A CARTOMANTE

(Marcelo Rissato)

Uma leve chuva caía sobre a pequena cidade de Arapongas no norte do Paraná naquela nublada tarde de julho de 1975. O sol desaparecera e gotas escorriam pelo rosto daquela mulher que percorria o centro da cidade com passos acelerados e firmes como se estivesse atrasada para algum compromisso. Um andar constante. A distância parecia aumentar a cada passada. Salomé, uma jovem de 28 anos, grávida de nove meses seguia para o Banco do Brasil ao encontro de seu pai que se encontrava com grandes problemas, contudo, ao dobrar a esquina da Rua Flamingos com a Rua Beija-Flor, avistou uma tenda com as seguintes inscrições: "Cartomante Françoise ? Vidente faz previsões para seu futuro e sorte no amor ? lê-se búzios". Salomé sentiu-se indiferente, mas foi abordada por Madame Françoise que, após observar Salomé dos pés à cabeça, pediu que a mulher entrasse em sua tenda, pois sentia que tinha coisas importantes a lhe falar. Frágil, Salomé assentiu e sem resistências, logo se viu sentada na cabana mística enquanto via a mulher iniciar o ritual de previsões. A mística jogou as cartas sobre a bancada e disse à cliente que perderia seu filho para sempre e que muito sofrimento estaria por vir em sua vida, acrescentando que ela procurasse imediatamente o pai, pois previu que ela poderia ajudá-lo naquele instante. Ao ouvir a revelação, Salomé saiu transtornada daquele lugar, caminhando sob a chuva incessante. Seguiu pelas ruas chorando muito, perdendo o controle de si mesma enquanto se dirigia ao Banco do Brasil, pois, mesmo abalada com as notícias que acabara de ouvir, estava muito preocupada com o pai.
Após a saída de Salomé, a cartomante Françoise pegou o telefone e fez uma ligação, como se avisasse alguém sobre algo. Naquele exato momento, circulavam pelas ruas de Arapongas dois bandidos atrapalhados ? Azeitona e Romano ? que saíam de um orelhão, pegando um mapa e desdobrando um folheto amassado com um plano de assalto contra o Banco do Brasil. Já em frente à agência, observaram a movimentação na rua e, em seguida, entraram disfarçadamente, misturando-se aos clientes.
Nesse instante, Salomé já estava dentro da agência e se aproximou do pai que demonstrava grande aflição com o que o gerente havia lhe contado. Fernando não aceitou a idéia de perder todo seu patrimônio para o banco e, em uma atitude desesperada, sacou uma arma, ameaçando se matar. A confusão foi enorme e, aproveitando o ensejo, Azeitona e Romano deram voz de assalto na agência. A desordem foi ainda maior e subitamente ouviu-se um estampido, Fernando havia se transformado em seu próprio algoz, dando cabo da sua vida. Os clientes se deitaram no chão com medo, enquanto os seguranças sacavam as armas e iniciaram um tiroteio. Salomé começou a sentir vertigens ao ver seu pai caído e morto ao chão. Azeitona e Romano conseguiram saquear os caixas, recolheram o dinheiro e, ao ouvirem a sirene da polícia, tomaram Salomé como refém, na tentativa de sair ilesos, e protagonizaram uma fuga cinematográfica pelas ruas de Arapongas, levando Salomé em seu carro e escondendo o dinheiro roubado no banco traseiro do veículo.
Toda polícia foi mobilizada para capturar os fugitivos e, quando os bandidos conseguiram despistar as viaturas, já estavam no município de Rolândia. Subitamente Salomé começou a sentir fortes dores, dando-se conta de que entrava em trabalho de parto. Mesmo apavorados, os bandidos fizeram o parto da mulher ao perceber que não havia outra escolha; mantê-la naquelas condições, provavelmente só os atrapalharia. Logo após o nascimento da criança, ouviram soar distante um som de sirene. Temendo uma nova perseguição, levaram consigo a criança, deixando Salomé no automóvel desfalecida sobre o banco recheado de cédulas roubadas.
Após fugirem com o filho de Salomé, Azeitona e Romano perambularam pelas ruas de Rolândia até encontrar em segurança com uma mulher misteriosa chamada Francine Desiré que os acolheu e encaminhou o bebê para uma Companhia de adoção na França.

