INTRODUÇÃO

 

As primeiras impressões ao estudarmos Michel Foucault são de extrema confusão, especialmente pela fragmentação de sua obra. Para trabalharmos determinado tema abordado por ele temos que consultar mais de um texto, o que torna, do ponto de vista pedagógico, complicada a sua compreensão. Sobre o tema da Governamentalidade não foi diferente, haja vista que o ponto de partida foi o capítulo XVII do livro Microfísica do Poder que tem por título o tema em questão, passando pelo capítulo XII onde ele trata dos temas Soberania e Disciplina, para, finalmente encontrarmos na conferência de 17 de Janeiro de 1979, no livro Nascimento da biopolítica, o questionamento nevrálgico para nosso trabalho: qual o papel do Direito Público dentro do Estado Mínimo?

Nesse sentido o nosso trabalho tratará primeiramente dessa evolução da arte da Governamentalidade do absolutismo ao Estado Liberal; em seguida trataremos dessa transição da soberania das mãos do monarca para a burguesia enquanto fator real de poder e as implicações desse novo momento da soberania especialmente no que tange ao papel do Direito; Por fim, situando o leitor sobre o Estado Liberal o desafio que se apresenta ao Direito diante da força reguladora do Mercado.

1 DA GOVERNAMENTALIDADE

 

Foucault trata da evolução da Arte de Governar tendo como referencial teórico o livro O Príncipe, de Nicolau Maquiavel bem como a literatura anti-Maquiavel, dando destaque para Guillaume de La Perrière e a La MotheLe Vayer. Antes o monarca era proprietário da terra e das riquezas que lhe eram passadas por herança, sob a alegação do poder soberano investido sobre ele. O conceito de Soberania, portanto, está ligado à legitimação do direito de propriedade do Monarca. As “dicas” dadas por Maquiavel são a respeito de como esse Monarca conservará sua herança, ou seja, como ele irá administrar seus bens.

Pois bem, segundo Foucault, a relação entre o príncipe e seu principado (em Maquiavel) é caracterizada pela: singularidade, exterioridade e transcendência; pois “recebe o seu principado por herança, por aquisição, por conquista, mas não faz parte dele, lhe é exterior; os laços que o unem ao principado são de violência, de tradição, ..., puramente sintéticos, sem ligação fundamental, essencial, natural e jurídica (2004, p.279). Por isso, essa relação ganha uma espécie de corolário, por sua fragilidade, podendo ser ameaçada exteriormente por outros inimigos e internamente pelo risco de não obter a obediência dos súditos. Assim, Maquiavel propõe, como entendimento de arte de governar, uma espécie de manual de boas práticas para que o príncipe possa manter a posse de seu território. Nesse sentido, o que se apresenta entre príncipe e principado é uma relação de propriedade e não de representação.

Já La Perriére (apud Foucault, 2004, p.280) diz que a arte de governar é uma prática múltipla, que não se localiza apenas na relação príncipe e principado, mas possui outras modalidades como o pai que governa a família, o superior do convento, o pedagogo e o professor em relação à criança e ao discípulo. La Mothe Le Vayer (apud Foucault, 2004, p. 280) define três formas de governo: o governo de si mesmo, no campo da moral; a arte de governar adequadamente uma família, que diz respeito à economia (oikos); e a ciência do bem governar o Estado, que diz respeito à política.

Nesse sentido, as teorias da arte de governar estabelecem uma continuidade, segundo Foucault, ascendente e descendente: ascendente no sentido de ensinar àquele que quer governar o Estado deverá, antes, saber se governar, saber governar sua família , seus bens, seu patrimônio; e descendente fazendo o caminho inverso. Mas observando que a família, a economia é papel central nas duas formas.

Dentro desse contexto Foucault esmiúça a evolução dessa arte de Governar, o sentido familiar de administrar bens, economia no sentido grego (Oikos) de administração da casa e à medida que a burguesia se firma como um fator real de poder[1] e os ideais iluministas se difundem, esse conceito de economia evolui para o de Economia Política e se firma como forma de reger a sociedade. Agora a regra é administrar não só as riquezas, mas as pessoas.

Entra em cena a questão da disciplina que se contrapõe à soberania do monarca. Nesse capítulo Foucault contextualiza quatro papéis da teoria jurídico-política da soberania. Antes a soberania, centralizada no monarca, é sinônimo de dominação, e dominação em várias formas e o Direito opera como discurso de legitimação a aparelhamento dessa dominação. A partir do momento em que a burguesia assume a titularidade do poder soberano, passa a exercer a dominação não sobre as pessoas, mas sobre as instituições disciplinadoras. Contrariamente à forma como o Monarca exercia seu poder soberano que era também sobre os indivíduos. Assim, ressalta a separação entre soberania e disciplina.

A arte de Governar que se instaura em meados do século XVIII caracteriza-se essencialmente pela instauração de mecanismos internos, numerosos e complexos, não para assegurar o crescimento do Estado em força, riqueza e poder, mas para limitar do interior o exercício do poder de governar. Essa arte serve para o desenvolvimento e aperfeiçoamento do Estado. (FOUCAULT, 2008). O Mercado, em toda a sua complexidade, passa a ser fonte de verdade na medida em que é reflexo da arte de governar, ou seja, se o Mercado está bem, se as pessoas podem consumir produtos de qualidade a preços justos e se os vendedores conseguem vender, o Governo vai bem. “O comportamento do Mercado é que vai comandar, ditar, prescrever os mecanismos jurisdicionais ou a essência de mecanismos jurisdicionais sobre os quais deverá se articular” (FOUCAULT, 2008, p. 45).

