Antigamente, muito antigamente, o mundo era uma vastidão só, tudo verde, muito verde, cheio de florestas e campos e rios e lagos e morros e vales. Havia uma harmonia só e nada e ninguém para incomodar. Também só havia burros. Burros e bestas. Todos viviam bem. Havia capim pra todo lado e tudo muito verde. Na verdade a vida era um verdadeiro paraíso, um céu.

Os burros foram aumentando cada vez mais, era burro para todo lado. Nenhum trabalhava. O tempo era só para comer, passear e reproduzir.

Com aquela vida tranqüila, cheia de paz e felicidade, pacata, é claro, os quadrúpedes foram se enjoando. Nada de diferente acontecia na vida deles e eles queriam mudar de situação. Reuniram, então, todos os líderes da comunidade e passaram a debater entre si, tentando encontrar um meio de mudar de vida. Após dias e dias de discussão, resolveram convocar uma reunião geral.

Um burrão velho presidia a reunião. No palanque estavam também alguns representantes dos burros e das bestas. Uns mais velhos, outros mais jovens, de modo que todos estavam bem representados. E olha que representante de burro representa mesmo seus súditos. Tanto é que eles se abdicaram de seus salários de capim a que se faziam jus. Comiam apenas de seus salários de burros. E então o burrão velho começou a discussão:

- Minhas prezadas bestas e meus caros burros: alimentados pelas idéias de muitos membros da comunidade, resolvemos convocar esta assembléia para se chegar a um consenso só. É bem verdade que a nossa vida é boa, muito boa, pois temos casas para morar, muito capim para comer, fontes de água pura, bestas não nos faltam, ninguém para nos incomodar, nem fome, nem guerra, nem peste, nem escravidão. Não temos o que reclamar. Muitos, porém acham que esta vida é por demais monótona e querem uma mudança. Eu estou plenamente de acordo com os líderes de nossa comunidade. A vida precisa de variações de vez em quando, do contrário o tempo se torna por demais longo. Variações como estas árvores, por exemplo: vejam como elas se modificam rapidamente, nascem pequenas e se tornam belas e frondosas. Suas copas estão lá no alto de onde se pode observar a imensidão do pasto. Vejam os pássaros como são lindos, possuem as mais lindas penas, cantam as mais belas canções, voam para o mais alto do céu, alimentos não faltam. E nós? Já observaram como somos? Em primeiro lugar temos orelhas muito grandes.

Tanto os burros como as bestas passaram as patas pelas orelhas e só agora acharam estranho ter um troço tão grande daqueles na cabeça. Que coisa horrível! É bem verdade que tinham ótimas qualidades, pois espantavam os mosquitos que sentavam em suas cabeças, mas eram muito grandes.

E continuou o "sábio" líder da comunidade.

- Já repararam nas nossas cores? As mais horríveis e ainda por cima temos pêlos demais.

Só se via burros e bestas passando as patas pelo corpo. Aquilo era terrível, pêlos pra todo lado e cores péssimas.

Mas o líder continuou o discurso.

- Também relinchamos em vez de sorrirmos e além do mais temos quatro patas quando devíamos ter só duas. Isto é um fato tenebroso. Como é que vamos comer as bananas madurinhas do cacho se não podemos pegá-las com tantas patas?

Mais uma vez os burros e as bestas mexeram com as patas. Realmente era uma coisa horripilante. Para que quatro patas se duas bastavam? O burrão velho estava "cheio de razões". Era preciso uma mudança radical na comunidade.

O burrão apresentava outras razões para uma reforma geral.

- Temos uma coisa pior ainda: uma barriga de burro grande demais. Para matar a nossa fome precisamos comer dez quilos de capim por dia. Por que não somos como os pássaros que comem apenas alguns bichinhos de vez em quando? Isto, porém, não é tudo. Temos coisa pior, muito pior. Uma coisa que só nós burros temos. As árvores e os pássaros não possuem esta coisa feia. Os pássaros possuem, mas é coberto de penas e ninguém percebe. Mas em nós não. A coisa é feia. Uma coisa que envergonha toda a nossa raça: o rabo.

Foi um ah... geral na comunidade. Só agora viram aquela coisa feia. Já pensou andar de quatro com aquela coisa horrível o tempo todo? Era uma vergonha. O pior é que todos tinham, do contrário seria uma gozação geral. Como todos tinham, ninguém se arriscou a rir do rabo do outro.

O burrão velho continuou:

- Sabemos bem que o rabo nos tem uma serventia enorme: ele serve para nos abanar nos tempos quentes, para nos enxugar quando chove, para espantar os mosquitos quando nos picam, mas é muito feio esta coisa entre nossas pernas. E assim poderíamos enumerar vários outros defeitos como: um focinho grande demais, uma boca enorme, andar só de cabeça baixa e outras. Que acham vocês? Devemos continuar assim ou mudarmos em alguns aspectos?

O coro foi geral: mudança já, mudança já. Não há mais cabimento andarmos assim com orelhas grandes, focinho enorme, barriga exagerada, quatro patas e o pior, de rabo.

A assembléia foi dividida em grupos diversos. Cada grupo apresentou o que queria que mudasse e o velho burro apresentou, depois de muita análise o estudo, o veredicto final.

- Pois bem, aqui está o que realmente queremos: orelhas bem pequenas, andar apenas com as duas patas traseiras, as dianteiras servirão para pegarmos bananas dos cachos, bocas bem pequenas, ficar totalmente sem pêlos, barriga curtinha, rabo nem em sonho.

A assembléia aprovou as mudanças por unanimidade. Ninguém queria ficar ultrapassado. O progresso teria que vir imediatamente.

Já que o veredicto foi aceito unanimemente, puseram em ação todas as mudanças. Foi uma burrada só.