A busca da vontade da lei diante da postura ativista do Supremo Tribunal Federal: análise da ADI nº 4.277[1]

Anderson dos Santos Guimarães e Carlos Alberto Braga Diniz Neto[2]

Thiago Vieira Mathias de Oliveira[3]

 

SUMÁRIO: Resumo; Considerações Introdutórias; 2. A dicotomia Vontade da Lei x Vontade do Legislador e os métodos tradicionais da hermenêutica jurídica; 3. O ativismo judicial e a manifestação da vontade da lei; 4. Análise da ADI 4.277 sob a perspectiva do ativismo judicial como expressão da vontade da lei; Considerações Finais; Referências.

RESUMO

O Supremo Tribunal Federal (STF) constantemente decide questões que excedem os limites democráticos do Princípio da Tripartição dos Poderes, portanto também excedem a vontade do legislador expressa no momento de criação da lei. Contudo, indiscutivelmente várias dessas decisões se justificam por inúmeras circunstancias fáticas. Além dessas, é nítida a adoção de um ideal kelseniano e jurídico-realista, sendo este: “através de uma interpretação autêntica deste tipo, pode criar-se Direito” (KELSEN, 2009, p.394). Sendo assim, as decisões ativistas do referido tribunal implicam na vontade da lei (interpretada e aplicada) e, por decorrência do ideal, no próprio Direito, fazendo com que a vontade do legislador seja algo secundário.

Palavras-chave: Vontade da lei; Vontade do legislador; Ativismo Judicial; Direito Constitucional; ADI 4.277.

  1. 1.      CONSIDERAÇÕES INTRODUTÓRIAS

O presente trabalho foi elaborado com o objetivo de mostrar a maior relevância da vontade lei frente à vontade do legislador. Objetiva, também, manifestar que, apesar da superação da dicotomia Voluntas legis x Voluntas legislatoris com a “vitória” daquela, esta não está necessariamente expurgada das reflexões acerca da aplicação do Direito – podendo ser levada em conta de forma secundária àquela.

Para tanto, foi necessário analisar no que compreender cada uma dessas voluntas e analisar os inúmeros aspectos da dicotomia supracitada. Foi necessário também tratar das noções acerca do ativismo judicial tendo em vista seu conceito, prática, críticas e lado positivo deste – além de, por óbvio, enquadrá-lo na discussão da dicotomia. Foi de suma importância trazer e analisar a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4.277, como forma de comprovar a presença, muitas vezes necessária, da postura ativista do Supremo Tribunal Federal e comprovar também que se tal postura se trata da expressão da vontade da lei em detrimento da do legislador.

A necessidade e relevância do presente trabalho surgiram por se identificar a forte presença da superposição da vontade da lei sobre a vontade do legislador em uma nova tendência do Direito Brasileiro: o ativismo judicial. Isso se justifica por ser bastante concreta a possibilidade de estarmos vivendo um novo momento constitucional dos tribunais inferiores e superiores. Possibilidade esta que vem se tornando cada vez mais real, como é o caso da ADI 4.277 que, em seu mérito, deu novo entendimento à exegese do art. 226 §3º da Constituição Federal através de um processo de mutação constitucional e tornou legal a união estável homoafetiva (e mais recentemente admite o Supremo até a conversão em casamento) – dando um exemplo de que a vontade da lei permite a adequação do Direito às necessidades sociais, provocando um sentimento de justiça.

Em suma, o resultado desejado é comprovar que a vontade da lei se apresenta como uma forma muito mais plausível aos ordenamentos jurídicos hodiernos ao passo que dá objetividade, universalidade e impessoalidade ao texto normativo e, ao mesmo tempo, possibilita a adequação do Direito ao momento e as necessidades sociais. E uma das alternativas de se alcançar toda essa “proposta” da  voluntas legis é o ativismo judicial, que já dá exemplos de que pode ser uma ferramenta capaz de proporcionar justiça sobretudo nos casos em que for silente ou obscuro o texto legal, como é o caso da ADI 4.277.

  1. 2.      A DICOTOMIA VONTADE DA LEI X VONTADE DO LEGISLADOR E OS MÉTODOS TRADICIONAIS DA HERMENÊUTICA JURÍDICA

Afirma boa parte da doutrina, assim como Lenio Luis Streck (2005, p. 100), que a discussão a respeito da dicotomia “voluntas legis versus voluntas legislatoris” está, de certa forma, ultrapassada. No entanto este assunto ainda suscita diversos debates, quando separamos as correntes subjetivistas e objetivistas e abordamos os métodos interpretativos usados na jurisprudência brasileira. A relevância da discussão encontra-se quando aparecem divergências entre as duas vontades e, de certa forma, cria-se um novo entendimento sobre uma lei que fora prolatada e entendida por um sujeito de outra forma anteriormente. Antes de tudo devemos abordar noções gerais sobre cada um dos tipos de voluntas supracitados.

