A “anti-natureza” no romance Triste fim de Policarpo Quaresma:
uma tragédia em três atos

Introdução

Costuma-se, de maneira um tanto reducionista, classificar esta obra de Lima Barreto como uma determinada leitura ou projeção do Brasil, que traduziria os debates de uma época em representação da perspectiva cultural e sociológica de nosso país . Tentaremos, não uma refutação, porém uma perspectiva bastante diversa desta última, enveredando por um outro viés cuja leitura acreditamos o romance poder suscitar. Abordaremos a trajetória de Policarpo Quaresma, em suas três Partes, como “atos de uma tragédia”, em que sobressai, diante desta perspectiva trágica, uma crítica por demais arguta ao conceito de natureza conforme traçado em toda tradição metafísica ocidental.
Entretanto, a que conceito de trágico nos ateremos? De grande enormidade seria este desafio epistemológico, e por demais problemático, dada a amplitude e diversidade que este conceito nos desvela na trajetória do pensamento ocidental, desde a Antiguidade até a contemporaneidade. Realizar a distinção entre um conceito de tragédia clássica ou trágico moderno pode até nos ajudar em certa medida, mas ainda sim nos leva ao confronto com inúmeros problemas teóricos. Desta feita, o conceito de perspectiva trágica que norteará nossa exposição assenta-se no que o filósofo francês Clement Rosset expõe em seu clássico A anti-natureza: elementos para uma filosofia trágica . Veremos com isto se dá.

Natureza e a filosofia trágica: iconoclastia?

Para Clement Rosset, o conceito de natureza que predomina na tradição do pensamento ocidental advém da perspectiva medieval escolástica, oriunda de determinada leitura do platonismo, que consiste em definir o mundo e, desta maneira, a natureza, como “dada, divina e perfeita” – desta maneira criando uma idealização que oculta o que, em sua concepção, deve-se pôr em xeque: que a idéia de natureza não é senão uma convenção, ou melhor dizendo, do ponto de vista cultural, uma invenção humana. Em suas palavras, um artifício:

Desnaturalizar a natureza, renaturalizar o artifício: o homem deverá aprender a convencer-se de que a existência artificial é o seu próprio meio, pois não existe nada “próprio” nem às coisas nem aos homens: o artifício ambiente não aliena nada ao homem, que aprenderá, acompanhando o ensinamento sofistico, a reconhecer nisto a potência benévola que ele atribuía ingenuamente a uma “mãe-natureza” – mantendo-se, então, adiante do perigo ao qual pretendia escapar, pois é a idéia de natureza que o alienava, e que não deixou de o alienar desde que a voz dos Sofistas foi abafada por Platão.

Desta feita, o que poderia ser colocado em questão é: em que medida o romance Triste Fim de Policarpo Quaresma é “trágico” e nos leva a esta aguda crítica de natureza – concepção instaurada, há muito, na tradição metafísica? Primeiramente, esta pergunta encontra certa plausibilidade se relacionarmos o ufanismo descrito no início do romance com a concepção de natureza a qual fazemos referência. Conforme assinala Hardman:

(...) nesse lugar ambivalente e significativo dos pontos extremos, onde fronteiras são demarcadas para logo serem contestadas e refeitas, num movimento que é simétrico aos dilemas, impasses e fulgurantes fantasias que marcam as projeções de identidade de um país.

Estas “fantasias”, que nada mais são do que uma projeção que tende a formar certa identidade nacional, encontram-se desde há muito na representação do que seria o Brasil, e na sua grande maioria são visadas politicamente ante um objetivo determinado:

Antes de ser criação literária, essa paisagem projetada pelo escrivão Pero Vaz de Caminha reúne os traços que integram os anseios mercantilistas de exploração aos desejos que movem os homens – porque concretizam a imagem do ideário europeu para o Novo Mundo – os de reencontrar o paraíso perdido e nele enriquecer. A paisagem da terra descoberta nasce como uma construção de coesão necessária, para harmonizar tendências díspares (interesses mercantilistas e mitos), apaziguar necessidades, esvaziando possíveis enfrentamentos. 

Assim sendo, continua Figueiredo:

Nossa realidade foi ocupada pela imaginação e a imaginação a transfigurou: surge então uma visão que deixa de ser qualquer necessidade de relação com a realidade para ser criação literária. 

