A AULA DE PIANO

 

 

Estava ali, sentada, aguardando o professor de piano na sala, que na verdade era um dos quartos do apartamento dele, que nem era bem um professor e que morava sozinho. Ele, o professor, era um jovem estudante de dezenove anos que entendia bem do assunto do interesse dela: o piano.

 

Ela sempre admirou a sonoridade suave e requintada de um piano. Para ela aquele era um instrumento superior a qualquer outro. Ela contemplava o dedilhar por sobre as teclas daquele instrumento musical, imaginando que as mãos habilidosas de um pianista poderiam ser deliciosamente úteis. Era esse um pensamento secreto que não poderia revelar nem a si mesma.

 

Ali estava uma jovem senhora, beirando os quarenta anos, bela por natureza e bem-educada desde berço. Sabia bem quatro línguas: o português (sua língua-mãe) o inglês (a língua necessária), o alemão (que a atraía pela brutalidade) e o francês (a que ela mais gostava). Sua pele alva, cabelos lisos e castanhos, e seus traços delicados faziam-lhe parecer mais jovem, quase uma boneca de porcelana com lábios em forma de coração. A tão requintada senhora não tinha qualquer profissão. Divorciada, era mãe de um casal de filhos aos quais se dedicou com exclusividade durante toda a vida. Sempre sonhou em incentivar os rebentos a adentrarem para o campo das artes. Mas a delicadeza artística não atraía a nenhum deles. Desistiu de insistir e deixou que eles optassem por seguir os caminhos que melhor lhes aprouvessem.

 

Escolheu o piano para si. Afinal, os filhos já estavam bem criados. Eram jovens, formados e cultos. Estavam crescidos. Na verdade, o seu filho mais moço tinha a mesma idade daquele que era para ela o professor de piano. Ele, o professor, poderia ser meu filho, pensou a dama.

 

O quarto, que era a sala de aula, era pequeno, de uns cinco metros quadrados no máximo. Era arejado e confortável. As paredes eram em tom de amarelo, o que lhe transmitia tranqüilidade. Havia uma janela, de onde ela podia ver prédios e mais prédios vizinhos daquele bairro de classe média. Abaixo da janela, havia uma planta de uns oitenta centímetros em um vaso escuro no chão. Era linda a planta. Quis saber de qual espécie era ela e sabia que seria essa a primeira pergunta que faria ao professor de piano. Nos cantos da sala de aula, uma mesa de estudos e, finalmente, o piano, lindo, mágico e soberano.

 

O professor adentrou a sala com o material da aula. Jovem, alto, vistoso, calmo, de nome russo, falava com propriedade sobre a teoria musical. Ela sentia-se na obrigação de entender toda aquela simbologia, de forma que estaria satisfeita se o professor a considerasse uma aluna aplicada. Estar ali, naquela aula, deixava a sua alma relaxada.

 

Que espécie de planta tão bela seria essa? Perguntou, em tempo, a senhora ao rapaz. Ele riu e respondeu: Não sei a espécie, mas sei que já está morta há muito tempo! Eles riram baixinho. Ela concluiu que havia sim uma beleza particular e atrativa na morte. A planta ficou mais bela que em vida, pois ao morrer assumiu uma coloração terrosa, suas folhas pareciam dormir como em um outono permanente. Ela quis a planta para si, mas não ousou pedi-la. Apenas contemplou-a.

 

Durante a aula, algumas vezes devaneou em pensamentos. Os olhos do professor de piano a atraíam os seus. Ao se encontrarem, um ímã, um pequeno choque como que elétrico. Talvez algo que se pudesse chamar de “química”, e ela finalmente entendia com que sentido esse termo era usado entre os jovens. Mas ela não se atreveria a pensar em qualquer tipo de química que porventura pudesse existir entre ela, senhora, mãe de família, e aquele jovem, solteiro, quase adolescente, que ainda aprenderia a viver.

 

A aula continuou. O pentagrama, o dó, ré, mi, fá, sol, lá, si, e o si, lá, sol, fá, mi, ré, dó, além da clave de sol (que ela desenhou caprichosamente, mas que o professor considerou “estranha”) e a clave de fá. Seus esforços para absorver as teorias foram proveitosamente esgotados após uma hora de aula teórica. Ouviu dos lábios do professor que era ela uma aluna perspicaz, o que a levou a um orgulho intenso em sua alma, uma massagem no ego, trazendo-lhe de volta à idade daquele que lhe passava a lição. Sim, agora ela se via como uma quase adolescente e, por um instante, esqueceu de sua condição maternal e quase senil.