Por vontade do legislador, sucintamente, entende-se a vontade do sujeito, autoridade competente responsável pela elaboração da lei, no momento de sua elaboração. O professor Tércio Sampaio (2008, p. 233) conceitua a voluntas legislatoris, considerando a ciência jurídica como saber dogmático derivado da vontade do emissor da norma, como: “uma compreensão do pensamento do legislador; portanto uma interpretação ex tunc (desde então)”. Lenio Streck (2005, p. 101) segue o mesmo pensamento. Margarida Lacombe Camargo(2005, p. 133) ainda afirma que, em defesa da vontade do legislador, “argui-se pela democracia, no sentido de se privilegiar a vontade do legislador como autêntico representante do povo”. Defende ainda, a autora, existir o contínuo embate entre os Poderes Legislativo e Judiciário, sendo o legislativo representado pela voluntas legislatoris. Portanto, a vontade do legislador é a mais adequada ao princípio constitucional da separação dos Poderes. É, portanto a vontade do indivíduo, considerando o seu próprio entendimento sobre o mundo em que está inserido, traduzido na letra da lei. No entanto, essa vontade traduz-se numa concepção subjetivista e um tanto ultrapassada, a qual limita a abrangência da operacionalidade e da interpretação do Direito, restringindo a utilização de outros métodos hermenêuticos, além do literal.

A vontade da lei traduz-se na corrente objetivista. É o entendimento posterior da vontade do legislador, ou seja, do que foi descrito na letra da lei, mas conservando a sua autonomia. Com as mudanças e evoluções sociais e das perspectivas a respeito da justiça, o Direito muda e evolui concomitantemente, tanto que tal vontade é também chamada de “espírito do povo” (FERRAZ JR., 2008, p. 232) ou “espírito da lei” (STRECK, 2005, p. 102). As leis não mais devem ser interpretadas por meio de formas ultrapassadas e exegéticas, mas sim considerando os valores e novas finalidades a que possam se objetivar. Para Tércio Sampaio (2008, p. 233), na doutrina objetivista

(...) A norma goza de um sentido próprio, determinado por fatores objetivos (o dogma é um arbitrário social), independente até certo ponto do sentido que lhe tenha querido dar o legislador, donde a concepção da interpretação como uma como uma compreensão ex nunc (desde agora, isto é, tendo em vista a situação e o momento atual de sua vigência), ressaltando-se o papel preponderante dos aspectos estruturais em que a norma ocorre e as técnicas apropriadas a sua captação (método sociológico). (FERRAZ JR., 2008, p. 232).

Tal vontade permite uma interpretação mais abrangente e aprofundada da lei, além da utilização dos diversos métodos interpretativos de Savigny. Aqui não se propõe extinguir a vontade do legislador e sua interpretação literal, mas sim utilizá-la como prefixação ou de início do processo hermenêutico interpretativo, objetivando a interpretação teleológica, a qual busca os valores contidos na sociedade em mutação e vai além da vontade do sujeito no momento em que este cria a norma. Não se exclui, da mesma forma o método sistemático, que visa uma melhor interpretação da lei inserida no ordenamento. Conclui Margarida Lacombe (2005, p. 133-134) que:

A defesa pela vontade da lei, por sua vez, abre caminho para o método de interpretação teleológico-axiológico, uma vez que a visão objetiva da lei conduz o intérprete para a busca do fim nela contido, mediante a investigação das condições sociais de seu tempo de dos valores preponderantes. (CAMARGO, 2005, p.133-134).

  1. 3.      O ATIVISMO JUDICIAL E A MANIFESTAÇÃO DA VONTADE DA LEI

Para discorrer sobre a expressão da vontade da lei sob a forma de ativismo judicial, em primeiro lugar é necessário fazer uma análise acerca deste, abordando conceito, prática, crítica, lado positivo.