O que, pois, é mister ser aqui salientado é a enorme amplitude que a leitura do romance de Lima Barreto nos permite configurar: ao mesmo tempo em que é denunciada esta atitude política de angariar esforços para a construção de uma identidade, pode-se a partir daí inferir uma reflexão um tanto iconoclasta para o início do século XX, e que apareceria somente a partir da segunda metade deste nos debates centrais do pensamento filosófico, a saber, uma particular crítica ao idealismo, que é a concepção trágica da existência, que se contrapõe à natureza divinizada. Assim sendo, o romance de Lima Barreto seria, pois, uma “tragédia”, na exata medida em que:

Aprovar a existência é aprovar o trágico: consentir em uma intangibilidade da existência em geral, que as noções de acaso, artifício, facticidade, não-duração descrevem, cada uma em seu nível conceitual. É também renunciar a toda exigência de ser para além da soma das existências. Ser e trágico opõem-se tal qual o não e o sim, a denegação e a afirmação, a necessidade e o acaso, o direito e o fato, a natureza e o artifício. O trágico da existência é o prescindir de qualquer referencial ontológico – “não nos comunicamos com o ser”, diz Montaigne (Ensaios, II, 12); mas paradoxalmente seu privilégio é “ser”. Por isso a existência só é aprovada se simultaneamente for aprovado o caráter factício e artificial: ou a aprovação é trágica, ou não há aprovação.

A tragédia propriamente dita, e seus três atos

Continuando nesta reflexão, podemos agora estender um pouco mais este conceito de trágico ao qual nos referimos: se uma aprovação trágica pressupõe que toda concepção de natureza é artifício, ou seja, é criada, também a idéia de natureza humana não encontraria respaldo epistemológico, senão que também a tomássemos como artifício . Um desdobramento desta concepção pode assim se colocar, no que tange ao romance:

O primeiro caminho, trágico, projeta-se sobre os indivíduos que recebem as noções, compartilhadas como memória histórica, sem reflexão crítica e discernimento de seu movimento em confronto com a realidade. Assim podem ser exemplificadas as inúmeras interpretações assimiladas por Policarpo Quaresma, dos livros que lia, como próprias, racionais e coerentes. Na mesma proporção, a crença obstinada de Ismênia nos dogmas da educação familiar que conferiam à sua vida um único sentido: o casamento. A não percepção por esses personagens do deslocamento contido nessas convenções verbais desloca-os, também, tragicamente na vida.

Passaremos então, para a análise das três partes que constituem o romance, que doravante podemos colocar como os “atos da tragédia”. Na Primeira Parte, vemos o projeto de vida de Policarpo centrado em resgatar a identidade cultural brasileira, costumes primevos da nação – nação esta cuja natureza, por conta das leituras do “major”, afigura-se como exuberante, pujante, bela, perfeita – e cujas beleza e pujança também se estendem ao que Policarpo busca ser “o brasileiro”, nos mais fiel exemplo do bom selvagem a que se refere o pensamento de Rousseau. A conseqüência da incansável busca de uma essência do que seria o Brasil e seu povo ocasionará mais tarde a sua exclusão do meio social: após ter redigido “involuntariamente” um documento em tupi, o “major” é compulsoriamente reformado por loucura. O significado desta “loucura” de Policarpo é objeto de grande discussão para muitos pesquisadores da obra de Lima Barreto , uns chegando a confrontá-la até mesmo com a biografia do escritor. Procuraremos, no entanto, articular o seguinte viés: a loucura, ou “não-razão”, como é colocada no romance traz o desfecho trágico do “Primeiro Ato” da tragédia porque demonstra a Policarpo o quão dissonante e problemática é, para uma suposta natureza do Brasil e do brasileiro, a busca profunda de uma identidade.
Na Segunda Parte, Policarpo buscará saída para os problemas sociais e econômicos do Brasil. Como poderia um país de uma natureza tão exuberante e perfeita sofrer de tantos problemas econômicos? E como poderia seu povo padecer na fome e na miséria? Começa a trajetória de Policarpo como agricultor. E envidará todos os esforços possíveis e impossíveis na resolução dos problemas que assolam o Brasil, esbarrando em inúmeros entraves, como assim descrito no próprio romance:

Meditava grandes reformas agrícolas. Mandara buscar catálogos e ia examiná-los. Tinha já em mente uma charrua dupla, um capinador mecânico, um semeador, um destocador, grades, tudo americano, de aço, dando o rendimento efetivo de vinte homens. Até então, não quisera essas inovações; as terras mais ricas do mundo não precisavam destes processos que lhe pareciam artificiais, para produzir; estava, porém, agora disposto a empregá-los como experiência. Aos adubos, no entanto, seu espírito resistia. Terra virada, dizia Felizardo, terra estrumada; parecia a Quaresma uma profanação estar a empregar nitratos, fosfatos ou mesmo estrume comum, numa terra brasileira... uma injúria!

