em relação ao bem jurídico tutelado. Nesse aspecto os crimes se classificam em crimes de dano e de perigo. No entanto, certa dificuldade surge na doutrina ao classificar os crimes de trânsito nesse aspecto, por conta da divergência na identificação do bem jurídico tutelado. Nesse âmbito, a partir da análise da intenção do legislador ao prever os crimes de trânsito e ao bem jurídico que possivelmente quis tutelar, o presente estudo buscará esclarecer as divergências entre os posicionamentos hoje existentes acerca dessa classificação, e concluir quanto a melhor posição a ser adotada. INTRODUÇÃO Os crimes, segundo doutrina predominante, podem ser classificados quanto à afetação ao bem jurídico tutelado, em crimes de dano ou de perigo. De acordo com melhor doutrina, Guilherme de Souza Nucci1 define crime de dano como "os que se consumam com a efetiva lesão a um bem jurídico tutelado". Já os crimes de perigo o mesmo autor define como aqueles em que: "contenta-se com a mera probabilidade de dano. Trata-se de um juízo de probabilidade que se funda na normalidade dos fatos, vale dizer, conforme o que usualmente costuma acontecer, o legislador leva em consideração o dano em potencial gerado por uma determinada conduta para tipifica-la". Estes são ainda divididos em crime de perigo abstrato e de perigo concreto que, para Damásio E. de Jesus, ao citar Claus Roxin2: Perigo presumido (ou abstrato) é considerado pela lei em face de determinado comportamento positivo ou negativo (valoração ex ante). Não precisa ser provado. Ocorre nos casos em que o comportamento não apresenta probabilidade real de dano ao bem jurídico, i.e., não o expõe a perigo de dano. É a lei que o presume júris et de jure, sob o fundamento de que a periculosidade típica da conduta já é motivo para a sua apenação, sem que fique na dependência da produção de dano (Claus Roxin, Derecho penal; parte general, trad. Diego Manuel Luzón Pena, Miguel díaz y García Conlledo e Javier de Vicente Remesal, Madri, Ed. C, p. 336). Diante disso, para que o perigo seja considerado não é necessário provar sua superveniência". "Perigo concreto é o real, o que na verdade acontece, hipóteses em que o dano ao objeto jurídico só não ocorre por simples eventualidade, por mero acidente, sofrendo um sério risco (efetiva situação de perigo)". 1 NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal comentado. Editora RT. São Paulo, 2005. 5ª edição. Página 122. 2 Apud JESUS, Damásio E. Crimes de Trânsito. Editora Saraiva. 6ª edição, 2006. Página 3 e 6. 9 A partir desses conceitos, surge dúvida doutrinária quanto à classificação dos crimes de trânsito quanto a esse aspecto da afetação ao bem jurídico tutelado. Para alguns autores seriam os crimes de trânsito crimes de perigo concreto, necessitando assim da prova da exposição concreta de alguém a perigo efetivo. Já para o entendimento predominante, os crimes de trânsito são crimes de dano, ou lesão, considerado não no sentido físico, mas à segurança no trânsito. Diante disso, esse estudo buscará esclarecer as implicações da adoção de uma e de outra teoria de acordo com a definição do bem jurídico a ser tutelado, e concluir a melhor a ser adotada do ponto de vista do Código de Trânsito Brasileiro e do ordenamento jurídico brasileiro. 10 CLASSIFICAÇÃO DOS CRIMES Os crimes, tipificados segundo o Ordenamento Jurídico Brasileiro, são usualmente classificados, pela maioria dos doutrinadores, dentre eles Guilherme de Souza Nucci3 em: - comuns e próprios: os crimes, conforme possam ser cometidos por qualquer pessoa são comuns, ou quando exigem sujeito ativo especial ou qualificado, ou seja, só podem ser praticados por determinadas pessoas são crimes próprios. - instantâneos e permanentes: nos crimes instantâneos a consumação ocorre com uma única conduta e o resultado é instantâneo, ainda que a ação se prolongue no tempo. Já os crimes permanentes embora a consumação ocorra com uma única conduta, a situação antijurídica se prolonga no tempo conforme a vontade do agente. - comissivos, omissivos, comissivos por omissão e omissivos por comissão: os crimes comissivos são praticados por uma ação do agente, os omissivos por uma abstenção, os comissivos por omissão são os delitos de ação praticados por omissão do agente que tem o dever de impedir o resultado, e, os omissivos por comissão são aqueles normalmente cometidos por abstenção, mas, excepcionalmente podem ser praticados pela ação de alguém. 