O ativismo judicial traz no seu conceito a própria prática dele. Em outras palavras, este “instrumento” decorre da noção de judicialização da política – sendo assim, faz-se mister as lições de Luís Roberto Barroso, que afirma que

A judicialização, no contexto brasileiro, é um fato, uma circunstância que decorre do modelo constitucional que se adotou, e não um exercício deliberado da vontade política. Em todos os casos referidos acima, o Judiciário decidiu porque era o que lhe cabia fazer, sem alternativa. Se uma norma constitucional permite que dela se deduza uma pretansão, subjetiva ou objetiva, ao juiz cabe dela conhecer, decidindo a matéria. Já o ativismo judicial é uma atitude, a escolha de um modo específico e proativo de interpretar a Constituição, expandindo o seu sentido e alcance. (BARROSO, 2008, p. 6).

Portanto, o que se extrai das palavras do constitucionalista brasileiro é que o ativismo judicial consiste na atitude, ação e a judicialização é sua base, é o fato. Acerca daquele, Elival da Silva Ramos (RAMOS apud TESHEINER) o conceitua como “exercício da função jurisdicional para além dos limites impostos pelo próprio ordenamento ao Poder Judiciário, incumbido de fazê-lo atuar, resolvendo conflitos intersubjetivos e controvérsias de natureza normativa”. José Joaquim Gomes Canotilho, em entrevista concedida ao programa Pensamento Jurídico, no canal TV Justiça, tratou de um rápido entendimento que tem acerca da matéria asseverando que o ativismo judicial consiste numa intervenção do Poder Judiciário na concretização das políticas públicas.

Unindo os dois entendimentos, Luís Roberto Barroso discorre sobre três formas de manifestação do ativismo judicial no Brasil, quais sejam:

(i) a aplicação direta da Constituição a situações não expressamente contempladas em seu texto e independentemente de manifestação do legislador ordinário; (ii) a declaração de inconstitucionalidade de atos normativos emanados do legislador, com base em critérios menos rígidos que os de patente e ostensiva violação da Constituição; (iii) a imposição de condutas ou de abstenções ao Poder Público, notadamente em matéria de políticas públicas. (BARROSO, 2008, p. 6).

Nesse contexto, a principal crítica que se faz à prática da judicialização da política é que consiste numa afronta ao Princípio da Separação dos Poderes, que é fundante do Estado Democrático de Direito, como afirma Elival da Silva Ramos (2010, p. 83): “esse Estado submetido ao direito se tornou sinônimo de Estado constitucional, em que uma das peças-chave, inequivocamente, é o princípio da separação dos Poderes”. Contudo, Luís Roberto Barroso rebate a crítica com dois argumentos: a) o ativismo judicial “normalmente se instala em situações de retração do Poder Legislativo, de um certo deslocamento entre a classe política e a sociedade civil” (BARROSO, 2008, p.6); b) “o Judiciário está atendendo a demandas da sociedade que não puderam ser satisfeitas pelo parlamento, em temas como greve no serviço público, eliminação do nepotismo ou regras eleitorais.” (BARROSO, 2008, p.9).

Portanto, é fato que o ativismo judicial é um instrumento bastante positivo se feito de maneira adequada. E, por óbvio, que consiste na manifestação da vontade lei, pelo fato de desapegar-se da intenção primeira do legislador quando da edição da lei e buscar a melhor solução cabível tendo em vista a evolução da sociedade. Vale lembrar o entendimento já exposto aqui por Margarida Lacombe (2005, p. 133-134). Acerca da “classificação” feita por Barroso, se comprova esse desapego. A primeira “classe” consiste na aplicação direta da Carta Magna sem ter o intuito de questionar qual o entendimento do legislador ordinário, a segunda implica em métodos menos rígidos de declarações de inconstitucionalidade, por exemplo, fato este que consiste numa espécie de mudança de interpretação do texto constitucional na busca da adequação às demandas sociais (caso da ADI nº 4.277) e a terceira classe corresponde ao fato de decisões judiciais que impõem obrigações de fazer ou não fazer, por exemplo, ao Estado, dando um entendimento diferente daquele estabelecido pelo Poder Legislativo e Executivo com intuito de fazer valer as garantias fundamentais do ser humano – caso da judicialização da saúde.Portanto, inequivocamente, o ativismo judicial, trajado seja de que forma for, consiste na manifestação da vontade da lei e esta é muito mais plausível aos ordenamentos jurídicos hodiernos que a voluntas legislatoris.

  1. 4.      ANÁLISE DA ADI Nº 4.277 SOB A PERSPECTIVA DO ATIVISMO JUDICIAL COMO EXPRESSÃO DA VONTADE DA LEI

Para exemplificar a atuação ativista do Poder Judiciário e, por conseguinte, o acerto em fazer uso da vontade da lei, faz-se mister a análise da recente decisão do Supremo Tribunal Federal na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4.277.

