Miguel Teixeira Filho
Advogado em Joinville/SC
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1. Introdução

 

O presente artigo analisa a aplicação temporal da Lei 11.334, de 25/06/2006, que alterou os limites de velocidade previstos no artigo 218 do Código Brasileiro de Trânsito, para fins de enquadramentos infracionais e de penalidades.

 

2. A alteração legislativa

 

Em sua redação original, o art. 218 do Código Brasileiro de Trânsito assim dispunha:

 

 

Art. 218. Transitar em velocidade superior à máxima permitida para o local, medida por instrumento ou equipamento hábil:

I - em rodovias, vias de trânsito rápido e vias arteriais:

a) quando a velocidade for superior à máxima em até vinte por cento:

Infração - grave;

Penalidade - multa;

b) quando a velocidade for superior à máxima em mais de vinte por cento:

Infração - gravíssima;

Penalidade - multa (três vezes) e suspensão do direito de dirigir;

II - demais vias:

a) quando a velocidade for superior à máxima em até cinqüenta por cento:

Infração - grave;

Penalidade - multa;

b) quando a velocidade for superior à máxima em mais de 50% (cinqüenta por cento):

Infração - gravíssima;

Penalidade - multa (três vezes) e suspensão do direito de dirigir;

Medida administrativa - recolhimento do documento de habilitação.

 

A lei nº 11.334, de 25 de julho de 2006, alterou a redação do referido art. 218 do CTB, reduzindo as multas por excesso de velocidade e reclassificando as infrações, o qual passou a vigorar do seguinte modo:

 

Art. 218.  Transitar em velocidade superior à máxima permitida para o local, medida por instrumento ou equipamento hábil, em rodovias, vias de trânsito rápido, vias arteriais e demais vias:

I - quando a velocidade for superior à máxima em até 20% (vinte por cento):

Infração - média;

Penalidade - multa;

II - quando a velocidade for superior à máxima em mais de 20% (vinte por cento) até 50% (cinqüenta por cento):

Infração - grave;

Penalidade - multa;

III - quando a velocidade for superior à máxima em mais de 50% (cinqüenta por cento):

Infração - gravíssima;

Penalidade - multa [3 (três) vezes], suspensão imediata do direito de dirigir e apreensão do documento de habilitação (NR)

 

Em resumo, com tais alterações, as infrações ficaram assim classificadas:

 

a)      Excesso superior à máxima de velocidade permitida em até 20%: infração média, punida com multa de R$ 85,13 e perda de 4 pontos;

 

b)      Excesso superior à máxima de velocidade permitida em mais de 20% até 50%: infração grave, punida com a multa de R$ 127,69 e perda de 5 pontos;

 

c)       Excesso superior à máxima de velocidade permitida em mais de 50%: infração gravíssima, punida com a multa de R$ 574,62 e perda de 7 pontos.

 

3. Análise da questão proposta – Aplicação temporal da novel disposição

 

A questão se coloca diz respeito ao alcance temporal das mencionadas modificações legislativas.

 

Para enfrentar essa questão, o CONTRAN publicou a Deliberação Nº 51, de 01.08.2006, estabelecendo os novos códigos para a aplicação das penalidades e cobrança dos valores das multas previstas no referido art. 218, do CTB. Deliberou, também, que a lei não tem eficácia retroativa.

 

Assim, os novos valores não deveriam incidir sobre as penalidades anteriores à vigência da Lei 11.334/2006. Para a Entidade maior em matéria de trânsito brasileiro, os valores reduzidos das multas mais favoráveis ao infrator - somente serão aplicados às novas infrações.

 

            No entanto, nos parece que esta solução não se amolda ao ordenamento jurídico vigente.

 

            Vejamos:

 

A irretroatividade da lei é a regra geral. As normas jurídicas devem sempre ser voltadas para o futuro como expressão do imperativo da segurança jurídica. Daí a prescrição do art. 5º, XXXVI da CF:

 

Art. 5º [...]

XXXVI - A lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada.

 

Mas, a Constituição Federal estabeleceu em seu art. 5º, XL a retroatividade da lei benigna, in verbis:

 

Art. 5º [...]

XL - A lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu.

 

            No campo do Direito Penal, indiscutível é a aplicação do princípio, colhendo-se da             jurisprudência um sem número de julgados aplicando o princípio. Veja-se do Superior Tribunal de Justiça:

 

RECURSO ESPECIAL. DISSÍDIO PRETORIANO. PENAL. CONTRAVENÇÃO. ART. 32 DA LCP. REVOGAÇÃO PARCIAL. CÓDIGO DE TRÂNSITO BRASILEIRO.