3 NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal comentado. Editora RT. São Paulo, 2005. 5ª edição. Páginas 119 a 124. - de atividade e de resultado: conforme não necessitem de resultado naturalístico, são os formais e de mera conduta os crimes de atividade. Se necessitam de resultado naturalístico são crimes de resultado. - de dano e de perigo: os crimes de dano se consumam com a efetiva lesão a um bem jurídico tutelado, já os de perigo se consumam com a mera probabilidade de haver um dano. - unissubjetivos e plurissubjetivos: os crimes unissubjetivos podem ser praticados por uma só pessoa, e os plurissubjetivos só podem ser praticados por mais de uma pessoa, independente se todas devam ser penalmente punidas. - progressivos e complexos: essa classificação está diretamente ligada ao fenômeno da continência, que, quando é explícita, ou seja, um tipo penal expressamente envolve o outro, trata-se de crime complexo. E, quando implícita, um tipo penal tacitamente envolve o outro, trata-se de crime progressivo. - habitual: no crime habitual a consumação ocorre através da prática reiterada e contínua de várias ações, preenchidos alguns requisitos para essa caracterização, será punido o conjunto das condutas. - unissubsistente e plurissubsistente: no crime unissubsistente a prática ocorre com um único ato, já no plurissubsistente, com vários atos. No entanto, alguns delitos admitem as duas hipóteses. - forma livre e forma vinculada: nos crimes de forma livre não há forma prevista em lei para a prática do delito, ou seja, não há qualquer vínculo com o método. Já nos crimes de forma vinculada, a fórmula expressamente prevista no tipo penal deve ser observada para que se caracterize o cometimento do delito. - crimes vagos: nos crimes vagos o sujeito passivo do crime é indeterminado pois atinge toda a coletividade. - crimes remetidos: são as condutas tipificadas que fazem expressa remissão a outras. - crimes condicionados: são aqueles crimes que dependem do implemento de uma condição para se configurarem. - crimes de atentado: são os crimes em que o tipo penal prevê a forma tentada do delito equiparada à forma consumada. AFETAÇÃO AO BEM JURÍDICO TUTELADO: CONCEITO MATERIAL DE CRIME O ordenamento jurídico brasileiro, em seu Código Penal, não define crime, cabendo à doutrina tal definição. No entanto, a definição de crime não é essencialmente objetiva, pois ora considera aspectos internos, da essência do crime ou de seu agente, referente ao conceito material de crime; ora aspectos externos, puramente nominal do crime, referentes ao conceito formal, que, considerando as características ou aspectos do crime, gera o conceito formal analítico. Para o completo desenvolvimento do presente estudo, necessário tecer considerações mais profundas acerca do conceito material de crime, ou seja, conforme Julio Fabbrini Mirabete4 "a razão que levou o legislador a prever a punição dos autores de certos fatos e não de outros, como também conhecer o critério utilizado para distinguir os ilícitos penais de outras condutas lesivas, obtendo-se assim um conceito material ou substancial de crime". MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de Direito Penal. Parte Geral. Volume 1. 