A aquisição da propriedade por usucapião 

André Luís Lima de Mesquita 

RESUMO 

A usucapião constitui processo de condução da situação fática de posse estendida cronologicamente a status de relação jurisdicionalizada de uso, gozo e disposição da coisa, em atenção às diretrizes de asseguração dos benefícios inerentes à posse no que implique estabilidade da propriedade privada – com a adequada declaração do título possessório, que se pretenda apresentar despojado de vícios ou hipóteses de suspeição – e atendimento da sua função social. São espécies propostas à aquisição imobiliária a usucapião ordinária, a extraordinária e a especial. Também será objeto de análise a usucapião da propriedade móvel. São pressupostos da aquisição por usucapião aqui estudados a disponibilidade da coisa, a intenção de domínio sobre ela, a posse mansa, pacífica, justa, duradoura e contínua – ressalve-se a posse sucessiva – e, em regra, a boa fé e o justo título da posse. Atendidos os referidos pressupostos, é possível ação de usucapião, a ser neste trabalho estudado seu cabimento. 

Palavras-chave: Direito. Civil. Coisas. Propriedade. Posse. Aquisição. Usucapião.

 

1 INTRODUÇÃO

 

A propriedade, instituto multissecular em torno do qual orbitam vitais relações jurídicas, é direito real que se concretiza pela posse, que se entende ser, pelo que aduz o artigo 1.196 do Código Civil Brasileiro, o exercício, pleno ou não, de poder inerente à propriedade: uso, gozo e disposição da coisa, e direito de reavê-la de quem injustamente a possua ou detenha, pelo que indica o art. 1.228 do nosso diploma civil.

Quão importantes sejam os eminentes temas, não é discreta a relevância do estudo das suas formas de aquisição, que podemos distinguir, quanto à procedência, originária ou derivada. Antes, adotando classificação mais ampla, pela natureza do objeto da propriedade, temos a distinção entre propriedade móvel – que tem aquisição originária pela ocupação, pelo achado de tesouro e pela usucapião, ou aquisição derivada, que se dá por: especificação, confusão, comistão, adjunção, tradição ou sucessão – e propriedade imóvel, que tem aquisição derivada quando resulta de relação negocial entre o proprietário anterior e o adquirente, havendo transmissão de domínio por manifestação de vontade, ou aquisição originária, quando o indivíduo se torna dono da coisa, sem que alguém a tenha transmitido, ou não tendo a coisa jamais estado sob domínio de alguém. Referente aos imóveis, são modos de aquisição originários a acessão e a usucapião, e derivados o registro do título translativo e a sucessão hereditária. Neste trabalho, como apresentado, aprofundaremos o estudo da usucapião.

Como uma das modalidades legais de aquisição originária da propriedade, a usucapião, tomada como direito real, constitui processo de condução da situação fática de posse estendida cronologicamente a status de relação jurisdicionalizada de exercício dos poderes inerentes à propriedade – em atenção às diretrizes do Ordenamento Jurídico Nacional de asseguração dos benefícios inerentes à posse no que implique estabilidade da propriedade privada – com a adequada declaração do título possessório, que se pretenda apresentar despojado de vícios ou hipóteses de suspeição – e atendimento da sua função social.

São espécies propostas à aquisição imobiliária a usucapião ordinária, a extraordinária e a especial. Também será objeto de análise a usucapião da propriedade móvel por via extraordinária ou ordinária. São pressupostos da aquisição por usucapião aqui estudados a disponibilidade da coisa, a intenção de domínio sobre ela, a posse mansa, pacífica, justa, duradoura e contínua – ressalve-se a posse sucessiva – e, em regra, a boa fé e o justo título da posse. Atendidos os referidos pressupostos, é possível ação de usucapião, a ser neste trabalho estudado seu cabimento.

 

2 CONCEITUAÇÃO

 

A usucapião tem origem histórica no direito romano, que já a considerava meio de aquisição da propriedade, destacados os elementos uso e tempo. A própria etimologia da palavra revela seu propósito: usucapio, a aquisição pelo uso. Sua manifestação original se deu à Lei das XII Tábuas, que determinava prazo de dois anos para a tomada de imóvel e de um ano para coisa móvel. Posteriormente o prazo quanto aos imóveis passou a dez anos entre presentes e vinte a ausentes. Adicionou-se o requisito de justo título e de boa fé, a proibição quando de coisa furtada ou obtida com violência, e a proibição quanto à aplicação na servidão predial (DINIZ, 2007).

O instituto era inicialmente aplicável em dominium ex jure quiritium, isto é, à propriedade quiritária, exercida pelos titulares de cidadania romana, que dispunham da rei vindicatio, o poder de defesa da propriedade. Com a expansão territorial de Roma, a propriedade dos imóveis das províncias e dos peregrinos passou a demandar proteção equivalente, alcançada por edito que definiu o processo de praescriptio longi temporis, de acepção do efeito do tempo de posse para o reconhecimento da legitimidade da sua defesa, que por hora era vinculada ao elemento temporal.

Justiniano extinguiu a diferenciação da propriedade, unificando o instituto e assim fundindo as especificidades da praescriptio longi temporis com as da usucapião. Com Teodósio, a prescrição deixou de ser meio aquisitivo da propriedade, mas extintivo, o que se deu com a inovação da praescriptio longissimi temporis, destinada a tal propósito.

Resultou disso a cumulação de dois institutos que se confundem pelo quesito da posse prolongada: a prescrição extintiva, que seja a prescrição propriamente dita, e a prescrição aquisitiva, evidenciada na usucapião, em entendimento de dualidade que prossegue à contemporaneidade, sendo a primeira tratada no Código Civil Brasileiro, Lei nº 10.406/2002, em sua parte geral, e a segunda, no mesmo diploma, no âmbito do direito das coisas, não ignorada a similitude dos institutos, destacada pelo art. 1.244 do referido código, ao apontar que “Estende-se ao possuidor o disposto quanto ao devedor acerca das causas que obstam, suspendem ou interrompem a prescrição, as quais também se aplicam à usucapião”, sendo aferível disso a impossibilidade de usucapião: entre cônjuges na constância do casamento, entre ascendentes e descendentes no haver do poder familiar, entre tutelados ou curatelados e tutores ou curadores durante a tutela ou curatela, contra os absolutamente incapazes, contra os ausentes do País em serviço público, contra os que estiverem servindo nas Forças Armadas em tempo de guerra, pendendo condição suspensiva – como existência de ação reivindicatória de propriedade, havendo prazo não vencido para a aquisição de direito, pendendo ação de evicção, ou havendo processo criminal que trate de fato originário da ação de usucapião; e a interrupção no prazo da usucapião nos casos de: despacho de juiz que, mesmo incompetente, ordenar a citação, se o interessado a promover no prazo e na forma da lei processual, de protesto judicial, de apresentação de título de crédito em juízo de inventário ou em concurso de credores, de ato judicial que constitua em mora o possuidor, e de reconhecimento de direito alheio pelo possuidor por qualquer ato inequívoco, mesmo que extrajudicialmente. Tais imposições estão descritas do art. 197 ao art. 202 do Código Civil, dentre outras de menor relevância à citada equiparação.