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TEMPOS ATRÁS
Por meio da Lei nº 02 de 10 de outubro de 1947, o Governo Estadual criava o município de Arapongas, desmembrando-o de Caviúna e elevando sua sede a categoria de cidade. Com a mudança, Caviúna também era rebatizada com o nome de Rolândia, adaptação da denominação original "Roland" adotado até o ano de 1944, antes da 2ª Guerra Mundial. Na mesma data, Catarina Mantovani dava luz a uma linda menina a quem chamou de Salomé ? a quarta filha do casal, após ter gerado Luiza, Carolina e Márcia ao lado do marido Fernando.
Fernando Mantovani chegou a Arapongas por volta de 1937, sendo um dos primeiros a adquirir um lote de terras na cidade. Descendente de franceses, o homem possuía um capital considerado, com o qual implantou a Fazenda Ouro Verde e iniciou a produção de café na região, transformando-se em um dos precursores desse segmento no município, cultura que perdurou durante anos.
Durante a infância, Salomé era uma criança como outras, tinha seus sonhos e fantasias. Um deles era ser casar e ser feliz. Imaginava um lindo príncipe surgindo no horizonte montado em um cavalo branco, tomando-a pelos braços e seguindo para um castelo onde viveriam unidos para sempre. Por volta de 1965, já com seus 18 anos conheceu um rapaz ? Márcio ? um funcionário da Cafeeira "Ouro Verde", uma das propriedades de Fernando Mantovani, localizada no final da Avenida Arapongas. Fernando jamais aceitara o namoro, alegando que, por ser herdeira de um considerável patrimônio, não poderia se casar com um simples peão, como era chamado. Marcio lutava para mudar a visão de Fernando, no entanto, nada adiantava e o homem mantinha-se irredutível. Catarina compreendia o sentimento da filha, mas sabia de que nada havia ao seu alcance para fazer o marido voltar atrás. Salomé desafiava o pai, ameaçando-o fugir com o namorado caso seu romance continuasse a ser rejeitado, o que em nada adiantava.
Fernando era um dos homens mais ricos e poderosos da região, dono de muitas plantações de café, quando o produto estava no auge. Seu patrimônio crescia cada vez mais e, confiante, investiu toda a fortuna nesse segmento, acreditando ser o café a sua mina de ouro. Não se falavam em outro assunto; em todas as rodas de conversa, o "ouro verde" predominava.
O tempo passou. Chegado o ano de 1975, Salomé já havia terminado o romance com Márcio por diversas vezes, retomando o namoro logo em seguida, até que uma notícia abalou as estruturas da família. Salomé revelou que estava grávida, deixando seu pai encurralado diante da situação em que se viu obrigado a aceitar o casamento de sua caçula, após já ter esposado as demais filhas: Luiza com Armando, Carolina com Domingos e Márcia com João.
Adentrava-se já o segundo semestre de 1975 e Salomé estava prestes a parir. Depois do casamento e de todas as dificuldades enfrentadas no decorrer dos últimos dez anos, desde que conhecera Marcio, percebia que os sonhos de criança não passavam de ilusões e que a felicidade parecia estar ainda muito distante, o que não era suficiente para desanimá-la. Ainda guardava esperanças em seu coração.
Amanhecia o dia 18 de julho de 1975 no horizonte araponguense. Enquanto na capital paranaense a neve preenchia os campos com sua beleza, inundando os olhos com o esplendor da paisagem branca e úmida, o vento frio e gelado cortava todo estado. Ao norte, cada gota caída sobre as verdejantes plantações ardia como fogo sobre os cafezais. O sol brilhava e derretia a neve sobre as folhas, fazendo escorrer água gélida pelos pecíolos, anunciando as lágrimas que seriam derramadas tão logo se percebesse a extensão da tragédia. Era a sinistra geada que dizimou milhões de pés do café no norte do estado do Paraná naquele fatídico dia, causando um verdadeiro cataclismo econômico e acarretando em uma grande recessão para a região de Londrina e Maringá. Arapongas, em meio a este processo, também sofria tristemente com o acontecido. Provavelmente, muitas pessoas não tivessem se dado conta do tamanho da tragédia e do desastre social que aquele acontecimento traria. Enquanto os curitibanos comemoravam a neve, os cafeicultores do norte choravam a perda de sua principal atividade, o café. O frio era pavoroso e cinzento como o olhar de tristeza de suas vítimas.
No dia seguinte jornais da região noticiavam o luto dos proprietários dos cafezais. Muitos perderam toda a riqueza, principalmente os pequenos produtores e comerciantes locais que tiveram de se adaptar aos novos tempos que estavam chegando. Alguns mudaram de cidades, outros trocaram de ramo. Um difícil período de transição, quando muitos dos atingidos tiveram de modificar seu modo de vida e reaprender a viver, buscando novas alternativas e iniciando uma nova Era. O trigo e a soja tiveram então a sua vez.