21ª edição, 2004. Editora Atlas. Páginas 95 e 96. Dessa forma, podemos afirmar que, de acordo com a intenção do legislador de prever um crime como tal, há sempre um bem jurídico a ser tutelado por conta dessa previsão. Nesse âmbito nos ensina Julio Fabbrini Mirabete5: "Tem o Estado a finalidade de obter o bem coletivo, mantendo a ordem, a harmonia e o equilíbrio social, qualquer que seja a finalidade do Estado (bem comum, bem do proletariado, etc.) ou seu regime político (democracia, autoritarismo, socialismo, etc.). Tem o Estado que velar pela paz interna, pela segurança e estabilidade coletivas diante dos conflitos inevitáveis entre os interesses dos indivíduos e entre os destes e os do poder constituído. Para isso é necessário valorar os bens ou interesses individuais ou coletivos, protegendo-se, através da lei penal, aqueles que mais são atingidos quando da transgressão do ordenamento jurídico. Essa proteção é efetuada através do estabelecimento e da aplicação da pena, passando esses bens a ser juridicamente tutelados pela lei penal". Assim, podemos definir, materialmente ou substancialmente o que vem a ser crime segundo Jiménez de Asua6, que "considera o crime como a conduta considerada pelo legislador como contrária a uma norma de cultura reconhecida pelo Estado e lesiva de bens juridicamente protegidos, procedente de um homem imputável que manifesta com sua agressão perigosidade social". Nos ensina também Guilherme de Souza Nucci7, que crime no prisma material "é a concepção da sociedade sobre o que pode e deve ser proibido, mediante a aplicação de sanção penal. É, pois, a conduta que ofende um bem juridicamente tutelado, ameaçada de pena. Esse conceito é aberto e informa o legislador sobre as condutas que merecem ser transformada em tipos penais incriminadores". Embora, conforme Guilherme de Souza Nucci, não haja ainda um conceito material inatacável de crime, claro está o objetivo do legislador, ao tipificar determinadas condutas, em proteger bens jurídicos. A partir desse conceito, surge a classificação dos crimes quanto à afetação ao bem jurídico tutelado, conforme já demonstrado no capítulo anterior. 5 MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de Direito Penal. Parte Geral. Volume 1. 21ª edição, 2004. Editora Atlas. Páginas 96. 6 Apud MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de Direito Penal. Parte Geral. Volume 1. 21ª edição, 2004. Editora Atlas. Página 96. 7 NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal comentado. Editora RT. São Paulo, 2005. 5ª edição. Página 111. CLASSIFICAÇÃO DOS CRIMES QUANTO À AFETAÇÃO AO BEM JURÍDICO TUTELADO Conforme já analisado, os crimes se dividem quanto à afetação ao bem juridicamente tutelado pela lei penal em crimes de dano e de perigo. CRIMES DE DANO O dano consiste na alteração de um bem, sua diminuição ou destruição; a restrição ou sacrifício de um interesse jurídico, conforme define Heleno Cláudio Fragoso8. Sendo assim, os crimes de dano, também chamados de lesão ou de mera conduta, são aqueles que só se consumam com a efetiva lesão do bem jurídico. Guilherme de Souza Nucci9 completa afirmando que "trata-se da ocorrência de um prejuízo efetivo e perceptível pelos sentidos humanos". 8 Apud JESUS, Damásio E. Crimes de Trânsito. Editora Saraiva. 6ª edição, 2006. Página 1. NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal comentado. Editora RT. São Paulo, 2005. 5ª edição. Página 122. O professor Damásio E. de Jesus10 traz como exemplos dessa modalidade de crime, o homicídio culposo no trânsito e as lesões corporais culposas no trânsito, previstos, respectivamente nos artigos 302 e 303 do Código de Trânsito Brasileiro: "Artigo 302 ? Praticar homicídio culposo na direção de veículo automotor: Penas ? detenção, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor". "Artigo 303 ? Praticar lesão corporal culposa na direção de veículo automotor: Penas ? detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor". 