Vivemos num mundo secularizado, globalizado, em que as informações e a comunicação são duas características primordiais nos ambientes sociais em que nos encontramos. No entanto, isso ainda não excluiu da especulação humana questões de cunho metafísico, ou, rementendo-se ao termo metafísica em sua origem, daquilo que está além do físico. Dentre estas questões está o que diz respeito à alma. Nesse assunto, há uma dezena de ciências humanas que se debruçaram e ainda se debruçam. Contudo, tomaremos, neste pequeno artigo, a visão filosófica e a visão teológica.

 

I – A ALMA NUMA VISÃO FILOSÓFICA

Muitos foram os pensadores, desde os primórdios do pensamento humano, que se questionaram o que vinha a ser a alma, de onde ela vinha, para onde ela iria. Esta palavra, alma, chegou ao nosso vocabulário pela herança cultural dos gregos e dos romanos. Em grego, psiché e, mais tarde, no latim anima.

Em linhas filosóficas gerais, a alma é o princípio que dá a vida, que concede a sensibilidade e as atividades espirituais do ser humano. Para os primeiros filósofos do Ocidente, a alma era entendida como um princípio básico, ou um arché. Por exemplo, os pitagóricos (discípulos de Pitágoras) acreditavam que o princípio, ou arché, das coisas se dá nos números e a harmonia que eles estabelecem; para Heráclito, o principio é o fogo.

Mas os primeiros pensadores a sistematizarem grandes teorias, ou mesmo sistemas, sobre a alma foram Platão e Aristóteles, que influenciarão, posteriormente, no pensamento das fases da Patrística (santo Agostinho) e da Escolástica (são Tomás de Aquino). Platão concebia uma visão dualista do homem, ou seja, o homem apresentava-se sob duas dimensões: a corpórea e a animada. A concepção que Platão faz a respeito da alma diz que ela é imortal. Contudo, através de uma metempsicose (termo que Platão dava para a transmigração da alma para vários corpos, da qual muitos que acreditam na reencarnação se assemelham) a alma precisa ir se purificando. Para se purificar, ela precisa estar em um corpo. Portanto, o corpo é apenas um dado que aprisiona a alma, é seu cárcere, como escreverão mais tarde grandes pensadores da Igreja Católica.

Segundo a concepção platônica, a alma é a única segurança que os homens têm de conseguir conhecer as realidades imutáveis e eternas, uma vez que provêm do Mundo Inteligível, ou Ideal, perfeito. Temos noção de perfeição, pureza etc. porque nossa alma vem de uma realidade assim. Em sua obra intitulada Fédon, Platão concebe detalhadamente sua teoria da alma ao escrever que as almas que viveram uma vida excessivamente ligada ao corpo, às paixões, ao que muitos chamam de materialismo, e aos prazeres que disso tudo deriva, não conseguem, com a morte, separar-se por definitivo do que é corpóreo, já que o corpóreo lhes deu uma natureza, as tornou co-naturais. Para poder se livrar dessa naturalidade, na obra República, ele narra o mito de ER, pastor na Panfília que vem a morrer. ER é levado por uma deusa até o Hades – lugar para onde se dirigiam as almas mortas – e lá vêem diversas outras almas que contemplavam as Idéias eternas. As almas presentes no Hades deveriam, em dado momento, encarnar. Antes de saírem do Hades, deveriam beber das águas do rio Leithós, que significa esquecimento. Aquelas que possuíam em si certa ambição, que só pensavam numa vida que lhes oferecesse riquezas, sucesso e coisas desse nível, bebiam muito da água do rio. Isso fazia com que, ao encarnarem, lembrassem-se muito pouco do Mundo Inteligível e das Idéias eternas.

Aquelas que buscavam uma vida menos ambiciosa, em que pudessem se realizar não materialmente, e que almejavam a sabedoria, bebiam pouco das águas do rio. Ao encarnarem – ou reencarnarem –, essas almas lembrar-se-iam mais das Idéias eternas. Portanto, dentro da teoria da alma e da reminiscência de Platão, fruto de sua teoria do conhecimento, o que vale são as almas dos filósofos e dos que conseguem alcançar a sabedoria fazendo a reminiscência das idéias que contemplaram no Mundo das Idéias.

Já a concepção de Aristóteles, discípulo de Platão, caminha por veredas um tanto quanto diferenciadas. Pai da metafísica, chamada por ele de Filosofia primeira (o termo metafísica nasceria com um de seus discípulos ao classificar sua obras), é a principal das ciências teoréticas, a mais elevada das ciências. Por isso, a alma, conforme Aristóteles, é o que dá o sentido ontológico (a razão de ser) do corpo. Para tanto, os seres não apresentam o mesmo tipo de alma. Cada ser vivo tem as princípios vitais (almas) diferentes.

