A CIDADE ANTIGA – ANÁLISES E CONSIDERAÇÕES SOBRE A OBRA DE FUSTEL DE COULANGES

Diógenes de Paula e Monteiro e Kênnia Suelen da Silva[1]

    

     A história está permeada de inesgotáveis conjeturas acerca dos mistérios da natureza humana. As crenças sobre a alma e a morte sobreviveram à passagem do tempo e ao declínio das civilizações antigas. “Embora tais crenças sejam muito antigas, delas nos restaram testemunhos autênticos” (p.14). Para Coulanges, os epitáfios e rituais fúnebres de hoje são a prova disso. Tratamos o corpo sem vida, de fato, como se nele houvesse vida. Antigamente, ofereciam-se alimentos, utensílios, sacrifícios, entre outros ao falecido. As origens do sepultamento estão no pensamento primitivo de necessitar a alma repousar no corpo, e a cobertura por terra seria a forma de se fixar esta união. Caso contrário, acreditava-se que a alma errante sofreria terríveis consequências. Até mesmo punições legais chegaram a se basear nisto.

Assim, houve um endeusamento dos mortos. Como se o espírito tivesse necessidades em seu outro plano, cabendo aos viventes o dever de saná-las. Senão, poderia haver castigos advindos do mundo sobrenatural. Tal cultura vai dos povos helenos aos latinos, dentre outros mais. Fato que Coulanges define como “uma religião da morte”. Naturalmente, esses povos antigos não acreditavam na transmigração da alma para um corpo diferente, ou metempsicose.

Havia ainda o fogo sagrado, o qual adoraram gregos e romanos como um algo divino em seus altares domésticos. A casa quedaria em desgraça se a chama se consumisse, criam aqueles antigos. Era preciso mantê-la “viva”. “O fogo do lar era, pois, A Providência da família” (p.29). Presentes eram comumente dados ao deus ali “existente”. O culto ao fogo sagrado, ou deus dos lares, tem raízes bastante profundas através dos séculos, segundo o autor. Tão respeitado quanto o já citado culto aos mortos, nisso estando ambos associados.

Nos tempos primitivos havia a religião do lar. Cada família adorava o seu deus. “Estranhos” eram excluídos de quaisquer rituais, não se permitiam cultos públicos. Cerimônias ocultas eram ideais, para que não fossem profanadas por outros. A religião doméstica tinha um viés claramente paternal, força masculina. A mulher só participava por intervenção de um homem, o que se verificava nos direitos de heranças e sucessões. E, segundo Coulanges, só era levada em conta quando a cerimônia do casamento tivesse ocorrido. Casada, desligava-se inteiramente da família do pai para adotar como sua a família do marido. Como se nascesse de novo.

“O que unia os membros da família antiga era algo mais poderoso que o nascimento, o sentimento ou a força física: e esse poder se encontra na religião do lar e dos antepassados” (p.45).  A religião determinava o comportamento geral da família, desde casamentos a heranças materiais. Os deuses domésticos presidiam tais cerimônias, não os deuses olímpicos. Coulanges destaca novamente a preponderância daqueles nas “cidades antigas”.

Alguns antigos legisladores trataram de impor seus trabalhos à não-interrupção das linhagens e cultos, garantindo a continuidade das famílias. Logo, o celibato era tratado como uma desgraça, uma espécie de crime grave. O casamento tornava-se assim obrigatório; a maneira certa de se perpetuar as religiões. A não ser em casos de esterilidade feminina, que podia anular o ato. Perpetuar as tradições era tão importante que a adoção foi incentivada àqueles que não podiam ter filhos naturalmente. Eram os chamados filhos emancipados. Coulanges nos mostra que a religião se sobrepunha ao parentesco carnal, até mesmo o determinando.

     A noção de propriedade vincula-se fortemente à ideia de família, “implícita na própria religião”. Os antigos prendiam-se ao solo tal qual se agrupavam em torno do altar do fogo. Os mortos eram sepultados nesses solos familiares, de forma a se criar uma aliança eterna da família com a terra. Abdicar do solo seria abdicar da religião. Nem mesmo testamentos eram reconhecidos; poderiam conflitar com as crenças religiosas de que a terra pertence à família, não ao indivíduo. E o isolamento físico da terra vinha da necessidade de afastar estranhos, que certamente profanariam os rituais caseiros. Surgem, então, as casas. Coulanges observa a impossibilidade de uma vida comunitária, tamanha a proteção dos lares. O isolamento da família originou a moral. Ao deus, rogava-se somente em favor de si e dos seus. Não por egoísmo, mas por ser este era o prisma da moral e do afeto, um algo restrito ao seio familiar.