1 - À luz do art. 32 da Lei das Contravenções Penais, a punibilidade da direção sem habilitação repousava no fato de que o ilícito contravencional para sua configuração dispensava a situação de perigo. Contravenção de mera conduta, prescindindo do risco concreto à incolumidade pública.

2 - O Código de Trânsito Brasileiro (Lei 9.503, de 23 de setembro de 1997, alterada pela Lei 9.602, de 21 de janeiro de 1998), no entanto, em seu art. 309, inovou a matéria, acrescentando a elementar dirigir sem habilitação "gerando perigo de dano", ou seja, dano concreto. Não mais existe contravenção, mas, sim, crime. De outro lado, dirigir sem possuir Carteira de Habilitação ou permissão para dirigir configura apenas infração de caráter administrativo, sancionada com multa e apreensão do veículo - art. 162, I, CTB.

3 - Se a infração foi praticada no dia 18 de fevereiro de 1996, antes da vigência do Código de Trânsito, extinta se encontra a punibilidade a teor da norma do art. 107, III, do Código Penal.

(REsp 227.082/SP, Rel. Ministro  FERNANDO GONÇALVES, SEXTA TURMA, julgado em 16.05.2000, DJ 12.06.2000 p. 145)

            

No entanto, este princípio constitucional também tem plena aplicação no campo do Direito Administrativo Penal como nos casos das multas tributárias, multas por violação a posturas, multas trabalhistas, e também quanto às multas de trânsito.

         

Como decorrência desse princípio constitucional, o Código Tributário Nacional dispôs em seu art. 106:

 

Art. 106 . A lei aplica-se a ato ou fato pretérito:

I - em qualquer caso, quando seja expressamente interpretativa, excluída a aplicação de penalidade à infração dos dispositivos interpretados;

II - tratando-se de ato não definitivamente julgado:

a) quando deixe de defini-lo como infração;

b) quando deixe de trata-lo como contrário a qualquer exigência de ação ou omissão, desde que não tenha sido fraudulento e não tenha implicado em falta de pagamento de tributo;

c) quando lhe comine penalidade menos severa que a prevista na lei vigente ao tempo da sua prática.

            

Na linha deste dispositivo do CTN formou-se a jurisprudência no sentido da aplicação retroativa da multa moratória benéfica, expressa nos termos da ementa adiante transcrita.

 

Do Superior Tribunal de Justiça, colhe-se:


TRIBUTÁRIO. MULTA. APLICAÇÃO RETROATIVA DE LEGISLAÇÃO MAIS BENÉFICA.

1. As multas aplicadas por infrações administrativas tributárias devem seguir o princípio da retroatividade da legislação mais benéfica vigente no momento da execução.

2. Embora o fato gerador decorrente da multa tenha ocorrido no período de 04/94 a 11/94, por força da interpretação a ser dada aos arts. 106, inc. II, letra "c", em c/c o art. 66, do CTN, deve ser aplicada à infração, no momento da execução, o art. 35, da Lei 8.212/91, com a redação da Lei nº 9.528/97, por se tratar de legislação mais benéfica.

3. Recurso improvido.

(REsp 266.676/RS, Rel. Ministro  JOSÉ DELGADO, PRIMEIRA TURMA, julgado em 16.11.2000, DJ 05.03.2001 p. 128)

 

 

TRIBUTÁRIO. EXECUÇÃO FISCAL. MULTA. ART. 44, I, DA LEI Nº 9.430/96.

REDUÇÃO. RETROATIVIDADE DA LEI MAIS BENÉFICA. ART. 106, II, "C", DO CTN. POSSIBILIDADE.

1. Em razão do caráter mais benéfico ao contribuinte, é plenamente cabível, a teor do disposto no art. 106, II, c, do CTN, que os efeitos de lei superveniente que prevê a redução de multa decorrente de débito tributário retroajam aos atos ou fatos pretéritos não definitivamente julgados.

2. Recurso improvido.

(REsp 512.913/RS, Rel. Ministro  JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, SEGUNDA TURMA, julgado em 03.10.2006, DJ 06.11.2006 p. 302)

 

TRIBUTÁRIO. EXECUÇÃO FISCAL. MULTA MORATÓRIA. REDUÇÃO. RETROATIVIDADE DA LEI MAIS BENÉFICA. ART. 106, II, "C", DO CTN. ATO NÃO DEFINITIVAMENTE JULGADO. POSSIBILIDADE. ART. 44, INC. I, DA LEI Nº 9.430/96. APLICABILIDADE.