A posse ad usucapionem também é inviabilizada a partir de atos de mera tolerância, daí não caber usucapião na vigência de contrato de transmissão temporária da posse, como o de locação: o locatário exerce posse ad interdicta. A hipótese de usucapião de bem em condomínio, especialmente em caso de herança, quando há tolerância de uso por parte dos demais condôminos, não é possível em regra, subsistindo apenas em caso de posse própria, embora haja jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça permitindo, ainda que indiretamente, a usucapião de área comum de condomínio edilício, aplicando a boa fé objetiva (TARTUCE, 2011).

A definição do instituto da usucapião, passando do conceito dos juristas romanos ao dos juristas medievais, uniu-se à da prescrição extintiva, em perspectiva monista que seguiu ao Código Civil francês, e em perspectiva dualista que nos foi apresentada no Código Civil de 1916, Lei nº 3.071/1916, que concedeu apreensão moderna do instituto, de que seja forma de aquisição da propriedade e de direitos reais tais como as servidões e o usufruto, alimentada pela prolongada posse da coisa – mais especificamente, o diploma determinava vinte anos para a modalidade extraordinária, e dez ou quinze para a ordinária, para presentes e ausentes, respectivamente.

Embora não haja uníssono entendimento doutrinário de que seja forma originária de aquisição da propriedade, é possível consenso de que o seja, pelo que se entende não ser derivada de nenhuma outra a relação jurídica constituída em prol do usucapiente, que se torna proprietário em função da posse exercida, e não em alienação do titular predecessor. Mais adequado é falar em novo direito autônomo, no que implique nova propriedade independente, não havendo assim transmissão, até por não haver o elemento volitivo do proprietário original, característico da aquisição derivada (DINIZ, 2007).

Como visto, a usucapião é instituto que, em restringindo o direito do proprietário original, ainda assim não constitui, ofensa à propriedade, e sim a valorização do instituto, cumprindo finalidade pública de lhe dar função, ante conduta de negligência do proprietário ao que lhe é responsabilidade, como indica o Código Civil no § 1º do art. 1.228: “O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais”.

Isso não justifica por si a transferência do domínio, mas permite perceber elemento adicional para a contestação: a renúncia tácita ao direito, que não se pretende agredir ou abruptamente cessar. Para tanto a Lei faculta ao proprietário a proposição de ação de manutenção e reintegração de posse, que, contudo, tem requisitos, e não pode ter duração ilimitada, o que seria ameaça à paz social. É no propósito de dar segurança e estabilidade à propriedade – estipulando, como dito anteriormente, um prazo de finalização de quaisquer questões a respeito da legitimidade ou de possíveis vícios do título de possuidor – que tem assentado a doutrina a usucapião (GONÇALVES, 2009).

 

3 ESPÉCIES

 

Tanto bens imóveis como móveis podem ser objeto de usucapião. Os imóveis, entretanto, historicamente sempre tiveram maior relevância e importaram maiores precauções, garantias e cuidados, não apenas pelo seu valor econômico, mas por sua valia como instrumento de status social, como desde a Roma antiga até bem pouco tempo ainda era irrefutável. Hoje, porém, com o elevado desenvolvimento industrial e tecnológico alcançado, os bens móveis passaram a suportar em si altos valores agregados, o que vem trazendo à eminência a usucapião de bens móveis. Mesmo assim, a maior demanda de usucapião é proveniente da contestação imobiliária, a qual terá maior destaque neste trabalho.

 

3.1 Usucapião de bens imóveis

 

Como forma de aquisição originária da propriedade imobiliária, ao lado da acessão natural, a usucapião implica verdadeiro nascimento de propriedade, não importando a propriedade exercida anteriormente sobre o bem usucapido, que não trará consigo qualquer mácula ou vício existente na propriedade anterior.

Esclarece o Código Civil que deve ser a priori presumida plena e exclusiva a propriedade. Na usucapião prevalece o mesmo entendimento, e, além disso, entende-se que os elementos decorrentes do direito de propriedade que dela se destacam são também elementos da usucapião, como os direitos reais sobre coisa alheia, por exemplo: uso, usufruto, habitação e servidões.

Quanto a este último direito citado, O C.C.B. expõe, no capítulo dedicado à constituição das servidões, definição quanto a sua usucapião, limitada à servidão aparente, em prazos de dez anos, para quando houver título, ou de vinte anos, para quando não houver. Importante ressaltar neste ponto extrapolação do prazo máximo à usucapião da propriedade, que é de quinze anos. Mas se a propriedade é adquirida em usucapião, já embarcam nela as suas servidões, não sendo necessário cumprir os cinco anos restantes. É necessário também observar os requisitos de continuidade e não oposição ao exercício da servidão. Eis o art. 1.379 do diploma, que traz importantes esclarecimentos a respeito da espécie:

O exercício incontestado e contínuo de uma servidão aparente, por dez anos, nos termos do art. 1.242, autoriza o interessado a registrá-la em seu nome no Registro de Imóveis, valendo-lhe como título a sentença que julgar consumado a usucapião.
Parágrafo único. Se o possuidor não tiver título, o prazo da usucapião será de vinte anos.

O art. 1.242, referido, trata da usucapião em modalidade ordinária, que terá dedicada seção deste trabalho.

A doutrina clássica faz distinção entre três espécies de usucapião imobiliária: a extraordinária, a ordinária e a especial, esta última subdividida em urbana – neste tópico incutida a usucapião familiar – e a rural. Aqui terá espaço, além destas modalidades, a usucapião indígena. Também são de importante impacto nas relações de fato as disposições do Estatuto da Cidade, Lei nº 10.257/2001, acerca da usucapião especial urbana tomada ao viés individual e ao coletivo.

                                          

3.1.1 Extraordinária                                    

 

O Código Civil, no art. 1.238, primeiro da seção da usucapião, trata do que se refere ser a usucapião extraordinária, que tem como caráter distintivo a escusa de título e de boa fé do possuidor. Essa particular admissão, que faz dessa modalidade a mais comumente aplicada, no entanto, implica em maior rigor no caractere temporal: a essa espécie de aquisição postula o legislador o maior prazo a ser atendido: quinze anos de exercício ininterrupto e, ressalte-se, pacífico da posse: o possuidor deve haver o imóvel como seu, com animus domini, sem que tenha existido oposição a essa conduta.

A boa fé e o justo título, elementos tradicionalmente avocados pela usucapião, neste caso são obrigatoriamente presumidos em absoluto, juris et de jure. Isto significa que além de ser simplesmente dispensada a prova documental que importa o título, é vedado que se demonstre ou se alegue sua inexistência. Resta o claro entendimento de que a carência de título não se faz prova cabível neste estilo de usucapião (DINIZ, 2007).