Há a alma vegetativa, por exemplo, que podem apenas se reproduzir e crescer. Sua alma está adequada a essas faculdades. Há a alma sensitiva, que está presente nos chamados animais irracionais, e que, além de apresentar as características da vegetativa (reproduzir-se e crescer), também possuem a percepção do mundo e a capacidade de movimento. Por fim, há uma alma racional, que acumula todas as capacidades anteriores (reproduzir-se, crescer, perceber, movimentar-se) e a de raciocinar.

Portanto, a alma vegetativa é o princípio mais básico da vida, aquele que governa e regula as atividades biológicas, presidindo a reprodução, que é o desenvolvimento de toda forma de vida. A alma sensitiva é a das sensações, portanto. E a alma racional é a mais complexa e aquele que dá origem ao conhecimento inteligível. O conhecimento inteligível consiste na assimilação não de uma forma sensível, mas de uma forma inteligível.

A concepção de Platão influenciará na concepção de Agostinho, exceto no que diz respeito à transmigração da alma. A concepção aristotélica influenciará na de Tomás de Aquino. Essas concepções estão bastante presente no pensamento teológico desses dois pensadores dos primórdios da Igreja Católica e da estruturação do cristianismo.

Na Idade Moderna, a concepção de alma sofre grandes mudanças. A partir de René Descartes a alma não é mais algo separado do homem, mas é sua res cogitans, não existindo grandes intermediários entre o que é espiritual (res cogitans) e o que é material (res extensa). Tanto res cogitans quanto res extensa são realidade conjuntas dentro do homem. Portanto, a alma é o pensamento e não um princípio que “dá a vida”, muito menos classifica-se em três diferentes tipos (vegetativa, sensitiva e racional). Dessa forma, Descartes elimina da especulação filosófica moderna os conceitos pré-socráticos da alma como principio vital e a aristotélica.

Isso influenciará em muito nos pensadores posteriores. Após Descartes não é mais possível conceber a metafísica, pelo menos não mais aos moldes tradicionais. Abre-se então uma nova teoria metafísica dentro da história do pensamento humano ocidental. A partir daqui, muitos pensadores irão se estranhar quanto ao conceito de alma como pensamento. Alguns dirão que há, então, em toda a dimensão humana, três categorias: a corporeidade, a da alma e a do espírito (pensamento).

 

II – A ALMA NUMA VISÃO TEOLÓGICA

A teologia judaico-cristã levará em conta as Sagradas Escrituras para basear toda a sua teoria acerca da alma. Algumas teologias (em especial a católica) não só levarão em conta a Sagrada Escritura, mas também o que escreveram os primeiros grandes sistematizadores da teologia: Agostinho, Tomás de Aquino, Tertuliano, Orígenes, Basílio de Cesárea, Gregório Nazianzeno, Gregório de Nissa, entre outros.

Entretanto, dentro da visão cristã-católica acerca da alma, quem melhor tratou desse assunto foram os grandes místicos carmelitas: João da Cruz, Teresinha de Jesus e Teresa D’Ávila. Esta última chega a escrever uma singela poesia a respeito da alma em seus escritos:

 

Busca-te em mim

 

Alma, buscar-te-ás em mim

E a mim, buscar-me-ás em ti.

 

De tal sorte pôde o amor, Alma em mim te retratar

Que nem um sábio pintor soubera com tal primor

Tua imagem estampar.

 

Foste por amor criada, bonita, formosa e assim

Em meu coração pintada.

Se te perderes amada, Alma, buscar-te-ás em mim

Buscar-me-ás em ti.

 

Porque sei que te acharás em meu peito retratada

Tão ao vivo desenhada, que, em te olhando, folgarás

E vendo-te tão bem pintada.

 

E se acaso não souberes em que lugar me escondi

Não busques aqui e ali, mas se me encontrar quiseres

A mim, buscar-me-ás em ti, buscar-te-ás em mim.

 

Sim, porque és meu aposento, és minha casa e morada

E assim chamo no momento em que de teu pensamento

Encontro a porta cerrada.

 

Busca-te em mim não por fora, para me achares ali

Chama-me que qualquer hora, a ti virei sem demora

Alma, buscar-te-ás em mim, buscar-me-ás em ti.

 

Alma, buscar-te-ás em mim

E a mim, buscar-me-ás em ti.

 

O livro do Gênesis nos diz que “Deus criou o homem à sua imagem e semelhança, à imagem de Deus o criou, homem e mulher os criou” (Gn 1,27). Pois bem, isso significa que o homem ocupa significativo lugar nos projetos e planos de Deus. Sendo o homem imagem e semelhança de Deus, une, em sua natureza, tanto o mundo espiritual quanto o mundo material. Ao criar homem e mulher, Deus estabelece com a humanidade sua amizade com toda a criação.

Entretanto, de toda a criação, o homem é o único que tem a capacidade de poder conhecer seu Criador (cf. Gaudim et Spes, 12, 3). Somos as criaturas que Deus quis em si mesma, o que nos faz chamados à compartilhar, pelo amor e pelo conhecimento, a vida de Deus.