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Fernando havia feito muitos contratos bancários sem jamais imaginar que a indústria cafeeira pudesse cair em desgraça profunda. Chamado ao Banco do Brasil supôs de imediato que precisaria regularizar sua situação. Como seus bens estavam alienados e, diante da perda total da lavoura, não teria como sanar sua dívida junto ao banco e honrar os empréstimos.
Em conversa com sua mãe, Salomé tomou conhecimento da situação delicada em que se encontrava seu pai. No trajeto de casa, foi surpreendida por uma vidente na rua que a convenceu a ouvir aquelas previsões drásticas sobre o desaparecimento de seu filho e seguiu transtornada para o Banco do Brasil, onde o pai se encontrava, conforme Catarina lhe havia dito logo cedo, e onde presenciou uma das situações mais tristes de sua vida ao assistir ao suicídio do próprio pai. As previsões da cartomante haviam se concretizado, após perder o genitor, tivera o filho roubado em meio à fuga do assalto ocorrido minutos após, na sequência dos fatos.
Em desespero, sem o pai e o filho, a mulher ainda foi golpeada terrivelmente pela maldade do marido. Ao perceber que a família de Salomé estava na mais profunda miséria, Márcio a abandonou, desaparecendo para todo o sempre sem deixar vestígios. Noites passou sem que conseguisse dormir um minuto sequer. Em uma delas, enquanto fechava com firmeza os olhos como se buscasse forças para continuar vivendo, teve lampejos de memória, luzes acendiam em sua mente mostrando-lhe cenas até então esquecidas. Reviveu o lastimável dia vivido e lembrou-se do imenso murmúrio dos bandidos guardando o dinheiro assaltado no banco traseiro de seu carro enquanto ela se contorcia de dor e sofrimento ao entrar em trabalho de parto. Levantou-se assustada e correu para a garagem, onde confirmou o que acabara de recordar. O banco do automóvel continuava guardando aquela fortuna como um baú. Pensou em devolvê-lo, no entanto, ao se dar conta de que era a única coisa que lhe restara, apropriou-se do bem decidida a recuperar o seu filho.
Chegou a retornar a casa daquela cartomante, mas, como esperado, não encontrou nada nem ninguém no assombroso local.

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DOIS ANOS DEPOIS...
Mais de dois anos depois de ser abandonada pelo esposo, Salomé ainda permanecia casada oficialmente com Márcio até que, no fim de 1977, conseguiu finalmente sua liberdade com a Lei 6.515, de 26 de dezembro de 1977 ? a Lei do Divórcio que regulava os casos de dissolução da sociedade conjugal e do casamento, seus efeitos e respectivos processos e dava outras providências referentes à separação judicial. A partir desse dia finalmente via uma luz de renascimento em sua vida de tristezas e amarguras.
Ao som do Hino Nacional executado na rádio anunciando a chegada do ano de 1978, Salomé transformou sua vida numa grande busca com o objetivo de recuperar seu filho desaparecido. Com o dinheiro do assalto, montou uma indústria de doces no parque industrial de Arapongas. Comprou um sitio e iniciou o cultivo de trigo e soja, cultura que se expandia na região após a queda do café.
Salomé mesmo mergulhada num mar de tristezas se transformara na típica mulher moderna que fazia parte de um grupo essencial para a cultura urbana, sendo uma espécie de vitrine do processo da vida social. Personagem da liberação política da mulher sem cair na rede das tentações mundanas, possuía um papel mais ativo e uma experiência mais abrangente, mas que não constituía propriamente uma liberdade, já que vivia presa aos seus ideais e não abria mão disso. Salomé representou a mulher experiente dessa época, refinada e educada com uma reação adequada às necessidades e ambições dos novos tempos, estava presente às altas rodas da sociedade e ligada à mídia televisiva e impressa.