Esta resistência de Policarpo diante da “profanação” de utilizar artefatos químicos na terra brasileira aos poucos vai esmorecendo. Cada vez mais aumenta sua angústia diante dos objetivos não alcançados, dos fracassos das suas almejadas reformas agrícolas. “Seria, contudo, culpa do povo brasileiro?”, chegam a questioná-lo. Policarpo ainda reluta. Mais adiante, no limiar de seu desapontamento, pensa consigo:

Mesmo nas fazendas, o espetáculo não era mais animador. Todas soturnas, baixas, quase sem o pomar olente e a horta suculenta. A não ser um café e um milharal, aqui e ali, ela não pôde ver outra lavoura, outra indústria agrícola. Não podia ser preguiça só ou indolência.

E, por fim, o sentimento da total impotência : a impossibilidade da realização das tão sonhadas reformas, esbarrando ora nos problemas desta tão exuberante terra, ora em embargos financeiros e rivalidades políticas, malograra. E é este o desfecho do Segundo Ato da tragédia: morre, pois, a divinização da pujança e exuberância naturais, tão diferente se mostrara na crua realidade. Resta ainda uma esperança? Resta sim, a defesa de uma causa política, da república (literalmente coisa pública), que ainda possa salvar o Brasil e os brasileiros. Este é o tema do Terceiro Ato, conforme veremos a seguir.
A assunção de um ideal por parte de Policarpo se dá no alistamento deste, a fim de combater os “hereges” opositores do regime florianista que traria a solução dos problemas do finado Império, e estabeleceria as tão sonhadas harmonia e bem-aventurança ao povo brasileiro. Contudo, a luta por este ideal aos poucos se mostrará não tão profícua: Policarpo só vê a crueldade no exército do marechal (do qual voluntariamente buscara fazer parte), enquanto que os reais objetivos “sonhados” – ou sonhos objetivados – na república estão cada vez mais distantes. Sua decepção assim é ilustrada na carta que endereça a sua irmã:

Houve momentos que se abandonaram as armas de fogo: batíamo-nos à baioneta, a coronhadas, a machado, a facão. Filha: um combate de trogloditas, uma coisa pré-histórica... eu duvido, duvido da justiça disso tudo, duvido sua razão de ser, duvido que seja certo e necessário ir tirar do fundo de nós toda ferocidade adormecida, aquela ferocidade que se fez e se depositou em nós nos milenários combates com as feras, quando disputávamos a terra a elas... Eu não vi homens de hoje; vi homens de Cro-Magnon, de Neanderthal armados com machados de sílex, sem piedade, sem amor, sem sonhos generosos, a matar, sempre a matar... este teu irmão que estás vendo, também fez das suas, também foi descobrir dentro de si muita brutalidade, muita ferocidade, muita crueldade... Eu matei, minha irmã; eu matei! E não contente de matar, ainda descarreguei um tiro quando o inimigo arquejava aos meus pés... Perdoa-me! Eu te peço perdão, porque preciso de perdão e não sei a quem pedir, a que Deus, a que homem, a alguém enfim... Não imaginas como isto faz-me sofrer... Quando caí embaixo de uma carreta, o que me doía não era a fenda, era a alma, a consciência; e Ricardo, que foi ferido e caiu a meu lado, a gemer e pedir – “Capitão, meu gorro; meu gorro!” – parecia que era o meu próprio pensamento que ironizava o meu destino...

A indignação de Policarpo ante a brutalidade de brasileiros contra seus compatriotas fora, pois, manifestada formalmente, ao alto escalão. E esta seria sua derrocada. Seu ato humanista é interpretado por seus lacônicos chefes como uma transgressão disciplinar e uma ofensa ao regime. A ironia de seu destino assim se desvela: o ideal que abraçara agora o leva a seu ocaso. Policarpo será punido como manda a crueldade do sistema: a morte por fuzilamento será o seu fim, o trágico desfecho de sua existência. E seus poucos amigos restantes nada poderão fazer para evitar a sua derradeira execução. Estas são as últimas palavras escritas à irmã:

Além do que, penso que todo este meu sacrifício tem sido inútil. Tudo o que nele pus de pensamento não foi atingido; e o sangue que derramei, e o sofrimento que vou sofrer toda vida, foram empregados, foram gastos, foram estragados, foram vilipendiados e desmoralizados em prol de uma tolice política qualquer... Ninguém compreende o que quero, ninguém deseja penetrar e sentir; passo por doido, tolo, maníaco e a vida se vai fazendo inexoravelmente com a sua brutalidade e fealdade.