1. Aplica-se a lei mais benéfica ao contribuinte (art. 44, inc. I, da Lei nº 9.430/96), nos termos do art. 106 do CTN. Incide no caso a multa moratória menos gravosa, eis que inexiste decisão definitiva sobre o montante exato do crédito tributário.

2. Recurso especial improvido.

(REsp 549688/RS, Rel. Ministro  CASTRO MEIRA, SEGUNDA TURMA, julgado em 17.05.2005, DJ 01.08.2005 p. 382)

      

 

            Do Tribunal de Justiça de Santa Catarina colhe-se:

 

APELAÇÃO CÍVEL - EMBARGOS À EXECUÇÃO FISCAL - APLICAÇÃO DA LEI FISCAL MAIS BENÉFICA - INTELIGÊNCIA DO ART. 106 DO CTN - SENTENÇA REFORMADA - RECURSO PROVIDO.

De solar clareza o disposto no art. 106, II, "a", do Código Tributário Nacional, que admite a retroatividade, em favor do contribuinte, da lei mais benigna, nos casos não julgados definitivamente, assim, é que com o advento do Decreto n. 2.870/01 (RICMS), art. 15, Anexo 4, ficou estabelecido que "as microempresas e empresas de pequeno porte escriturarão os livros fiscais previstos na legislação tributária, na forma aplicável aos demais contribuintes" (grifo), em decorrência, a multa imposta pelo fisco não pode mais ser exigida, em razão de lei superveniente (art. 462, CPC), que deixou de prever o ato cometido pela embargante como infração, sendo aplicável, por conseguinte, o art. 106, II, "a", do CTN.

TJSC - Apelação Cível n. 2000.011262-3, de Blumenau. Relator: Des. Anselmo Cerello. Decisão de 09/05/2003

 

Esse princípio da retroatividade benéfica, que tem aplicação em qualquer jurisdição, não se restringe ao campo do direito tributário. Tem aplicação também em relação às multas de trânsito por ter o aludido princípio natureza constitucional. E mais, tanto as multas tributárias, administrativas ou de trânsitos são cobradas coativamente pelo mesmo processo executivo regido pela Lei nº 6.830/80, que dispõe em seu art. 2º:

Art. 2º - Constitui Dívida Ativa da Fazenda Pública aquela definida como tributária ou não-tributária na Lei nº 4.320, de 17 de março de 1964, com as alterações posteriores, que estatui normas gerais de direito financeiro para elaboração e controle dos orçamentos e balanços da União, dos Estados, dos Municípios e do Distrito Federal.

          

Dessa forma, as multas aplicadas anteriormente deverão ser revistas pelo órgão julgador, enquanto não julgados definitivamente os respectivos processos.

 

            Nesse sentido, analisando a aplicação da Lei 11.334/2006, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul emitiu os seguintes julgados:

 

 

AGRAVO DE INSTRUMENTO. MULTA DE TRÂNSITO. APLICAÇÃO DA LEI POSTERIOR MAIS FAVORÁVEL. POSSIBILIDADE. PRINCÍPIO DA RETROATIVIDADE IN MITIOR. ANTECIPAÇÃO DA TUTELA PARA SUSPENDER OS EFEITOS DAS PENALIDADES. CABIMENTO. AGRAVO PROVIDO. UNÂNIME. (Agravo de Instrumento Nº 70018831016, Vigésima Primeira Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Francisco José Moesch, Julgado em 16/05/2007)

 

AGRAVO. DIREITO PÚBLICO NÃO ESPECIFICADO. MULTA DE TRÂNSITO. APLICAÇÃO DA LEI POSTERIOR MAIS FAVORÁVEL. POSSIBILIDADE. PRINCÍPIO DA RETROATIVIDADE IN MITIOR. ANTECIPAÇÃO DA TUTELA PARA SUSPENDER OS EFEITOS DAS PENALIDADES. CABIMENTO. Agravo provido. Unânime. (Agravo de Instrumento Nº 70017671371, Vigésima Primeira Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Genaro José Baroni Borges, Julgado em 28/03/2007)

 

3. Conclusões

 

Em face do exposto, concluímos que:

 

 

1)      As novas regras previstas no art. 218 do Código de Trânsito Brasileiro, introduzidas pela Lei 11.334, de 25/06/2006, em aplicação retroativa, em face do princípio constitucional da retroatividade da lei penal mais benigna;

 

2)      Por aplicação analógica do art. 106 do Código Tributário Nacional, as novas regras tem aplicação para os casos ainda não definitivamente julgados;

 

4. Bibliografia:

 

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