Para a efetivação da aquisição, deve ser alcançada por fim a sentença declaratória da aquisição do domínio por usucapião. Essa sentença constituirá então o título nascente, que deve ser transcrito ao ser levado a registro imobiliário.

O prazo mencionado é amenizado no caso de ter o possuidor estabelecido moradia habitual no imóvel em questão, ou ter nele realizado obras ou serviços de caráter produtivo. Aduz o referido dispositivo legal que rege a modalidade:

 

Aquele que, por quinze anos, sem interrupção, nem oposição, possuir como seu um imóvel, adquire-lhe a propriedade, independentemente de título e boa-fé; podendo requerer ao juiz que assim o declare por sentença, a qual servirá de título para o registro no Cartório de Registro de Imóveis.

Parágrafo único. O prazo estabelecido neste artigo reduzir-se-á a dez anos se o possuidor houver estabelecido no imóvel a sua moradia habitual, ou nele realizado obras ou serviços de caráter produtivo.

 

Como visto, as hipóteses apontadas pelo parágrafo único implicam significativa redução do prazo. Contudo, deve haver conformidade da conduta possessória ao que a doutrina denomina posse-trabalho, que se entenda ser o empreendimento, no imóvel, de domicílio, ou de atividade produtiva ou cultural, o que não deixa escapar necessária edificação ou outra estrutura que se apresente compatível ao desenvolvimento da atividade realizada. Não basta, assim, alegar pagamento de imposto territorial, mesmo sendo comprovado, pois é admitida a possibilidade de má fé nessa conduta. Entende-se então que o tributo não é prova bastante por si para configurar a posse nos termos do parágrafo único.

Os precedentes históricos dessa modalidade de usucapião são os institutos da praescriptio longi temporis, a longissimi temporis e a prescrição imemorial, esta sendo a posse cujo começo não era conhecido entre vivos. Atendido o requisito de tempo, havendo ânimo de dono e posse tranquila e contínua, é possível mover ação de usucapião sobre o imóvel, sendo que a boa fé e o justo título sequer são presumidos. Como visto, comporta-se a ausência destes dois últimos elementos. Caso haja título, ele será apenas reforço de prova (GONÇALVES, 2009).

 

3.1.2 Ordinária

 

A ação de usucapião em espécie ordinária refere-se aos casos nos quais haja por parte do possuidor, no que trate do exercício da posse sobre o bem que pretende adquirir a propriedade, justo título e boa fé. Esses são os requisitos diferenciais estipulados pelo legislador em relação ao caso anterior, da usucapião extraordinária.

O prazo previsto no art. 1.242 do C.C.B. de 2002 é de dez anos de decurso da posse. O Código Civil de 1916 fazia aos ausentes, em sentido particular, acréscimo de prazo, que era inicialmente dobrado, de vinte anos, e passou a quinze, pelo advento da Lei nº 2.437/55. O sentido de ausência adotado não era o mesmo do art. 463 do C.C.B em 1916 ou do art. 22 em 2002, referentes à curadoria dos bens do ausente. O sentido empregado era o do parágrafo único do art. 551, ratificando, do C.C.B de 1916: “Reputam-se presentes os moradores do mesmo município e ausentes os que habitem município diverso.”, aqui  já com a redação dada pela Lei nº 2.437/55.

A justificativa para a distinção de prazos era de ser razoável a submissão da inércia do proprietário ausente à prova de um prazo maior, pois poderia ser aparente e resultar de não conhecimento do esbulho ou de dificuldades que inibissem a manifestação do interesse em recobrar a posse (DINIZ, 1997). É compreensível que tenha esmaecido a referida distinção, por ser atualmente amplo e facilitado o fluxo de pessoas e de informações, sendo o monitoramento da propriedade acessível e de certa forma até exigível.

O C.C.B de 2002 dispõe redução do prazo à metade quando houver sido adquirido onerosamente o imóvel e somado a isso o possuidor tiver estabelecido moradia ou realizado investimento de proveito social e econômico. É o que informa o parágrafo único do art. 1.242:

 

Adquire também a propriedade do imóvel aquele que, contínua e incontestadamente, com justo título e boa-fé, o possuir por dez anos.

Parágrafo único. Será de cinco anos o prazo previsto neste artigo se o imóvel houver sido adquirido, onerosamente, com base no registro constante do respectivo cartório, cancelada posteriormente, desde que os possuidores nele tiverem estabelecido a sua moradia, ou realizado investimentos de interesse social e econômico.

 

Como visto, persistem os demais pressupostos indicados à usucapião extraordinária: posse mansa, pacífica e ininterrupta, com intenção de dono. Quanto ao título, este deve ser idôneo, ainda que apresente irregularidades, que ignoradas pelo possuidor, dada sua boa fé, levaram-no a crer estar em exercício adequado do domínio no decorrer do tempo. Essa hipótese formulada consegue alcançar o cumprimento do pressuposto de justo título (DINIZ, 2007).

Cabe lembrar que o C.C.B. trouxe, aos dois primeiros anos de sua vigência, disposição transitória de acréscimo de dois anos dos prazos de usucapião extraordinária e ordinária, como será visto em seção particular a este assunto.

 

3.1.3 Especial

 

Comporta nosso sistema jurídico a usucapião especial, chamada também constitucional, por ser prevista pela Constituição Federal. Como exposto, subdivide-se em duas este tipo de usucapião: a usucapião especial rural, pro labore – lançada pela C.F. de 1934, persistindo hoje ao art. 191 da C.F. de 1988 e ao art. 1.239 do C.C.B. de 2002 – e a usucapião especial urbana, pró-moradia – inovação da C.F. de 1988 o art. 183, sendo disciplinada também pelo Estatuto da Cidade, arts. 9º e 10, bem como pelo art. 1.240 do C.C.B. atual.

 

3.1.3.1 Rural

 

Tendo surgido com a Constituição Federal de 1934, a usucapião rural hoje persiste, tendo sido conservada com o advento das constituições de 1937 e de 1946. Os textos constitucionais de 1967 e 1969 não trouxeram definição dos diplomas anteriores, mas o de 1969 estabeleceu os requisitos básicos e a remissão do instituto à lei ordinária, enquanto nesta lacuna temporal se aplicava o Estatuto da Terra, Lei nº 4.504/1964, até a vigência da Lei nº 6.969/1981, dedicada exclusivamente ao tema. Vejamos o texto do art. 1º da referida lei, observando os seus requisitos:

 

Todo aquele que, não sendo proprietário rural nem urbano, possuir como sua, por 5 (cinco) anos ininterruptos, sem oposição, área rural contínua, não excedente de 25 (vinte e cinco) hectares, e a houver tornado produtiva com seu trabalho e nela tiver sua morada, adquirir-lhe-á o domínio, independentemente de justo título e boa-fé, podendo requerer ao juiz que assim o declare por sentença, a qual servirá de título para transcrição no Registro de Imóveis.