 

Passaram à aula prática. Ela teve o primeiro contato com aquele instrumento enigmático. O piano. Era lindo, belo, escuro, envernizado, hipnotizante... Suas cinqüenta e oito teclas, quando bem exploradas, digo, quando tocadas nos locais e nos tempos corretos, poderiam levar alguém ao êxtase ou à morte, sempre considerou. Dedilhou alguma coisa aleatoriamente. A postura perfeita, pés bem apoiados ao chão. Precisava treinar a coordenação motora dos dedos. Sim, faria isso. Treinaria durante horas com as mãos sobre uma mesa, elevando cada dedo individualmente, já que o seu professor havia contado que uma jovem vencedora de um musical importante treinara arduamente em uma simples mesa. Claro que ela também treinaria. Ganhar um concurso certamente não era um objetivo seu. Mas dar o melhor de si, sim.

 

O tempo passou inescrupulosamente. Em sendo avisada do término daquela aula, entristeceu. Queria ficar ali durante todo o dia. Gentilmente, pediu que o professor tocasse algo para ela. Ela queria sentir a arte em suas veias. Claro que ele tocaria. O que mais um artista poderia aprecia, que não uma platéia sedenta por sua arte?

 

Começou com a nona sinfonia de Beethoven. Tan nan nan nan nan nam, panan nan nan nan, pan, nan, nan, nan nan... Uma tristeza cobriu-lhe inteira na medida em que aquela música inebriava-lhe a alma. Era puro sentimento o dedilhar do pianista. E o sentimento era crescente, magnífico, palpável. Impossível conter as próprias lágrimas, enquanto se imaginava em uma bela bailarina valsando em uma caixinha de músicas. De olhos fechados, o pianista apenas podia se sentir como sendo ele mesmo a música, entrando através dos poros da mulher sem se dar conta disso. Ela, aquela altura, estava em transe. O tempo havia parado. O universo era só dela e daquele som que saia de um piano. Ao final da sinfonia, um aplauso individual, um enxugar de lágrimas, uma tristeza-alegria. Um paradoxo formal.

 

Antes que ela se levantasse e pudesse se despedir, o professor pediu que ela o ouvisse tocar Mozart. Estou com vontade de tocar Mozart, disse ele animando-se. Ela foi tomada de suaves ondas de alegria. Continuou sentada com um doce sorriso. Ainda em transe, sentiu relaxar todos os seus músculos. Tirou as sandálias para saborear ainda mais confortavelmente aquela obra-prima.

 

Sonata de Mozart. Uma nova vibração. Uma alegria incontrolável era derramada em jorro e quase a estava afogando. Não se conteve. Enquanto o professor, concentrado, olhos cerrados, desenvolvia a partitura, ela desabotoou sua blusa. Levantou-se. Que força! Cada nota, cada arranjo... Que poder! O professor era a própria sonata, que a envolvia e ela então dançava com ele, em voltas por todo o quarto. Nada disso podia ser percebido pelo pianista em sua atuação quase mediúnica. A mulher girava e rodopiava, sorrindo, sem qualquer tipo de controle sobre si mesma. Apenas se permitia sentir. Mozart, ah Mozart... Sabia que estava agora apaixonada pelo gênio compositor. Foi à janela e mostrou os seios aos transeuntes em uma alegria quase infantil, se não fosse o caráter sensual daquele gesto. Voltou ao centro da sala. Deu voltas e voltas com a saia erguida pelo vento. Soltou os cabelos, antes cuidadosamente organizados em um coque comportado. Mas aquela música continuava tomando o seu juízo. E soltar os cabelos, abrir os botões, tirar as sandálias, levantar a saia godê não foi suficiente. Ela tirou totalmente aquelas amarras. Não poderia haver roupas, as amarras, dentro de um espaço celeste tão cheio de alegria. Ela era um anjo e anjos andavam despidos. Ela sentia suas asas, voava, ia à janela, acenava, sorria... E o pianista, concentrado, nada percebia.

 

Até que, finalmente, a nota final. O mundo volta ao normal. Vida real. Ele termina, ainda com olhos fechados, dá um leve suspiro. Ao virar-se para aquela dama, é surpreendido com um beijo ardente e molhado da aluna despida. Agora os olhos do pianista estavam arregalados. E os dela, fechados, para melhor sentir o sabor daquele professor que lhe fez chegar ao auge com suas mãos apenas e somente ao teclado de um piano. Ela teve um orgasmo, a própria efervescência de sentimentos ali manifesta fisicamente. Abriu os olhos, viu o rapaz. Contida, vestiu-se lentamente enquanto ele a assistia, ainda sem entender aquele cenário insólito. De cabelos soltos, ela beija novamente os lábios do rapaz, com uma suavidade cintilante e diz um simples e natural “Até a próxima aula, Professor”.

 

Ele pisca. Ela vai embora.

 

Renata

26/03/2010