4.2 CRIMES DE PERIGO O perigo não consiste na mera possibilidade de dano, mas sim na probabilidade de sua ocorrência. É possível analisarmos o perigo sob dois aspectos: o objetivo, para o qual o perigo constitui o conjunto de circunstâncias que podem fazer surgir o dano; e o subjetivo que consiste no juízo do julgador, baseado na experiência e no caso concreto, sobre a probabilidade de ocorrência do dano. Dessa forma, podemos afirmar que os crimes de perigo se consumam com a probabilidade de ocorrência do dano. O professor e autor Damásio E. de Jesus11 traz como exemplos dessa modalidade de crime, os crimes de perigo de contágio venéreo, rixa e incêndio, previstos pelo Código Penal Brasileiro. Nos crimes de perigo, este pode ser individual, quando expõe o interesse de uma pessoa ou de um número determinado de pessoas ao risco, ou coletivo ou comum, quando expõe os interesses jurídicos de um número indeterminado de pessoas ao risco. JESUS, Damásio E. Crimes de Trânsito. Editora Saraiva. 6ª edição, 2006. Página 1. JESUS, Damásio E. Crimes de Trânsito. Editora Saraiva. 6ª edição, 2006. Página 1. Os crimes de perigo se dividem ainda em crimes de perigo abstrato e concreto. 4.2.1 Crime de perigo abstrato Nessa modalidade de crime o perigo é presumido pela norma que pressupõe ser perigoso o fato praticado. Ou seja, o comportamento não apresenta probabilidade real de dano ao bem jurídico, mas a lei presume esse perigo, com o fundamento de que a periculosidade típica da conduta já é motivo para a sua apenação. Dessa forma, não é necessário provar a ocorrência do perigo, nem ao menos sua superveniência. Segundo o professor Damásio E. de Jesus12, "é o chamado ?delito obstáculo? do Direito Penal francês, em que o tema da periculosidade da conduta não integra o tipo, constituindo simplesmente motivação da lei (ratio juris)". O professor Damásio13 traz um exemplo para facilitar a compreensão dessa modalidade criminal, "ex.: o fato de ?deixar o condutor de veículo, na ocasião do acidente, de prestar imediato socorro à vítima, ou, não podendo fazê-lo diretamente, por justa causa, deixar de solicitar auxílio da autoridade pública?, constitui crime de omissão de socorro (CT, art. 304). O perigo, segundo a doutrina, é presumido. Decorre da simples inércia do motorista, não se interessando a lei pela superveniência de qualquer evento posterior ao comportamento omissivo". Por tratar-se de presunção absoluta que completa o tipo penal, ou seja, não permitindo prova em contrário, à acusação cabe somente a prova da realização do comportamento. Isto porque a lei por si só, já completa o tipo penal incriminador, presumindo que em decorrência da conduta há perigo para o bem jurídico. 12 JESUS, Damásio E. Crimes de Trânsito. Editora Saraiva. 6ª edição, 2006. Página 4. 13 JESUS, Damásio E. Crimes de Trânsito. Editora Saraiva. 6ª edição, 2006. Página 3 e 4. Por conta disso surgem inúmeras críticas na doutrina e jurisprudência de violação a princípios constitucionais segundo os quais é baseada a lei penal brasileira, tais como o princípio da lesividade, da culpabilidade e da responsabilidade penal pessoal. Luiz Flávio Gomes14 critica a adoção dessa modalidade de infração em nosso ordenamento jurídico já que "mesmo quando a conduta mostra-se inócua, em termos de ofensa ao bem jurídico protegido, de acordo com a ampla jurisprudência, impõe-se a condenação", ofendendo o princípio da lesividade, segundo o qual não há que se falar em punição quando não ocorre qualquer lesão ao bem jurídico. Além disso, para o autor, como a conduta não é completamente realizada pelo sujeito e a outra parte é completada pela presunção da lei, há violação ao princípio da culpabilidade, fundamento do moderno Direito Penal brasileiro, além da responsabilidade penal pessoal já que ninguém pode ser culpado pelo o que não fez. Em suma, tais princípios se mostram incompatíveis com a adoção de presunções legais. Crime de perigo concreto O perigo concreto é o real, quando o dano ao bem jurídico não ocorre por uma eventualidade, mas a situação de perigo efetivamente existiu. Nessa modalidade de crime o comportamento apresenta a real probabilidade de causar dano ao bem jurídico, sendo caracterizado o delito através da prova da ocorrência desse perigo. A crítica que aqui se impõe é que a dificuldade prática de provar o perigo concreto, normalmente conduz à impunidade. 