 

O artigo indica logo como se dá a constituição do título, encerrando a questão. A C.F. de 1988 trouxe nova disposição, o art. 191, copiada ao art. 1.239 do C.C.B. de 2002:

 

Aquele que, não sendo proprietário de imóvel rural ou urbano, possua como seu, por cinco anos ininterruptos, sem oposição, área de terra, em zona rural, não superior a cinqüenta hectares, tornando-a produtiva por seu trabalho ou de sua família, tendo nela sua moradia, adquirir-lhe-á a propriedade.

 

A extensão de terra admitida foi duplicada, e foi abrangido o trabalho da família, em conceito constitucional, não apenas o do possuidor, e com o objetivo de dar produtividade ao imóvel que esteja sendo habitado – dando-lhe aproveitamento racional e adequado e fazendo cumprir sua função social, exposta na C.F. ao art. 186. Tal redação faz entender intenção do legislador de fixar o homem no campo, e também impossibilidade de uso dessa forma de aquisição por pessoa jurídica. Permanece a restrição de que o usucapiente não deva possuir qualquer outro imóvel, seja rural ou urbano. O prazo mínimo exigido de posse a esse tipo de usucapião é de cinco anos, ininterruptos, e sem oposição. A boa fé e o justo título são requisitos impassíveis de alegação em contestação, no caso.

Cabe ressaltar a lógica vedação da aplicação da usucapião rural em imóveis urbanos, pois na cidade não se cumpriria o objetivo de fixar o homem no campo e dar produtividade à área rural, sendo o modo de ocupação urbano ameaça à atividade agrária, dada a especulação imobiliária.

Apesar de o art. 1.243 do C.C.B esclarecer permitido ao possuidor o acréscimo do tempo de posse dos seus antecessores, desde que sejam contínuas e pacíficas, citando o art. 1.207, parte da doutrina e jurisprudência indicam não ser possível a accessio possessionis, a referida adição das posses, em âmbito de sucessão, mesmo que o sucessor singular tenha feito parte da família que desenvolveu a atividade no imóvel, nele residindo, pois as qualidades dos exercícios de posse não seriam as mesmas, havendo requisitos personalíssimos incompatíveis com a soma de posses (GONÇALVES, 2009).

 

3.1.3.2 Urbana

 

Para atender à necessidade de efetivação de uma política urbana, a C.F. de 1988 trouxe ao art. 183 a proposição da usucapião urbana, instituto para aperfeiçoar o aproveitamento do solo urbano em propriedades particulares de até duzentos cinquenta metros quadrados. O § 2º do art. 182 indica o sentido ao qual devem posicionar-se as cláusulas normativas acerca desse tema: “A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor”.

A extensão referida do imóvel é calculada pela área construída ou pela área do terreno, não podendo ambas ultrapassar, individualmente, o limite. Há presunção juris et de jure de boa fé e é dispensado o título. Como veremos, a usucapião especial urbana, envolvida pela Lei 12.424/2011, também definirá a usucapião familiar, decorrente de abandono de lar.

Observe-se o que aduz o art. 183 da C.F. e seus parágrafos, repetido no C.C.B. com seus §§ 1ºe 2º ao art. 1.240:

 

Aquele que possuir como sua área urbana de até duzentos e cinqüenta metros quadrados, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural.

§ 1º - O título de domínio e a concessão de uso serão conferidos ao homem ou à mulher, ou a ambos, independentemente do estado civil.

§ 2º - Esse direito não será reconhecido ao mesmo possuidor mais de uma vez.

§ 3º - Os imóveis públicos não serão adquiridos por usucapião.

 

O prazo neste caso é de cinco anos, e não pode ser o indivíduo possuidor de outro imóvel, como também acontece na usucapião rural. Deve haver também moradia, o que implica não ser possível usucapir terreno sem construção compatível à habitação. Outra similitude com o instituto anterior é que não são requisitos o justo título e a boa fé. Atente-se ao que o segundo parágrafo determina: a possibilidade de reconhecimento do direito ao indivíduo uma única vez. Quanto ao § 3º, a vedação à usucapião de imóveis públicos é recorrente, o que se justifica pela antiga previsão de usucapião de terras devolutas pelo art. 2º da Lei nº 6.969/1981. Há controvérsias quanto a essa impossibilidade constitucional, de que trataremos mais tarde.

É importante ressaltar que não foram atingidas pela inovação constitucional da usucapião urbana as posses anteriores à vigência da C.F. de 1988. Apenas a partir de 1993 foram possíveis os pedidos de aquisição nessa espécie, pois não poderia o proprietário ser surpreendido com lei que retroagisse ao período em que não havia conhecimento dela.

Sob o mesmo cuidado de não surpreender o proprietário, entende-se a priori impossível requerer aquisição de parcela não dissociada de propriedade maior que duzentos e cinquenta metros quadrados alegando a usucapião urbana, pois o prazo conhecido pelo proprietário, dado o tamanho de seu imóvel, seria no caso de pelo menos dez anos, caso da usucapião extraordinária com moradia do possuidor. Isso não impede que se adquira imóvel delimitado, individualizado dentro de propriedade maior, havendo exercício de posse exclusivamente na área pretendida e delimitada, como ocorre em loteamentos, desde que as características de localização e de metragem sejam compatíveis com a intenção de loteamento, que implica previsão de desmembramento de áreas interiores da propriedade.

No caso de apartamentos, há entendimento da jurisprudência de que se deve levar em conta a área total da unidade autônoma, e não a área útil (GONÇALVES, 2009).

 

3.1.3.2.1 Individual

 

O Estatuto da Cidade – lei especial de 2001 que trouxe regulação do art. 183 da C.F. – apresentou a usucapião especial urbana individual, tratada ao seu art. 9º, com vista a atender a demanda social de acomodação do direito de propriedade no âmbito da densa conformação estrutural urbana da habitação, em um contexto de crescimento demográfico acelerado e uso desordenado do espaço, e a sua ocupação irregular ante uma fiscalização estatal pouco eficiente, que comumente só se apresenta sob a face da execução de ações de desapropriação, em vez de organizar preliminarmente a distribuição demográfica no espaço.

O objetivo da construção normativa é o de facilitar o processo de regularização da propriedade urbana, em especial a do possuidor de baixa renda, que busca garantir os seus justos privilégios possessórios, mitigando o conflito social que decorre dessa instabilidade das propriedades mal elaboradas no espaço urbano. Com isso, busca-se também alcançar melhor qualidade de vida à região beneficiada.

Analisemos o dispositivo referido do estatuto, que se assemelha ao art. 1.240 do C.C.B., que é posterior, mas não faz derrogação, por ser este lei geral e aquele, específica.

 

Aquele que possuir como sua área ou edificação urbana de até duzentos e cinqüenta metros quadrados, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural.

§ 1o O título de domínio será conferido ao homem ou à mulher, ou a ambos, independentemente do estado civil.

§ 2o O direito de que trata este artigo não será reconhecido ao mesmo possuidor mais de uma vez.