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MUITO TEMPO DEPOIS...
Passados 28 anos, já em 2006, os negócios continuavam indo muito bem. Salomé tornara-se também a proprietária da Indústria de Móveis Sabiá na cidade de Arapongas e de uma ONG que lutava em prol de crianças desaparecidas. Após muita luta suas forças pareciam estar se esvaindo; se deixava dominar pelo cansaço e desânimo de ter realizado o maior sonho ? encontrar seu filho raptado. Embora tomada pelo abatimento, ainda permanecia lúcida o suficiente para perceber que não possuía mais condições de administrar todos os negócios sozinha. Contratou Renato, um jovem formado em administração de empresa, que se dispôs a concorrer ao cargo e, por possuir um currículo muito bem sucedido, foi o escolhido para gerenciar a Indústria de Móveis Sabiá. Em virtude da ótima administração apresentada nas Empresas Sabiá, Renato passou a ser o braço direito de Salomé também nos demais negócios do grupo Mantovani.
Azeitona e Romano circulavam ainda impunes por Arapongas e, ao passar defronte à Indústria de Móveis Sabiá, viram uma mulher elegante em um carro luxuoso adentrando o estacionamento da fábrica. Puderam reconhecer Salomé que mantinha os mesmos traços de outrora acrescidos de sulcos na pele que a idade se encarregara de lhe dar. Resolveram investigá-la, pois estavam certos de que ela tinha utilizado o dinheiro do assalto para construir aquele novo império.
Azeitona e Romano localizaram Francine em um município nas proximidades e revelaram o paradeiro de Salomé. Juntos, arquitetaram um novo e maquiavélico plano para recuperar o dinheiro que acreditavam pertencer a eles. Como sempre, estavam sob a orientação do francês Oicrám, com quem apenas Francine mantinha contato. Os dois meliantes conseguiram um emprego na produção da fábrica de Salomé e tornaram-se amigos de Renato que, embora ocupasse um cargo de alto escalão, mantinha uma postura humilde e gentil com todos os seus funcionários. Na empresa descobriram que existia um rapaz chamado Cássio. O rapaz de 31 anos trabalhava no escritório como encarregado do departamento de vendas e não sabia a origem de seus pais, dizia sempre a todos que era adotado. Azeitona e Romano, sob comando de Francine, idealizaram um plano envolvendo Cássio: chantagearam Salomé dizendo-lhe saber o paradeiro de seu filho, informação que só dariam em troca de grande parte da riqueza da mulher.
E assim foi feito, os bandidos iniciaram uma intensa perseguição a Salomé, ligações, cartas, e-mails, de todas as formas a vítima era pressionada. A cada nova mensagem, Salomé sentia-se mais abalada sem sequer poder contar a alguém que pudesse ajudá-la. Sem alternativas e completamente desestabilizada, começou a fazer uma série de retiradas volumosas da empresa, acreditando estar a um passo de realizar seu grande sonho e encerrar aquele triste episódio de sua história. Renato como administrador da empresa percebeu que Salomé estava fazendo grandes saques, o que acarretaria em perdas futuras. Tentou alertá-la, porém, sem sucesso e sem saída, tentou descobrir a razão dessas retiradas. Renato acabou descobrindo o motivo e novamente tentou um acordo com Salomé igualmente fracassado, alegando que poderiam procurar a polícia e prender os vigaristas. Apesar de grande estima tida pela mulher que havia lhe dado a oportunidade, deixou a administração das empresas.
Da França, Oicrám François ? chefe de uma organização francesa que raptava crianças para adoção ? prescreveu a Francine que os bandidos tomassem muito cuidado e que se incutissem na ONG de Salomé, pois acreditava ser o melhor meio de extrair todo seu dinheiro. A cada dia, Salomé cedia cada vez mais às extorsões dos bandidos e seu patrimônio começava a ruir.
Após transferir a soma de dinheiro exigido pelos ladrões, Salomé recebeu uma carta revelando que seu filho desaparecido era Cássio. Os quadrilheiros aproveitaram da história do rapaz que não sabia a origem de seus pais e montaram mais essa farsa. Para Salomé, uma nova e grande decepção. Ela sabia muito bem da história do rapaz Cássio e conhecia sim seus pais adotivos que o receberam ainda bebê meses antes do grande assalto, época em que Salomé ainda estava grávida e que a fazia concluir que não poderia se tratar da mesma pessoa. Agora estava quase na miséria e permanecia sem saber o destino de seu rebento.
Sem rumo, sem chão, sem esperanças. Desiludida, Salomé viu-se obrigada a procurar emprego. Caminhando pelo centro da cidade, por onde distribuía seus currículos, pôde observar uma mulher caminhando do outro lado de uma praça que lhe chamou muita atenção. A mulher falava ao celular, demonstrando satisfação; estava bem vestida e parecia ser abastada. Algo nela inquietava Salomé que resolveu aproximar-se sem ser notada para observá-la melhor. Por trás de um poste, foi inevitável ouvir a conversa da mulher e seu interlocutor:

- Oicrám, trabalho feito. Contamos sobre Cássio a Ela sem deixar pistas. E agora vamos fazer o quê com Renato? Ele é o filho verdadeiro e ainda mantém muito contato com Ela, assim pode complicar nossa vida. Se Ela descobrir tudo, vamos ter que "tirá-lo" da jogada também.