Não cabe a este trabalho discutir o mérito da causa, o que é relevante aqui é manifestar o acerto do STF em julgar a causa da forma que o fez. Sobre isso, é importante dizer que tal decisão tornou legal a união estável entre pessoas do mesmo sexo. Para isso, a Suprema Corte deu novo entendimento ao art. 1723 do Código Civil e ao ar. 226 §3º da Constituição Federal.

A nova interpretação do conteúdo dos dispositivos supra (que muito se assemelham) consiste na mudança de entendimento da expressão “união estável entre o homem e a mulher” – mudança esta que passa até pelo conceito de família. Passa-se, portanto, a entender tal expressão como “união estável entre duas pessoas”. O que se tem é uma espécie de mutação do texto legal ao passo que não se muda a exegese da lei, mas transforma-se seu entendimento – transformação esta que foi feita pelo Judiciário, portanto, trata-se de ativismo judicial, enquadrado na segunda classe proposta por Barroso. Nada mais é do que uma perfeita manifestação da vontade da lei, por se tratar de uma adequação do Direito às demandas da sociedade atual, em detrimento do que pensava o legislador quando da edição dos dispositivos. E não só nesse quesito se identifica tal manifestação, mas quando faz-se uma leitura sistemática da Carta da República percebe-se, como traz a ADI, que não há correspondência entre o §3º do art. 226, CF e os Direitos Fundamentais elencados no art. 5º e art. 3º da mesma – princípio da igualdade (art. 5º caput) e princípio da proibição de discriminação (art. 3º, IV) entre outros (STF. ADI nº 4.277). Método sistemático que é característica da voluntas legis.

  1. 5.      CONSIDERÇÕES FINAIS

O Supremo Tribunal Federal, ao exercer uma postura ativista em relação à ADI nº 4.277, precisa necessariamente mudar o que está escrito na letra da lei. Através do processo de mutação constitucional, os aplicadores do Direito interpretam a norma, de forma a atribuí-la um entendimento mais atualizado e realizam um processo de adaptação da legislação às necessidades do mundo hodierno, atendendo aos princípios constitucionais básicos da Constituição Federal. No caso da ADI supracitada, o STF possibilitou uma compreensão contemporânea da união estável, admitindo que casais homossexuais também a constituíssem.

Entendemos que a vontade da lei deve sempre prevalecer sobre a vontade do legislador, mas sem excluí-la. A interpretação literal servirá sempre de base para a interpretação da lei, admitindo em seguida a interpretação teleológica/axiológica. Devemos admitir que a criação e a aplicação do Direito, sendo ambas realizadas concomitantemente pelo Poder Judiciário, não ferem o princípio da Tripartição dos Poderes. O ativismo, portanto, promove maior clareza e operacionalidade ao Direito e à Justiça e, diversas vezes, atua quando o Poder Legislativo é omisso.

 

REFERÊNCIAS

 

BRASIL. Código Civil. 10 de janeiro de 2002. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2011.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. Organização do texto: Juarez de Oliveira. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2011.

BARROSO, Luís Roberto. Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática, 2008,p. 6-10. Disponível em: < http://www.direitofranca.br/direitonovo/FKCEimagens/file/ArtigoBarroso_para_Selecao.pdf>. Acesso em: 28 out. 2011.

CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Judicialização da política. Brasília: TV Justiça. Pensamento Jurídico. Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=59bPJNJ-HIU>. Acesso em 28 out. 2011.

FERRAZ JR, Tércio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito: técnica, decisão e dominação. 6. ed. São Paulo: Atlas, 2008.

HANS, Kelsen. Teoria Pura do Direito. 8. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2009.

CAMARGO, Margarida Maria Lacombe. Hermenêutica e Argumentação: uma contribuição ao estudo do Direito. 3ª edição. Rio de Janeiro: Renovar.

RAMOS, Elival da Silva. Parâmetros Dogmáticos do Ativismo Judicial em Matéria Constitucional. São Paulo: USP, 2009.

STF. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4.277.

STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) Crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. 6. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005.

TESHEINER, José Maria. De Elival da Silva Ramos “Ativismo Judicial – Parâmetros Dogmáticos”, 2010. Disponível em: < http://processoscoletivos.net/ve_ponto.asp?id=28>. Acesso em: 30 out. 2011.



[1]  Paper apresentado à disciplina Hermenêutica, Lógica e Argumentação Jurídicas, da Unidade de Ensino Superior Dom Bosco – UNDB;

[2]  Alunos do 4º período noturno, da UNDB;

[3]  Professor, orientador.