     O autor busca explanar a autoridade paternal dos antigos, enfatizando o papel secundário das mulheres. O homem era detentor de praticamente todos os direitos, sendo a figura máxima. E a religião em nada elevava a posição feminina, segundo Coulanges. Mas mesmo ao pai se sobrepujava o deus doméstico.

     A obra ainda tece comentários acerca da “gens”, sociedade antiga de Roma e da Grécia. De constituição aristocrática, tinha a família como base primitiva. Suas influências estavam inclusive nos nomes das pessoas.

     Por meio de cerimônias religiosas comuns, era possível que muitas famílias se unissem. Aquele homem dos primórdios estava intrinsecamente ligado à natureza, buscando explicar seus mistérios por meio de mitos. Personificando elementos naturais, criou deuses, os quais associava a sua casa. Ganhavam espaço ao lado do altar do fogo. Então, essa religião dos deuses da natureza fez com que as famílias involuntariamente entendessem que as divindades de uma fossem idênticas às da outra. Vários grupos passaram a se associar, embora respeitando os cultos individuais. Nasciam as primeiras tribos, que originariam as primeiras cidades.

     “(...) a cidade não é um agregado de indivíduos, mas uma confederação de vários grupos previamente constituídos e que ela deixa subsistir” (p.139). Havia quatro sociedades diferentes para pertencerem os antigos: a família, a fratria, a tribo e a cidade. Rituais distintos em cada uma, que se respeitavam mutuamente. Com o passar dos tempos, “cidade” tornou-se sinônimo de aliança político-religiosa. O conceito de urbe era estritamente de cunho religioso, termo que definia os santuários das cidades, os locais de culto. Sendo divinas, urbes eram construídas para serem eternas. Assim como a figura de seus fundadores, “venerados como a um Deus”.

     “Cada cidade tinha deuses que só a ela pertenciam” (p.160). Eram oriundos das religiões primitivas do fogo e das famílias. Lares, Penates, Herois, Gênios, Demônios, vários nomes para os que foram divinizados pela antiga “religião da morte”. Muitas vezes. Eram os próprios antepassados. Todo aquele que tivesse grandes feitos tornava-se um ser supremo para a posteridade. A eles se ofereciam banquetes, festas, sacrifícios. As oferendas, sempre muito bem calculadas e medidas, todo o processo muito bem detalhado, desde a cor alva das vestes ao formato do pão servido à mesa.

     Mesmo a vida pública estava sob a “influência” dos deuses. A função de sacerdote vai se tornando cada vez mais presente nas cidades antigas, sobretudo na escrita dos livros sagrados, ou anais. Que o diga na guerra; a religião infiltrava rituais nas ações dos exércitos. Hinos, bênçãos divinas, tudo de um deus havia no espírito dos antigos guerreiros.

     A religião antiga era um misto de pequenas práticas, crenças, rituais. Não era um algo racional, para se meditar. Fazendo isso, segundo Coulanges, estariam os homens questionando o poderoso mundo espiritual, os senhores divinos dos homens. Mas esses “senhores divinos” muito possuíam do comportamento humano. Poderiam trair invejar, odiar. Os próprios homens os criaram; agora deles se tornaram escravos.

     Os livros antigos contavam a história pura dos antigos. De histórias locais a feitos homéricos. Esta tarefa ficava, inicialmente a cabo dos mestres religiosos, ou sacerdotes. Daí o caráter muitas vezes exagerado e extravagante dos contos, a natureza ultrarreligiosa de quem os escrevia. Posteriormente, surgiram escritores como Heródoto, mais fieis à realidade dos fatos.

     Os sacerdotes eram tidos como reis. Fosse no lar, o pai, chefe sacerdotal. Fosse no lar público, “usava do nome de rei”. A religião da cidade também exigia um pontífice. A autoridade “real” era conferida pela própria imponência dos altares. Não bastava força bélica, era preciso “dom divino”. Afinal, os sacerdotes eram o intermédio entre homens e deuses. Realeza parte religiosa, parte política.

     “Entre gregos e romanos, assim como entre os hindus, desde o princípio a lei surgiu naturalmente como parte da religião” (p.206). Os códigos das cidades antigas ajuntavam rituais, orações, e mesmo dizeres legais. A cidadania era conferida àqueles que tomavam parte nos cultos locais. Sem isso, nenhum homem poderia receber seus direitos civis e políticos. Daí a grande diferença entre cidadão e estrangeiro.