Abismada com o que acabara de ouvir, agarrou-se ao poste certa de que estava prestes a desabar com aquela notícia, enquanto ouvia o homem esbravejar ao outro lado da linha:

- Eu já te falei que eu dou as ordens. Renato é filho Dela e meu também. Não vamos fazer nada com ele por enquanto. "Quero ele" vivo entendeu?

Desligou em seguida sem admitir réplicas.
Resignada a mulher desligou o telefone e virou para se certificar de que não estava sendo seguida. Pela fresta da camuflagem, Salomé pôde encarar os olhos nebulosos daquela senhora. Nada mais se lembrava daquela face, antes encoberta por véus escuros. Apenas o olhar a havia marcado profundamente. Era ela sim, só podia ser, pensou. Instantaneamente, Salomé rememorou aqueles terríveis minutos.
O ano era 1975 quando a tal cartomante com falso sotaque francês disse-lhe as tragédias que se abateriam em sua vida, fuzilando Salomé com os mesmos olhos nebulosos e caídos que pôde rever na senhora falando ao telefone. Finalmente compreendeu: Tudo fora armado, o assalto, o rapto de seu filho, havia alguém a perseguindo esse tempo todo. Estava sendo vigiada e caçada como uma lebre.
Voltou rapidamente a si e sabia que não podia desperdiçar a oportunidade de desvendar todo o mistério. Resolveu seguir a farsante que caminhava tranqüila a sua frente. De longe, Salomé ia esquivando-se nos obstáculos da rua para não ser percebida pela vigarista. Pensou rápido e tomou uma decisão muito arriscada que poderia pôr tudo a perder. Não hesitou. Saiu em disparada pelas costas da mulher, até aproximar-se o suficiente para tomar-lhe com ira a bolsa que carregava e que continha aquele celular. Francine ficou caída no chão após o impacto e quando se refez do susto, ainda sem entender o que ocorria, viu ao longe uma senhora correndo com sua bolsa e, deu-se então conta de que havia sido assaltada, sem reconhecer Salomé.
Certa de que havia despistado a todos, Salomé, refugiada num banheiro público, devassou a bolsa de Francine e catou nas mãos o celular. Agora poderia saber quem estava comandando todo aquele massacre em sua vida. Procurou as chamadas recebidas e o discou a última ligação identificada como Oicrám até que uma voz pausada e áspera atendesse:

- O que você quer dessa vez?

Nada conseguia dizer naquele instante. Seu coração descompassou, sua pele suava com intensidade enquanto chorava silenciosamente ao reconhecer, naquelas palavras, a voz de seu ex-marido Márcio. Não foi difícil perceber que se tratava de anagramas as palavras Oicrám e Márcio, uma o contrário da outra. Lembrou-se das travessuras que o esposo fazia com os nomes das pessoas, chamando-as pelo anagrama. Ainda quando namorados, Márcio apenas a chamava nos bilhetes de Émolas ? anagrama de Salomé, pela brincadeira que o divertia e por garantia de que Fernando Mantovani não descobriria ser sua filha a destinatária das cartas, caso as interceptasse. Nada mais precisava ouvir, antes que cometesse uma loucura, desligou o telefone, saindo do local em seguida.

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Tudo fazia sentido naquele instante. Márcio havia se juntado à Francine para extorquir o dinheiro de Salomé e de sua família. O plano era seqüestrar Salomé na presença de Fernando e pedir como resgate um grande montante de dinheiro para o fazendeiro. Como houve o suicídio, Azeitona e Romano se viram obrigados a mudar de tática; assaltaram então os caixas do banco, e tomaram Salomé como refém por garantia caso fosse necessário negociar com a polícia. Ao perceber que não poderiam manter consigo o dinheiro roubado nem Salomé desmaiada, os bandidos tomaram o bebê da mulher como moeda de troca e o levaram para Francine que, sob as ordens de Márcio, o encaminhou para adoção por uma família francesa com quem podia manter contato e acompanhar o crescimento do jovem. Após a separação, sem poder usufruir da riqueza dos Mantovani, Márcio seguiu para a França, de onde passou a comandar um esquema de adoção de crianças para famílias européias no mercado negro.