§ 3o Para os efeitos deste artigo, o herdeiro legítimo continua, de pleno direito, a posse de seu antecessor, desde que já resida no imóvel por ocasião da abertura da sucessão.

 

O prazo e a extensão máxima da propriedade são os mesmos requisitados na usucapião urbana simples, cinco anos e duzentos e cinquenta metros quadrados. Outros requisitos como posse ininterrupta e sem oposição, moradia do núcleo familiar no imóvel – não vedado o estabelecimento subsidiário de pequeno empreendimento comercial, por exemplo – permanecem os mesmos, bem como a impossibilidade de que o possuidor não seja proprietário de qualquer outro imóvel. Também aponta o § 2º o reconhecimento do direito por apenas uma vez ao possuidor. Por fim o artigo traz em seu § 3º disposição restritiva, se tomamos como referência o C.C.B. e a C.F.: apenas o herdeiro legítimo residente no imóvel à ocasião da abertura da sucessão pode exercer a accessio possessionis.

 

3.1.3.2.2 Coletiva

 

Também o Estatuto da Cidade apresentou a usucapião especial urbana coletiva, que propõe a composição de condomínio para a regularização principalmente de grandes conglomerados urbanos que não apresentem condições para a execução da aquisição de posse por outras modalidades e que necessitem de adequada interferência urbanística, tendo em vista a ordenação do pleno desenvolvimento da função social da propriedade urbana.

Ressalte-se não estar presente no C.C. essa categoria, aplicável a imóveis com área superior a duzentos e cinquenta metros quadrados ocupados sem claras delimitações internas por mais de um possuidor ou núcleo familiar, que com a declaração judicial haverá para si legalizada não a toda a propriedade usucapida, mas fração ideal do terreno sob a qual exercerá posse em condomínio – independentemente da área que antes da regularização ocupava, salvo disposição dos condôminos de diferenciação das áreas.

Esclarece o art. 10 do estatuto:

 

As áreas urbanas com mais de duzentos e cinqüenta metros quadrados, ocupadas por população de baixa renda para sua moradia, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, onde não for possível identificar os terrenos ocupados por cada possuidor, são susceptíveis de serem usucapidas coletivamente, desde que os possuidores não sejam proprietários de outro imóvel urbano ou rural.

§ 1o O possuidor pode, para o fim de contar o prazo exigido por este artigo, acrescentar sua posse à de seu antecessor, contanto que ambas sejam contínuas.

§ 2o A usucapião especial coletiva de imóvel urbano será declarada pelo juiz, mediante sentença, a qual servirá de título para registro no cartório de registro de imóveis.

§ 3o Na sentença, o juiz atribuirá igual fração ideal de terreno a cada possuidor, independentemente da dimensão do terreno que cada um ocupe, salvo hipótese de acordo escrito entre os condôminos, estabelecendo frações ideais diferenciadas.

§ 4o O condomínio especial constituído é indivisível, não sendo passível de extinção, salvo deliberação favorável tomada por, no mínimo, dois terços dos condôminos, no caso de execução de urbanização posterior à constituição do condomínio.

§ 5o As deliberações relativas à administração do condomínio especial serão tomadas por maioria de votos dos condôminos presentes, obrigando também os demais, discordantes ou ausentes.

 

É requisito para a modalidade além da inexistência de outras propriedades pertencente aos possuidores o enquadramento de todos eles no conceito de população de baixa renda. Nesta modalidade de usucapião, retorna a accessio possessionis aos moldes de sucessão mais ampla, sendo o elemento de continuidade das posses ressaltado. Os dois últimos parágrafos do artigo citado trazem disposições relativas à manutenção da integridade do condomínio especial e da sua administração.

Ponto nebuloso é a definição da relação do art. 10, citado, com o art. 183, divergência que implica o questionamento de ter sido ou não possível que se tenha contabilizado o tempo de posse a partir do advento da C.F. ou somente a partir da vigência do Estatuto da Cidade, caso se entenda respectivamente ser ou não o art. 10 modalidade subserviente ao art. 183 (GONÇALVES, 2009).

 

3.1.3.2.3 Familiar

 

A Lei nº 12.424, de 2011, incluiu ao C.C.B o art. 1.240-A, que trata de nova espécie: a usucapião especial urbana familiar, instituída nos moldes do art. 183 da C.F., a favor da população de baixa renda, com a vantagem de redução do prazo, que passa a ser de dois anos, desde que ininterruptos e exercendo posse mansa e pacífica, sem oposição. Persistem os requisitos: possuidor que não tenha qualquer imóvel, imóvel pretendido com no máximo duzentos e cinquenta metros quadrados, para fins de moradia. O § 1º do dispositivo imputa impossibilidade de reconhecimento do direito de usucapir nesta modalidade mais de uma vez ao mesmo possuidor.

Os requisitos adicionais podem ser extraídos da leitura do artigo:

 

Aquele que exercer, por 2 (dois) anos ininterruptamente e sem oposição, posse direta, com exclusividade, sobre imóvel urbano de até 250m² (duzentos e cinquenta metros quadrados) cuja propriedade divida com ex-cônjuge ou ex-companheiro que abandonou o lar, utilizando-o para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio integral, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural.

 

O usucapiente já deve ser coproprietário do imóvel, em comunhão ou condomínio com ex-conjunge ou ex-companheiro que tenha abandonado voluntária e injustificadamente o lar (GONÇALVES, 2012).

 

3.1.4 Indígena

 

Parte da doutrina encerra a usucapião indígena como modalidade especial. Entretanto, sendo a usucapião especial também chamada constitucional, e a usucapião indígena ajustada pelo Estatuto do Índio – Lei nº 6.001/1973, para não haver ambiguidade, esta será tratada em separado.

O art. 3º, I, do referido estatuto define que “Índio ou Silvícola - É todo indivíduo de origem e ascendência pré-colombiana que se identifica e é identificado como pertencente a um grupo étnico cujas características culturais o distinguem da sociedade nacional”. São os indivíduos desse grupo submetidos à tutela da União. Não podem realizar negócios, por exemplo, com pessoas estranhas a sua comunidade, sem intermédio da Fundação Nacional do Índio – criada em 1967 para exercer a tutela estatal sobre os indígenas – sob pena de nulidade do negócio, exceto o que não trouxer prejuízo e que em tal ato revele ter o índio conhecimento do que está praticando.

Informa o art. 33 do estatuto que “O índio, integrado ou não, que ocupe como próprio, por dez anos consecutivos, trecho de terra inferior a cinqüenta hectares, adquirir-lhe-á a propriedade plena”. Esta é a norma que define a usucapião indígena, de que depreendemos exigido animus domini, prazo de dez anos de ocupação, que entende a doutrina configurar exercício de posse, e extensão territorial inferior a cinquenta hectares.

O parágrafo único do artigo faz expressa vedação à usucapião de terras já dispostas à ocupação indígena: “O disposto neste artigo não se aplica às terras do domínio da União, ocupadas por grupos tribais, às áreas reservadas de que trata esta Lei, nem às terras de propriedade coletiva de grupo tribal”.