Esse reconhecimento de que o homem é imagem e semelhança de Deus é que dá ao ser humano a dignidade de pessoa. Isso significa que não somos meramente uma coisa, mas somos alguém constituídos em dignidade. Somos capazes de nos conhecer a nós mesmos e aos demais, de possuirmos e de nos doarmos na liberdade, entrando em comunhão com as outras pessoas, chamados a uma aliança com o Criador.

Pelo fato dessa criação em comum, o ser humano forma uma unidade, pois Deus “de um só fez toda a raça humana” (At 17,26). Pio XII, em uma encíclica intitulada de Summi pontificatus, escreve que “[...] na unidade da sua natureza composta igualmente em todos de um corpo material e de uma alma espiritual, na unidade do seu habitat: a terra, de cujos bens todos os homens, por direito natural, podem usar para sustentar e desenvolver a vida; na unidade do seu fim sobrenatural: Deus mesmo, ao qual todos devem tender; na unidade dos meios para atingir este fim; [...] na unidade do seu resgate, operando em favor de todos por Cristo” (Summi pontificatus, 1). Tamanha lei de solidariedade e de caridade humana.que não exclui a rica variedade das pessoas, das culturas e dos povos, nos garante que somos verdadeiramente irmãos.

Mas, e a alma? No que contribui nesse processo todo?

Segundo a teologia cristã, em especial a católica, enquanto pessoas humanas somos criados à imagem de Deus, o que nos coloca, retomando a reflexão inicial, na condição de seres ao mesmo tempo espirituais e corporais. Em Genesis vemos um relato, em linguagem simbólica, dessa realidade quando lemos que “[...] o Senhor Deus modelou o homem com a argila do solo, insuflou nas suas narinas um hálito de vida e o homem se tornou um ser vivente” (Gn 2,7).

O termo alma designa, na Escritura, a vida humana. Retomamos, então, o que disseram os filósofos antigos até Tomás de Aquino acerca deste assunto. Alma é o dado da pessoa humana por inteiro, em sua integridade absoluta. É o que há de mais íntimo no homem. É o que há de valor mais absoluto na natureza humana, o que mais particularmente o faz ser imagem de Deus. A alma, conforme a Tradição cristã é o princípio espiritual existente no homem.

A alma, contudo, não descarta a realidade do corpo. Não o torna menos importante ou uma “carcaça” que a aprisiona, como pensava Platão e muitos pensadores de sua época. O corpo participa também da dignidade da imagem de Deus. Somos corpo humano, animados por uma alma espiritual, e é a pessoa humana inteira que está destinada a tornar-se, no Corpo de Cristo, o Templo do Espírito (cf. 1Cor 6, 19-20; 15,44-45).

A constituição pastoral Gaudium et Spes nos declara que “unidade de corpo e de alma, o homem, por sua própria condição corporal, sintetiza em si os elementos do mundo material, que nele assim atinge sua plenitude e apresenta livremente ao Criador uma voz de louvor” (14,1). Portanto, não é lícito ao homem desprezar a vida corporal. Pelo contrário, ela deve ser estimada e honrada, pois é criada por Deus e destinado à ressurreição no último dia.

É tão profunda a unidade da alma e do corpo que se deve considerar a alma como a forma do corpo. Graças à alma espiritual que o corpo é constituído de matéria, torna-se um corpo humano e vivo. Matéria e espírito são, assim, duas naturezas unidas no homem, e essa união forma uma única natureza.

Para a Igreja Católica, cada alma espiritual é diretamente criada por Deus, o que torna também cada uma delas imortal. A alma não perece quando separada do corpo na morte. Ela também irá se unir com o corpo novamente na ressurreição final. Apesar de parecer que alma e corpo são distintos, a teologia cristã-católica nos assegura que essa dualidade platônica não existe. Tanto alma quanto corpo convivem em especial harmonia e coerência.

Toda a especulação metafísica acerca não só da alma, mas de todo o sentido da vida tem se esvaído e tornado o pensamento humano algo utilitarista. Só “vende” aquilo que é útil. Mesmo a filosofia, dependo da realidade e do lugar, tem adquirido esse caráter pragmático das coisas. E assim vamos deixando de lado cada vez mais questões por vezes de ordem ontológica. E, com isso, vamos perdendo até mesmo o sentido de nossa vida.

 

 “Nisto do qual chamamos de civilização, desde que o homem abandonou a metafísica, a morte não tem mais sentido” (Fernando Gonzáles).

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. 4 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

 

CONSTITUIÇÃO PASTORAL Gaudium et Spes. In: Documentos do Concílio Ecumênico Vaticano II, São Paulo: Paulus, 1997.

 

REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da filosofia: Antiguidade e Idade Média. São Paulo: Paulus, 1990, v. 1.

 

_______________. História da filosofia: filosofia pagã antiga. São Paulo: Paulus, 2003, v. 1.

 

_______________. História da filosofia: do Humanismo a Descartes. São Paulo: Paulus, 2005, v. 3.