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Impetuosamente, Salomé buscou encontrar Renato, agora ciente de que aquele jovem por quem sempre nutrira um sentimento de carinho era o seu tão procurado e sonhado filho. Sabia que nada poderia revelar a ele, para preservar a segurança dos dois. Renato havia assumido recentemente seu cargo no Banco do Brasil, após ter casado com Rosana. A gravidez da moça ocorreu antes mesmo de completarem três meses de casamento. Se nada mais tinha antes, Salomé poderia agora reconstruir um pedaço de sua história, por meio do filho e do futuro neto. No caminho, enquanto cruzava a avenida avistou uma casa com uma placa discreta na qual se lia: Madame Zoraide ? prevê o futuro! Da janela, uma mulher misteriosa a olhou de relance e teve o anseio de chamar Salomé a entrar, precisava contar-lhe algo que, por enquanto, apenas sabia intuitivamente. Não houve tempo, antes de esboçar qualquer aceno, Salomé dera as costas para a imagem de Zoraide. A vidente apertou as mãos uma contra a outra como se fizesse uma prece enquanto duas lágrimas escorreram por sobre a face, evaporando rapidamente, à medida que desciam pelas bochechas.
Percebendo a estranheza da situação e, após ouvir a descrição do que ocorrera com Francine, Márcio não teve dúvidas. Rapidamente, descobriu quem havia feito aquela ligação mais cedo na qual apenas pôde ouvir um choro tímido e abafado. Certo de que estavam correndo riscos, imediatamente ligou para Azeitona e Romano, dando instruções para um novo trabalho. Os mandados ouviram atentos os passos e logo saíram para fazer o seu serviço.
Salomé adentrava a agência do Banco do Brasil enquanto era observada por dois homens em um carro de vidros escuro estacionado na esquina de uma rua perpendicular. Sem perder tempo e antes que fosse tarde demais para seus objetivos, os homens desceram encapuzados e andaram apressados até chegar à agência bancária.
Visivelmente emocionada ao ver Renato, Salomé não conteve o choro que inundou a face. Sentia um turbilhão de sentimentos: alegria, carinho, saudades. Seu coração pulsara dia após dia para viver aquele momento, aquele encontro. Com espanto, Renato a observava se aproximando em sua direção; instintivamente, levantou e estendeu os braços para abraçá-la.
Trêmula, Salomé fechou os olhos e se projetou para receber aquele abraço. Os olhos mareados não se contiveram e cerraram com força como se não quisessem antecipar qualquer percepção que só a pele merecia sentir quando os corpos de mãe e filho se encontrassem. Antes de sentir o calor do corpo do próprio filho, Salomé pôde sentir um solavanco em seu tronco e, em segundos, se viu caída no chão da agência. Antes mesmo de retomar os sentidos, ouviu um forte estouro vindo de longe, tornando-se abafado quase instantaneamente.
Não pode acreditar ao ver um imenso rastro de sangue que inundou a cerâmica branca do ambiente. Percorreu-o com os olhos até enxergar a fonte daquele rio vermelho formado sob seu corpo. Era seu sangue derramado, embora não de seu corpo. Estirado à frente, Renato ainda se contorcia de dor, após ter sido atingido no peito. Salomé tocava incrédula no sangue do próprio filho que a empurrara com força quando avistou dois criminosos armados prestes a disparar. Sem forças para qualquer reação, debruçou-se sobre o corpo do jovem e desejou a morte naquele momento.
Azeitona e Romano abandonaram o carro roubado em um terreno baldio afastado da cidade, retiraram os capuzes e se entreolharam aflitos, sem imaginar como poderiam dar a notícia a Márcio de que haviam errado o alvo mais uma vez. Executaram o filho do próprio chefe, deixando a verdadeira caça viva.
Salomé não estava propriamente viva. Um homem sem sonhos é um homem morto e, certamente, o único desejo que a mulher ainda possuía acabara de ser definitivamente destruído. Enquanto arrepios de desespero corriam por entre suas veias, ela se perguntava o por quê de ter passado por tantos sofrimentos:
- E agora? Começar tudo outra vez?

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