Contribuindo ao entendimento, o art. 32 aponta que “São de propriedade plena do índio ou da comunidade indígena, conforme o caso, as terras havidas por qualquer das formas de aquisição do domínio, nos termos da legislação civil”.

É considerado incapaz, desde o nascimento, o índio. Pode ele, porém, requerer a juiz competente, entenda-se na Justiça Federal – previsto intermédio da Funai – sua liberação do regime tutelar, alcançando plena capacidade civil, desde tenha, nos termos do art. 9º do estatuto: ao menos vinte e um anos, conhecimento da língua portuguesa, habilitação para o exercício de atividade útil, na comunhão nacional e razoável compreensão dos usos e costumes da comunhão nacional. Tal capacidade civil plena implica ser possível o índio propor diretamente, sem representação da Funai, ação de usucapião indígena, atendidos os pressupostos da modalidade e observadas as diretrizes de inserção progressiva e harmônica do indígena na comunhão nacional, resguardada sua cultura, e de extensão do alcance de proteção das leis do País a este grupo, previstas no art. 1º do Estatuto do Índio.

 

3.1.5 Disposições transitórias do Código Civil

 

O art. 2.029 do C.C.B., no Livro das Disposições Finais e Transitórias, estabelece que até o segundo ano da vigência do novo código, deverá haver acréscimo do prazo nas hipóteses de sua redução por ter o possuidor estabelecido no imóvel sua moradia habitual por ter nele realizado obras ou atividades de caráter produtivo. Aduz o dispositivo:

 

Até dois anos após a entrada em vigor deste Código, os prazos estabelecidos no parágrafo único do art. 1.238 e no parágrafo único do art. 1.242 serão acrescidos de dois anos, qualquer que seja o tempo transcorrido na vigência do anterior, Lei no 3.071, de 1o de janeiro de 1916.

 

O acréscimo se deu pela redução dos prazos que se deu do C.C.B. de 1916 para o de 2002. Na modalidade extraordinária, o prazo passou de vinte para dez anos – pois não era prevista a redução do prazo por exercer moradia, que no novo código é de quinze para dez anos. Resulta prazo intermediário de doze anos.
Na ordinária, o prazo passou de dez anos – para os presentes – ou quinze – para os ausentes, que habitam outro município – no código antigo, para cinco anos – pois não era prevista a redução do prazo por aquisição onerosa e exercício de moradia ou investimento de interesse social ou econômico, que no novo código é de dez para cinco anos. Resulta neste caso prazo intermediário de sete anos.
O artigo 2.030 informa que “o acréscimo de que trata o artigo antecedente, será feito nos casos a que se refere o § 4o do art. 1.228”, que implicam posse de considerável número de pessoas em extensa área, tendo nela realizado obras e serviços de relevância social e econômica. Vejamos este parágrafo:

 

O proprietário também pode ser privado da coisa se o imóvel reivindicado consistir em extensa área, na posse ininterrupta e de boa-fé, por mais de cinco anos, de considerável número de pessoas, e estas nela houverem realizado, em conjunto ou separadamente, obras e serviços considerados pelo juiz de interesse social e econômico relevante.

 

3.1.6 Usucapião de bens públicos

 

É taxativamente vedada a possibilidade de usucapir bens públicos. O art. 183, § 3º, da C.F. dispõe que “Os imóveis públicos não serão adquiridos por usucapião”, O parágrafo único do art. 191 traz a mesma ideia, bem como art. 102 do C.C.B. e o art. 200 do Decreto-Lei nº 9.760, que dispõe sobre os imóveis da União.

O mesmo caminho foi seguido pela doutrina e pela jurisprudência majoritárias. A súmula 340 do STF, de 1963 ratifica, referindo-se ao C.C.B. de 1916: “Desde a vigência do Código Civil, os bens dominicais, como os demais bens públicos, não podem ser adquiridos por usucapião”. Entendem-se dominicais os bens não destinados à finalidade, quer seja comum ou específica. Nos termos do art. 99, III, do C.C.B., “[...] constituem o patrimônio das pessoas jurídicas de direito público, como objeto de direito pessoal ou real, de cada uma dessas entidades”.

Exemplos de definição da jurisprudência dominante podemos observar, in verbis:

 

AÇÃO DE USUCAPIÃO - IMÓVEL DESAPROPRIADO PELO MUNICIPIO DE IPATINGA - IMPOSSIBILIDADE DE USUCAPIR BEM PÚBLICO - A POSSE EM BENS PÚBLICOS NÃO GERA USUCAPIÃO - APELAÇÃO DESPROVIDA - SENTENÇA CONFIRMADA. 1 - Segundo o § 3º do art. 1

83 da C.F. os imóveis públicos não serão adquiridos por USUCAPIÃO. 2 - A posse, mesmo anterior, à desapropriação, não gera USUCAPIÃO, após a desapropriação de BEM imóvel, que passa a ser um BEM PÚBLICO. 3 - Comprovado que o imóvel, objeto da ação hoje pertence ao MUNICIPIO DE IPATINGA, que o adquiriu por regular desapropriação, a ação é improcedente (Súmula 340 do STF). 4 - Apelação desprovida. 5 - Sentença confirmada. (TJMG – Número do processo: 1.0313.03.080316-4/001(1) - Relator: FERNANDO BRÁULIO - Data do Julgamento: 29/06/2006 - Data da Publicação: 20/09/2006)  

 

CIVIL - USUCAPIÃO ESPECIAL DE IMÓVEL URBANO - PROVA PERICIAL - BEM PÚBLICO PERTENCENTE AO ESTADO DE MINAS GERAIS - IMPOSSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO - EXTINÇÃO MANTIDA. Sendo o BEM objeto da pretensão integrante do patrimônio PÚBLICO, o pedido de declaração de USUCAPIÃO é juridicamente impossível. (TJMG - Número do processo: 1.0024.98.018620-9/001(1) - Relator: MAURÍCIO BARROS - Data do Julgamento: 08/07/2008 - Data da Publicação: 25/07/2008)

 

USUCAPIÃO. BEM PÚBLICO. A IMPRESCRITIBILIDADE AQUISITIVA DE BENS PÚBLICOS É CONSAGRADA DE MODO ABSOLUTO PELA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. POSSE ORIGINADA EM CONTRATO DE CONCESSÃO DE DIREITO REAL DE USO É PRECÁRIA, AFASTADO O ELEMENTO SUBJETIVO DO 'ANIMUS DOMINI'. APELAÇÃO DESPROVIDA (TJ/RS, 17a Câmara Cível, Apelação Cível nº 70.007.723.349, Rel. Desa. Elaine Harzheim Macedo, julgado em 09/03/04)

 

O Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça, como dito, posicionaram-se no mesmo sentido:

 