14 Apud JESUS, Damásio E. Crimes de Trânsito. Editora Saraiva. 6ª edição, 2006. Página 4. CLASSIFICAÇÃO DOS CRIMES DE TRÂNSITO QUANTO AO BEM JURÍDICO TUTELADO Há divergência na doutrina quanto à classificação dos crimes de trânsito no que tange ao bem jurídico tutelado, se de dano ou de perigo concreto. Não se discute, no entanto, a possibilidade de consideração destes como crimes de perigo abstrato, pois, é entendido que estes "falecem ante o primeiro filtro de constitucionalidade15". Isto porque, não se pode presumir a existência de um fato perigoso, "a conduta é fenômeno ocorrente no plano da experiência e fato não se presume: existe ou não existe. A conduta ameaçou o bem jurídico tutelado e por isso é típica ou não o expôs a perigo e o fato é atípico. A essência do conceito de crime é a ofensa ao bem jurídico16." 15 ROESLER, Átila da Rold. Novas (e velhas) polêmicas sobre os crimes de trânsito: artigo jurídico. Teresina, ano 8, n. 250, 14 de março de 2004. Disponível em: Acesso em 27 de agosto de 2007. 16 SILVA JR, Edison Miguel. Crime de perigo no Código de Trânsito Brasileiro. Boletim IBCCrim, 76/6, março/1999. 19 Dessa forma, não se admite tal classificação na nova sistemática penal brasileira por violar o princípio da ofensividade, culpabilidade, estado de inocência, lesividade, reserva legal, tipicidade, dentre outros, que possuem assento constitucional, e por colocar em risco o próprio direito penal. No entanto, parte da doutrina classifica os crimes de trânsito como crimes de perigo, e para isso, por entender também quanto à insconstitucionalidade dos crimes de perigo abstrato definidos como aqueles que presumem o perigo, entendem que a situação de perigo é implícita no tipo e não na conduta, exigindo-se em ambos - o de perigo abstrato e concreto - a potencialidade lesiva da conduta praticada pelo agente. Dessa forma, de acordo com esse posicionamento, nos crimes de perigo sempre deve ser comprovada a possibilidade concreta de lesão, pois só aqueles comportamentos que violem bens jurídicos tutelados são passíveis de punição. Assim, para entender os crimes de trânsito como crimes de perigo, é necessário a verificação do real perigo para considerar o comportamento ofensivo e típico. A doutrina mais moderna conclui pela inconstitucionalidade dos delitos de perigo abstrato na nossa legislação devido à reforma do direito penal em 1984, que passou a ser baseado na culpabilidade como base da responsabilidade penal, princípio incompatível com presunções legais. Sendo esta a segunda corrente que classifica os crimes de trânsito em crimes de dano, lesão ou de mera conduta. Para assim entender, passemos à análise de alguns dispositivos do Código de Trânsito Brasileiro e da Constituição Federal do Brasil. O artigo 1º, §2º do Código de Trânsito prevê: "O trânsito, em condições seguras, é um direito de todos e dever dos órgãos e entidades componentes do Sistema Nacional de Trânsito, a estes cabendo, no âmbito das respectivas competências, adotar as medidas destinadas a assegurar esse direito." O artigo 28 do mesmo diploma preceitua: "O condutor deverá, a todo momento, ter domínio do seu veículo, dirigindoo com atenção e cuidados indispensáveis à segurança do trânsito." Por fim, o artigo 5º da Constituição Federal preleciona: "Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:" (grifo nosso). É possível perceber de uma análise literal dos dipositivos que há interesse coletivo de que as relações de trânsito se desenvolvam dentro de um nível de segurança. Ou seja, se um motorista ao dirigir, ultrapassa o risco tolerado, rebaixando-o, poderá responder por infração administrativa, ou crime se verificada a potencialidade lesiva