 Lima Barreto, positivistas e darwinistas

A iconoclastia do romance também se sustenta se tentamos vislumbrar os debates que predominavam na época. Cronologicamente, o romance situa-se próximo da corrente do positivismo e do naturalismo. E a trajetória do romance denuncia, a todo tempo, o fracasso e a inépcia de tais ideologias. O determinismo de questões referentes a raça humana, o positivismo dos militares que tão florescente se mostrara na proclamação de nossa república são assim satirizados pelo autor:

Os positivistas discutiam e citavam teoremas de mecânica para justificar as suas idéias de governo, em tudo semelhantes aos canatos e emirados orientais. A matemática do positivismo sempre foi um puro falatório que, naqueles tempos, amedrontava toda a gente. Havia mesmo quem estivesse convencido que a matemática tinha sido feita e criada para o positivismo, como se a Bíblia tivesse sido criada unicamente para a Igreja Católica e não também para a Anglicana. O prestígio dele era, portanto, enorme.

Ele era claro e tinha umas feições regulares, cesarianas, duras e fortes, um tanto amolecidas pelo sangue africano. Quaresma procurou descobrir nele aquela odiosa catadura que Darwin achou nos mestiços; mas, sinceramente, não a encontrou. 

Neste ponto vemos como a iconoclasta ironia de Lima Barreto está em consonância com o que nos diz Clement Rosset:

Regularidade física e regularidade social conhecem realmente as mesmas eventualidades, e a felicidade social é tão frágil quanto toda felicidade física: qualquer lei, natural ou instituída, dura apenas um tempo (ainda que tenha um aspecto interminável) e não vale senão “geralmente”.

Considerações finais: o autor  nos eixos dos principais debates do pensamento moderno

Tentamos colocar uma leitura (dentre inesgotáveis possíveis outras) do romance Triste Fim de Policarpo Quaresma, de Lima Barreto, tendo como norte a concepção de filosofia trágica e anti-natureza de Clement Rosset, numa breve exposição. Esta leitura se nos mostra viável uma vez que o ficcionista carioca nesta obra nos mostra não apenas uma arguta crítica ao que em sua época se tomava por brasilidade, mas também uma iconoclasta visão de mundo (Weltanschauung) bem à frente dos debates filosóficos e políticos de seu tempo. Em outras palavras: ao mesmo tempo em que critica toda a construção de um ideal de nacionalidade que se lhe afigura calcado em interesses políticos bem delineados, o romance lança-se para além de uma crítica inócua e infundada, pondo em xeque as bases epistemológicas e a tradição do pensamento como um todo. E indicando, voluntariamente ou não, que postulados metafísicos jamais podem ou devem ser dissociados de questões de caráter social, cultural e político – questão esta que provocará grande crise no pensamento ocidental no século XX, e diversas cisões dentro de mesmo. Ainda sob esta reflexão, fica-nos a lição de o quão reducionista e nociva é a tendência de compartimentalização de diversos ramos de conhecimentos, fato este que privilegiaria somente uma minoria de especialistas, em detrimento de uma maior integração social decorrente de uma salutar interdisciplinaridade.
Em suma, sem querer nos desviar da questão à qual inicialmente nos lançamos, vimos como é inesgotável a quantidade de questões que esta obra, por alguns considerada ingênua e datada, pode nos fazer pensar. Por ora ficamos com o que dissera Prado :


O resultado é que a oposição clássico/popular deixa mais uma vez de ser trabalhada como redução contrastiva, para cindir a fabulação em dois planos que se complementam à proporção que penetram no contexto mais amplo da crise do velho: o plano da contestação ideológica da ordem em crise e o plano da sua obsessão visionária pela ruptura, que fixam – para retomar aqui a distinção de um crítico – o choque entre o real e o ideal e alargam o descompasso entre o lugar social do romance e as regras excessivamente convencionais do sistema.



Bibliografia:

Barreto, Lima. Triste fim de Policarpo Quaresma. São Paulo, Brasiliense, 1969.

Bosi, Afredo. História concisa da literatura brasileira. São Paulo, Cultrix, 1993.

Chauí, Marilena de Souza. O que é ideologia? São Paulo, Brasiliense, 1982.

Figueiredo, Carmem Lúcia N. Trincheiras de sonho: ficção e cultura em Lima Barreto. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1998.

__________. Lima Barreto e o fim do sonho republicano. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1995.

Hardman, Francisco Foot. “Homo Infimus: a literatura dos pontos extremos” in: Finazzi, Ettore e Vecchi, Roberto. Formas e mediações do trágico moderno: uma leitura do Brasil.  São Paulo, Unimarco, 2004.

Nietszche, Friedrich W. Humano, demasiado humano. São Paulo, Cia das Letras, 1992.

Prado, Antonio Arnoni. Lima Barreto: o crítico e a crise. São Paulo, Martins Fontes, 1989.

Rosset, Clement. A anti-natureza: elementos para uma filosofia trágica. Rio de Janeiro, Espaço e Tempo, 1989.

Silva, H. Pereira da. Lima Barreto, escritor maldito. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1981.