DIREITO CIVIL. IMÓVEIS PERTENCENTES À TERRACAP. BENS

PÚBLICOS. USUCAPIÃO. IMPOSSIBILIDADE. "Os imóveis administrados pela Companhia Imobiliária de Brasília (Terracap) são públicos, sendo insuscetíveis de usucapião" (EREsp 695.928/JOSÉ DELGADO) (STJ  - AgRg no REsp 865999 / DF AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL 2006/0150933-3 - Ministro HUMBERTO GOMES DE BARROS (1096) - T3 - TERCEIRA TURMA - julgamento em 03/12/2007 - DJ 14/12/2007 p. 404)

 

REINTEGRAÇÃO DE POSSE. BEM PÚBLICO. IMÓVEL INSUSCETÍVEL DE USUCAPIÃO. ALEGAÇÃO REJEITADA. ESBULHO RECONHECIDO.I - Tendo o Tribunal a quo reconhecido o esbulho praticado contra o imóvel do autor da ação de reintegração de posse, bem como rejeitado a alegação de usucapião, por se tratar de bem público, haveria deter julgado totalmente procedente o pedido, não apenas parcialmente, como o fez. É evidente a contradição da sentença – a cujas conclusões remeteo acórdão recorrido – porque em um trecho de sua fundamentação consta que o pedido deve ser julgado totalmente procedente e, do dispositivo, consta quese julga parcialmente procedente a ação. II - Recurso especial provido. (STJ - REsp 953151 /SP RECURSO ESPECIAL 2007/0112842-7 - Ministro FRANCISCO FALCÃO (1116) -T1 - PRIMEIRA TURMA - julgamento em 11/09/2007 - DJ 08/10/2007 p.239 REPDJ 22/11/2007 p. 205)

 

Excepcionalmente, a Lei n° 6.969/1981, criada para regulamentar a usucapião especial rural, em seu art. 2º dispunha, inadmitido pela C.F. de 1988:

 

A usucapião especial, a que se refere esta Lei, abrange as terras particulares e as terras devolutas, em geral, sem prejuízo de outros direitos conferidos ao posseiro, pelo Estatuto da Terra ou pelas leis que dispõem sobre processo discriminatório de terras devolutas.

 

Sob o mesmo sentido do entendimento desse artigo, para doutrinadores como Sílvio Rodrigues, Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald as terras devolutas, que são espécie de bens públicos dominicais, são, apesar da literalidade das disposições legais e jurisprudenciais, usucapíveis. Farias e Rosenvald (2006, apud TARTUCE, 2011) fazem explanação esclarecedora da sua contestação:

 

A nosso viso, a absoluta impossibilidade de usucapião sobre bens públicos é equivocada, por ofensa ao princípio constitucional da função social da posse e, em última instância, ao próprio princípio da proporcionalidade. Os bens públicos poderiam ser divididos em materialmente e formalmente públicos. Estes seriam aqueles registrados em nome da pessoa jurídica de Direito Público, porém excluídos de qualquer forma de ocupação, seja para moradia ou exercício de atividade produtiva. Já os bens materialmente públicos seriam aqueles aptos a preencher critérios de legitimidade e merecimento, postos dotados de alguma função social. Porém, a Constituição Federal não atendeu a esta peculiaridade, olvidando-se de ponderar o direito fundamental difuso à função social com o necessário dimensionamento do bem público, de acordo com a sua conformação no caso concreto. Ou seja: se formalmente público, seria possível a usucapião, satisfeitos os demais requisitos; sendo materialmente público, haveria óbice à usucapião. Esta seria a forma mais adequada de tratar a matéria, se lembrarmos que, enquanto o bem privado “tem” função social, o bem público “é” função social.

 

A tese merece atenção, tomando em vista o princípio da função social da propriedade. Há anseio de que haja modificação no texto constitucional, que tem sido flexibilizado em alguns julgados, embora ainda seja predominante entendimento contrário.

Flávio Tartuce (2011, p.841), defendendo a possibilidade de usucapir bens públicos, aduz: “Olhando para o futuro, baseada na funcionalização dos institutos, essa parece ser a tendência”.

 

3.2 Usucapião extraordinária e ordinária de bens móveis

 

Para os bens móveis, traz esclarecedoras definições o C.C.B.: o seu art. 1.260 aduz a modalidade ordinária: “Aquele que possuir coisa móvel como sua, contínua e incontestadamente, durante três anos, com justo título e boa-fé, adquirir-lhe-á a propriedade”.

O art. 1.261 prevê a prescrição aquisitiva extraordinária, dispensados justo título e boa fé: “Se a posse da coisa móvel se prolongar por cinco anos, produzirá usucapião, independentemente de título ou boa-fé”.

 

4 REQUISITOS GERAIS

 

Os pressupostos para a usucapião são, segundo Carlos Roberto Gonçalves (2009, p.253): coisa hábil ou suscetível de apropriação por usucapião; a posse; e o decurso de tempo. Para a usucapião ordinária, o justo título e a boa fé são pressupostos também exigidos.

Segundo o autor, a sentença declaratória do reconhecimento do direito não é requisito da prescrição aquisitiva, como alega Maria Helena Diniz (2007, p.147) pois por ela o julgador limita-se a declarar situação jurídica preexistente.

 

 

4.1 Suscetibilidade da coisa

 

Aduz Carlos Roberto Gonçalves (2009, p.253): “Preliminarmente é necessário verificar se o bem que se pretende usucapir é suscetível de prescrição aquisitiva (res habilis), pois nem todos se sujeitam a ela, como os bens fora do comércio e os bens públicos”. Superando a discussão acerca da viabilidade ou não de usucapir bens públicos, destaquemos o que o autor referido aponta por bem fora do comércio: os bens naturalmente indisponíveis à apropriação humana, como o ar atmosférico; os bens legalmente indisponíveis, como os de uso comum, uso especial, bens de incapazes, os direitos de personalidade e os órgãos do corpo humano; e os bens volitivamente indisponíveis, estes, porém, não percebidos consensualmente pela doutrina por inadmissíveis à usucapião, como os deixados em testamento com cláusula de inalienabilidade.

 

4.2 Posse

 

É requisito fundamental da usucapião, não sendo qualquer tipo de posse admissível para tanto. A posse ad interdicta, como visto, enseja tão somente proteção possessória, mas não a usucapião.

Deve ser adquirida de modo justo, não podendo iniciar com violência, clandestinidade ou precariedade. Em seu decurso deve ser mansa e pacífica, sem oposição judicial – e não mera inconformação – procedente da parte que tenha legítimo interesse sobre a propriedade, para que comece a correr o prazo prescricional, pois até que não seja, não é nem mesmo posse, mas detenção transformada em posse injusta. Na posse de mais de ano e dia, deve ser mantido o possuidor, inclusive contra o proprietário, até que se convença pelos meios ordinários.

Cessada a violência e a clandestinidade, a posse passa a ser útil para usucapião. Se o possuidor precário perpetrar o esbulho, começa a fluir o prazo prescritivo, conquanto esteja imbuído do animus domini. O caráter da posse não é imutável. É possível que, havendo causa possessionis superveniente, haja também mudança na vontade do possuidor, que pode inclusive renunciar animus domini.