     A pátria se tornava um valor importante. Era a terra dos pais, uma terra sagrada. Pois nela habitavam os deuses, retomando os princípios da “religião da morte”. Para Coulanges, a pátria exercia enorme influência na mente dos antigos. De forma que o exílio foi tido como um dos piores castigos já aplicados.

     “Duas cidades eram duas associações religiosas que não tinham os mesmos deuses. Quando estavam em guerra não eram apenas os homens que combatiam; os deuses tomavam também parte na luta” (p.227). Combates sangrentos davam aos vencedores das guerras entre as cidades quaisquer direitos. Podia-se tirar proveito da conquista como se bem entendesse, afinal o mérito era divino. Mas do mesmo princípio que se faz a guerra, faz-se o acordo de paz. A aliança cada vez maior entre cidade formava as federações, entidades político-religiosas comuns. E havia as colônias, mas a moldes diferentes dos modernos. Eram Estados completos e independentes do Estado colonizador. O laço que os unia era puramente religioso. O fogo sagrado e os sacerdotes eram enviados da “metrópole”, pois só assim poderia se levar a cabo a fundação da nova cidade.

     Aos antigos, não era permitida a liberdade individual. Deveriam todos servir ao Estado, onipotente, e aos deuses do Estado. Marca profunda da religião através dos tempos.

     Mas até os edifícios mais sólidos podem ter as estruturas abaladas. As crenças mais antigas foram esmorecidas pela mudança de pensamento dos homens. Luta de classes, insatisfações, questionamento de autoridades, exigências, engendram-se assim as revoluções. Apareciam os poderosos donos de terra, alicerçados em grande parte na religião. Umas poucas famílias ficaram tão poderosas na Antiguidade conhecida. Esse regime aristocrático reinou soberano nos tempos gregos e romanos. As revoluções derrubaram até as leis mais antigas e enraizadas, tais quais o direito de primogenitura e a não participação política das plebes.

     Aos poucos se instituía uma igualdade de direitos entre os homens, eliminavam-se os privilégios. Os rituais hereditários eram abolidos, os cultos não pertenciam mais a somente uma família. Pertenciam ao conjunto, ao demo, ao povo. A origem de nascimento deixou de ser essencial; inclusive sacerdotes passaram a ser eleitos periodicamente. As leis perderam muito de seu teor religioso, configuravam apenas como simples textos, pois. “Afirmam as Doze Tábuas: ‘Aquilo que os sufrágios do povo ordenaram por último, essa é a lei’” (p.333). Representando os anseios populares, esses mesmos poderiam revogá-las. A evolução social por meios revolucionários, segundo Coulanges. A única distinção entre os populares passou a ser a riqueza. Altos cargos para os ricos, serviços ditos inferiores aos pobres. Menos posses também significavam menos direitos civis e políticos.

“(...) a série de revoluções, uma vez começada, não devia mais parar. Os velhos princípios foram derrubados, e já não existiam tradições nem regras fixas. Havia o sentimento geral de impermanência das coisas, que fazia todas as instituições durarem pouco tempo” (p.350). A tirania das famílias aristocráticas era derrubada, dando lugar a uma posterior democracia. As assembleias populares detinham verdadeira soberania a partir de então.

Os conceitos de divindades evoluíram também. Transferiu-se a força divina para além dos simples cadáveres, para as forças da natureza. “Então os deuses Lares e Herois deixaram de ser adorados por quem fosse pensante” (p.377). Nasce a filosofia, que rejeita as antigas formas de governo e tenta fundar uma nova sociedade. Sócrates, Platão, dentre outros, todos explanavam os abusos na vida pública, as corrupções, buscando “purificar” o comportamento social e político de suas épocas. Ainda assim, perdurava a força da religiosidade. Os pensadores sofreram perseguições, críticas, foram acusados de negar os deuses do Estado, etc.

Coulanges buscou mostrar a viva chama da religião na história do homem. Mesmo que em alguns tempos tenha ficado em segundo plano, a influência do divino esteve sempre presente, unindo cidades e derrubando reis. Isso, claro, na Antiguidade conhecida.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

COULANGES, Fustel de. A cidade antiga. (Título original: La cité antique. Tradução: Jean Melville). 2. ed. São Paulo: Editora Martin Claret, 2007.

 



[1] Acadêmicos do curso de Direito pela Universidade Estadual de Montes Claros (UNIMONTES), em Minas Gerais.