da conduta. A segurança aqui deve ser entendida como o nível de segurança pública relativa ao trânsito de veículos automotores, ou seja, refere-se ao nível de bem-estar físico da população em relação à circulação de veículos, algo mais do que a segurança física de cada um. Isto porque, estamos diante de objetos jurídicos que não fazem parte da classificação tradicional, ou seja, nem todos os conceitos e institutos do Direito Penal comum podem ser aplicados livremente aos crimes automobilísticos, cabendo à doutrina, a criação de contornos específicos adequados à nossa legislação e realidade. Sendo assim, para a caracterização dos delitos de trânsito, há que se considerar a redução do nível de segurança, não se exigindo que o fato ofenda bens jurídicos individuais - embora isso possa ocorrer - tendo em vista o bem jurídico aqui tutelado. Podemos concluir, conforme o que já exposto acerca do posicionamento da segunda corrente, que os bens jurídicos sociais são na verdade lesionados, e não somente expostos ao perigo de dano. Tal afirmação é bem esclarecida por Damásio E. de Jesus17 com um exemplo: "Suponha-se o caso do motorista que dirige embriagado de forma anormal. Tomando em consideração o respeito e cuidado que devem existir nas relações de trânsito, com a simples conduta lesiona o bem 17 JESUS, Damásio E. Crimes de Trânsito. Editora Saraiva. 6ª edição, 2006. Página 22. 21 jurídico público (coletivo), causa um dano ao interesse público de que a circulação de veículos se desenvolva de acordo com as normas de segurança. A lei exige que ninguém dirija veículo de maneira irregular e perigosa. Em outras palavras, ele lesiona o interesse coletivo de que ninguém dirija veículo sob a influência de álcool, uma vez que, de acordo com a experiência, desse fato geralmente resulta danos a terceiros." No exemplo supra citado, observa-se que o agente infringe um cuidado devido e cria um risco não permitido, ou seja, ultrapassa o risco tolerado. Dessa forma, não é necessário criar teorias ou discutir quanto à aplicação da presunção de perigo ou existência de dano, do ponto de vista que, tomando-se como objeto jurídico tutelado a segurança pública, consubstanciada no interesse público, ao praticar condutas que ultrapassem o risco tolerado, sempre haverá lesão ao bem jurídico tutelado, mesmo que não haja dano físico a um bem específico. Conforme nos ensina Damásio E. de Jesus18, "a concretização da figura típica exige apenas a comprovação da conduta objetiva e subjetiva do sujeito, a par da presença de eventuais elementos objetivos, normativos e subjetivos do tipo, dispensando a demonstração de ter causado perigo concreto ou dano efetivo a interesses jurídicos individuais". ANÁLISE DOS DISPOSITIVOS REFERENTES AOS CRIMES DE EMBRIAGUEZ AO VOLANTE, RACHA, DIREÇÃO SEM HABILITAÇÃO E VELOCIDADE INCOMPATÍVEL EM LUGARES DETERMINADOS Relevante a observação trazida pelo mesmo autor19 com relação aos crimes de embriaguez ao volante e racha: "Nos arts. 306 e 308, que definem a embriaguez ao volante e o ?racha?, respectivamente, os tipos mencionam, após a descrição das condutas, ?...expondo a dano potencial a incolumidade de outrem? e ?...desde que resulte dano potencial à incolumidade pública ou privada?. Não seriam, por isso, crimes de perigo concreto? Não cremos. O ?racha? e a embriaguez ao volante, como dissemos, já são perigosos em si mesmos. Seria superfluidade do legislador exigir, além da prova dos comportamentos 18 JESUS, Damásio E. Crimes de Trânsito. Editora Saraiva. 6ª edição, 2006. Página 23. 19 JESUS, Damásio E. Crimes de Trânsito. Editora Saraiva. 