Quanto à continuidade da posse, entende-se requisito para a usucapião, não podendo o indivíduo deixar de conservá-la por todo o decurso prescricional. Em caso de esbulho, deve procurar retomar a posse imediatamente pela força ou por ação de reintegração de posse. Há entendimento da jurisprudência de quem em até ano e dia o esbulhado propõe interdito possessório e vence, conta-se a seu favor o tempo em que esteve privado da posse. A interrupção implica reinício da contagem do prazo prescricional.

Embora seja exigida a continuidade, o C.C.B. prevê ao art. 1.243 que seja possível a accessio possessionis. O possuidor pode, então, demonstrar que mantém a posse por si e pelos seus antecessores. A união das posses pode ocorrer também pela successio possessionis, aquisição a título universal, sucedendo o herdeiro a posse do falecido obrigatoriamente, enquanto a sucessão a título singular é facultativa (GONÇALVES, 2009).

 

4.3 Tempo


O tempo para aquisição da posse varia de acordo com a modalidade de usucapião e de acordo com a época e a conjuntura social existente. O que entende ser subsistente é o entendimento do que seja tempo razoável para a manifestação do proprietário conquanto possa haver mais rapidamente possível regularização do exercício possessório sobre a propriedade.
Ratifique-se o elemento continuidade da posse, no tocante ao decurso de tempo, contam-se os anos por dias, e não por horas, e o prazo começa a fluir a partir do dia seguinte ao início da posse.

5. AÇÃO DE USUCAPIÃO

 

O regimento processual para a ação de usucapião de terras particulares está definido dos arts. 941 a 945 do Código de Processo Civil. Dispõe o art. 1241 do C.C.B. que “Poderá o possuidor requerer ao juiz seja declarada adquirida, mediante usucapião, a propriedade imóvel”. O possuidor, da forma exposta, pode ajuizar ação declaratória com título de “ação de usucapião de terras particulares” no foro da situação do imóvel, expondo o fundamento do pedido, juntando planta ou croqui da área usucapienda, com descrição, área e confrontações do imóvel. A sentença que julgar procedente a ação será registrada no registro de imóveis.

Devem ser citados para a ação o proprietário do imóvel, que constar no respectivo registro, devendo-se juntar certidão negativa caso não exista, os confinantes e os interessados, que se não localizados, devem ser citados por edital. Deve-se citar o possuidor atual que tenha esbulhado imóvel usucapido por outrem. Por via postal, deve ser intimada a Fazenda Pública no âmbito federal, estadual e municipal, para que manifestem possível interesse na causa. Deve integrar a lide também o hipotético cônjuge existente do autor e da parte passiva da ação, sob pena de nulidade. O espólio do possuidor também é apto de promover a ação, bem como o condômino que exerça posse exclusiva sobre o bem pretendido. O Ministério público exerce intervenção obrigatória e inafastável em todos os atos do processo, sob pena de nulidade.

Também no caso de já ter o registro do imóvel, o possuidor que encontre dificuldade de unificar as transcrições ou de precisar a área adquirida escrituralmente pode, segundo o Superior Tribunal de Justiça, ajuizar ação de usucapião.

Se o usucapiente, após atingido o prazo exigido ao caso – situação em que passa desde já a ter para si a propriedade, ainda que não declarada – sofrer esbulho e perder a posse, pode recuperá-la pelos interditos possessórios, mas se o imóvel tiver sido transferido pelo esbulhador a terceiro, cabe contra ele ação publiciana, que não exige título, para assim ajuizar ação de usucapião e obter sentença favorável.

Quanto à usucapião especial, apenas o possuidor único e atual ou seus herdeiros podem requerer o reconhecimento do direito. Já na usucapião ordinária e na extraordinária não há exigibilidade de posse atual, sendo possível a soma de posses de alienações sucessivas, mesmo tendo posteriormente o autor tendo perdido a posse para terceiro.

 

6 CONCLUSÃO

 

Perante os indiscutíveis benefícios sociais que o longevo instituto da usucapião traz à coletividade, resta bastante o entendimento da sua indispensabilidade ao ordenamento jurídico brasileiro, e mais que isso: a necessidade de sua adequada aplicação, sendo preciso que se atente às suas diversas modalidades, na busca da efetivação dos meios que tornem possível o alcance finalístico da Lei.

A função social da propriedade, no âmbito urbano e no rural, os estatutos criados para a otimização da tutela dos bens, direitos e indivíduos em condição de desamparo, e a própria defesa da dignidade humana pelo desenvolvimento de critérios que visem ampliar o acesso à habitação nos centros urbanos e à área de produção no interior do País, são nobres elementos que direcionam o instituto da usucapião.

Para não restar dúvidas acerca da legitimidade dessa forma de aquisição da propriedade, são rígidos os critérios e pressupostos específicos, particulares ao caso que esteja demandando interferência do Estado, que se manifesta pelo braço do Poder Judiciário, receptando as provocações do indivíduo que, em linhas gerais, exerce posse estendida sobre o bem, sem que tenha o proprietário inicial manifestado intenção de reaver ou manter sua propriedade.

Essa severidade dos pressupostos específicos prevalece para que seja justamente garantido ao proprietário o razoável prazo para a sua contestação, exercendo seu direito de reaver a coisa do poder de quem injustamente a possua ou detenha. Não há, porém, de estender-se esse direito por tempo indeterminado, e nesse sentido, visando a estabilidade jurídica das relações de propriedade e de posse, atua a usucapião, encerrando quaisquer dúvidas ou receios referentes à legalidade e correção da posse que se exerce.

Passa a haver novo direito sobre o bem, que não traz mais consigo os vícios ou máculas do exercício de propriedade anterior. O novo proprietário passa a usar, gozar e dispor da coisa, tendo completamente garantido o direito de mantê-la em seu poder, e de reavê-la caso sofra esbulho.

Extenso é o tema, que não é possível encerrar, ainda que seja o detalhamento de seus caracteres exaustivo, pois a regência da usucapião inova a cada dia nos tribunais, com a jurisprudência que trata dos novos casos que surgem e das novas demandas sociais que se estabelecem e motivam novas interpretações, restrições e aprimoramentos no âmbito judicial, e novas disposições normativas no plano legislativo.

 

REFERÊNCIAS

 

DINIZ, Maria Helena; Curso de Direito Civil Brasileiro. Direito das Coisas. 22. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. v. 5

 

DINIZ, Maria Helena; Curso de Direito Civil Brasileiro. Direito das Coisas. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 1997. v. 4

 

GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil. Direito das Coisas. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2009. v. 5

 

GONÇALVES, Carlos Roberto, Direito das Coisas. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, Coleção Sinopses Jurídicas, v. 3

 

SALLES, José Carlos de Moraes, Usucapião de Bens Imóveis e Móveis. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005

 

TARTUCE, Flávio; Manual de Direito Civil: volume único. São Paulo: Método, 2011