Antes, nos séculos XVI e XVII, sob regime da razão do Estado, o Mercado, pela prática do comércio (mercantilismo) era instrumento da força do Estado, pois o objetivo da utilização do comércio era a acumulação, o Rei era dono de tudo, toda a atividade comercial era voltada para o fortalecimento do Estado absoluto. Nesse regime de razão do estado a governamentalidade não tinha fim, era ilimitada. Essa era característica do que Foucault chamou de Estado polícia. Esse estado é um governo que se confunde com a administração, um governo que inteiramente administrativo e uma administração que tem para si, atrás de si, o peso integral de uma governamentalidade (FOUCAULT, 2008, p. 51).

Nesse sentido, o filósofo francês buscou mostrar não um limite para essa governamentalidade do soberano, mas uma espécie de contrapeso com instituições jurídicas e discursos jurídicos centrados em saber quais os limites do poder do soberano e como deveria ser exercido esse poder.

Pois bem, diante da nova governamentalidade, a lógica do Estado liberal, que tem um limite interno, o Mercado determina técnicas e táticas de Governo. Nesse sentido, Foucault elenca alguns questionamentos: como o direito vai atuar, se fazer valer, sem “sufocar”, engessar essa nova forma de governamentalidade? Se há uma Economia Política regendo o Estado, o que acontece com o Direito Público? O que o Direito pode fazer para regular o exercício do poder público?

Com efeito, essa questões serão abordadas a seguir.

2 O PAPEL DO DIREITO PÚBLICO NO ESTADO MÍNIMO SEGUNDO FOUCAULT

Diante dos questionamentos postos ao final do capítulo anterior, Foucault prevê duas soluções: a primeira ele chama de via axiomática, ou via rousseauniana que consiste em partir dos direitos do homem para chegar à delimitação da governamnetalidade, passando pela constituição do soberano. Essa é a via também chamada de revolucionária. Os direitos individuais primeiro, por conseguinte, no que diz respeito ao atendimento a esses direitos, o direito da coletividade, levando-se em consideração o poder da soberania. Ou seja, direitos individuais devem ser protegidos em detrimento aos direitos do próprio Estado.

A outra via parte da prática governamental em função dos limites de fato que podem ser postos a essa governamentalidade. Foucault diz que esses limites de fato podem vir da história, da tradição, de um estado de coisas historicamente determinados. Mas também são limites desejáveis em função do objetivo da Governamentalidade, dos objetos com que ela lida, dos recursos do país, sua população, sua economia, etc. E deduzir a partir daí, em que seria contraditório, ou absurdo, o governo mexer. Assim, os limites da competência do Governo seguiriam um critério de utilidade, no que é útil e no que é inútil mexer (FOUCAULT, 2008,p. 55). O utilitarismo passa a ser uma tecnologia do governo, assim como o direito público era, na época da razão do Estado, a forma de reflexão ou, se quiserem, a tecnologia jurídica com a qual se procurava limitar a linha de tendência indefinida da razão do Estado.

Destarte, na via axiomática a lei vai ser a expressão de uma vontade coletiva que manifesta a parte do direito que os indivíduos aceitaram ceder e a parte que eles querem reservar. Enquanto na via utilitarista a lei é vista como uma transação que colocará, de um lado o poder público e de outro a independência dos indivíduos. Além disso, a forma de ver e perceber a liberdade são diferentes também, pois na via axiomática tem-se uma concepção jurídica, na qual todos têm liberdade e cedem ou não uma parte dela ao Estado em favor da coletiva. Já na via utilitarista a liberdade será concebida como a independência dos governados em relação aos governantes (FOUCAULT, 2008, p. 57). No entanto ele não diz que são vias excludentes, mas apenas heterogêneas e que é possível ter uma visão que ele chama de estratégica para usar o que cada uma tem de melhor.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS.

A problemática levantada por Foucault ao tratar do tema Governamentalidade no decorrer da Idade Moderna é a de estabelecer a relação entre segurança, população e governo, ou seja, levanta a discussão sobre como ser governado, por quem, até que ponto, com qual objetivo, com que método, etc.. De forma difusa trata como o papel do Direito Público muda ao longo dessa “evolução” do Estado Absoluto ao Estado Liberal (Mínimo). Inicialmente como instrumento de dominação, legitimação do soberano, da razão de Estado. Depois, um período de crise, onde o Mercado toma as rédeas da sociedade, fundamentado nos discursos liberalistas, para em seguida propor duas saídas distintas e não excludentes, mas possivelmente complementares para o papel do Direito Público a partir das transformações sociais e da conseqüente forma de governar. Foucault, assim, contribui para o direito no sentido de pensá-lo não de forma positiva, única e exclusivamente, mas atrelado a um contexto, político, social e econômico.


REFERÊNCIAS

FOUCAULT. Michel. Microfísica do poder. 19ª ed. Graal, São Paulo, 2004;

___________. Michel. Nascimento da Biopolítica. Martins Fontes, São Paulo, 2008;

___________.Michel. Segurança, Território, População. Martins Fontes, São Paulo, 2008;

LASSALLE, Ferdinand. A essência da Constituição. 7ª ed. Lumen Juris, Rio de Janeiro, 2007.



[1]Lassalle, A essência da Constituição