6ª edição, 2006. Página 23. perigosos, a demonstração de real e efetiva situação de risco a bens jurídicos individuais como condição de existência do crime. Segundo entendemos, a parte final dos dispositivos apenas reflete a descrição típica inicial, seu espelho. Como se os tipos rezassem: ?dirigir anormalmente sob a influência do álcool, dessa maneira expondo a incolumidade pública a perigo de dano?; ?participar de racha?, desse modo causando perigo de dano à incolumidade pública (coletividade) ou privada (competidores, assistentes e transeuntes)?. O perigo, nesses delitos, é elementar do tipo, refletindo a própria potencialidade lesiva do comportamento. Trata-se de perigo coletivo, ínsito na conduta (Maria Paz Arenas Rodrigañez (Protección penal, cit., p. 148 e 149). É uma qualidade da conduta, não seu resultado". Dessa forma verifica-se, pela análise da própria lei consistente no Código de Trânsito Brasileiro, que os crimes ali previstos são, efetivamente, crimes de dano, pois rebaixam o nível de segurança exigido pela ordem jurídica. Já os crimes previstos nos artigos 309 e 311 do Código de Trânsito Brasileiro, referentes à direção sem habilitação e velocidade incompatível em lugares determinados, respectivamente, por não atentarem ao bem jurídico tutelado, qual seja, a incolumidade pública no que concerne à segurança no trânsito, não são crimes, mas ilícitos administrativos. Como conclui Damásio20, "daí a exigência da elementar ?gerando perigo de dano?": "Artigo 309 ? Dirigir veículo automotor, em via pública, sem a devida Permissão para Dirigir ou Habilitação ou, ainda, se cassado o direito de dirigir, gerando perigo de dano: Penas ? detenção, de 6 (seis) meses a 1 (um) ano, ou multa". "Artigo 311 ? Trafegar em velocidade incompatível com a segurança nas proximidades de escolas, hospitais, estações de embarque e desembarque de passageiros, logradouros estreitos, ou onde haja grande movimentação ou concentração de pessoas, gerando perigo de dano: Penas ? detenção, de 6 (seis) meses a 1 (um) ano, ou multa". 20 JESUS, Damásio E. Crimes de Trânsito. Editora Saraiva. 6ª edição, 2006. Página 24. CONSIDERAÇÕES FINAIS Diante da análise feita nesse estudo, relativa à verificação da classificação dos crimes de trânsito quanto ao bem jurídico, se de dano ou de perigo, podemos concluir tratar-se de crimes de dano, lesão ou de mera conduta. Isto porque, ao identificar o bem jurídico tutelado nos crimes de trânsito, e a partir da análise dos dispositivos legais correspondentes aos artigos 1º, §2º e 28 do Código de Trânsito Brasileiro; e o artigo 5º da Constituição Federal, verifica-se como tal a segurança da coletividade. Ou seja, encontramos nesse ponto peculiaridade da matéria referente aos crimes de trânsito, vez que, não vemos como possível a aplicação pura e simples do Código Penal comum. Dessa forma, o bem tutelado nessa esfera não consiste em bem individual, facilmente identificável, mas sim, em bem coletivo que não necessariamente demanda um dano concreto a um bem individual identificável, mas de uma forma geral à segurança de toda uma coletividade. Sendo assim, o dano é verificado toda vez que ocorrer risco não tolerável à segurança de uma coletividade. Nesses casos, poderá o infrator ou criminoso ser responsabilizado conforme sua conduta seja caracterizada como infração administrativa, ou crime se verificada a potencialidade lesiva da conduta. BIBLIOGRAFIA MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de Direito Penal. Parte Geral. Volume 1. 21ª edição, 2004. Editora Atlas. NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal comentado. Editora RT. São Paulo, 2005. 5ª edição. JESUS, Damásio E. Crimes de Trânsito. Editora Saraiva. 6ª edição, 2006. ROESLER, Átila da Rold. Novas (e velhas) polêmicas sobre os crimes de trânsito: artigo jurídico. Teresina, ano 8, n. 250, 14 de março de 2004. Disponível em: Acesso em 27 de agosto de 2007. SILVA JR, Edison Miguel. Crime de perigo no Código de Trânsito Brasileiro. Boletim IBCCrim, 76/6, março/1999. 25 BIBLIOGRAFIA LEGISLATIVA BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil (1988). Brasília: Senado Federal, 1988. BRASIL. Código de Trânsito Brasileiro. 3ª ed. Editora Saraiva, 2007. BRASIL. Código Penal Brasileiro. 3ª ed. Editora Saraiva, 2007.