A administrativização do Direito Penal

O poder punitivo estatal consiste na capacidade do Estado de criar e aplicar punições, por meios legítimos, voltadas para a consecução de objetivos sociais. Trata-se de uma das manifestações mais severas de intervenção estatal. Reflete diretamente a noção weberiana de do Estado como detentor do monopólio do uso legítimo da força (WEBER, 1982, p. 98), sendo uma manifestação da própria soberania.
Em função da necessidade de conformação e estabilidade da soberania estatal, uma das características do poder punitivo é a unidade. Contudo, seu exercício pode ocorrer por meio de formas variadas, manifestando diferentes modelos de sanções administrativas e penais. Muitas vezes com pouca funcionalidade.
No caso brasileiro, observa-se que a inflação normativa e a sobreposição de regimes punitivos alimentam arcabouços jurídicos e políticas públicas com duvidosas racionalidades. Na visão de STOCO, a tradição do direito brasileiro de repressão ao abuso do poder econômico tem sido marcada por um padrão de intervenção atrabalhoada e pouco criteriosa do Estado na economia, por meio de variados veículos normativos de natureza penal e administrativa. Nas palavras do autor: "São tantas as leis repressivas prevendo, tipificando e apenando as mesmas condutas, que o interprete e o aplicador da lei já não mais compreendem qual verdadeiramente vige" (STOCO, 1995, p. 209).
Tal preocupação, contudo, não está restrita à defesa econômica. O problema prolifera em outros âmbitos. Na verdade, afeta a legitimidade dos mecanismos repressivos e sua funcionalidade de uma forma geral em função da perda das fronteiras entre os regimes jurídicos punitivos.
Esta perda de fronteiras está relacionada ao fenômeno que na literatura da área penal ficou conhecido como "administrativização" do Direito Penal. Segundo BARATTA (BARATTA, 1994, p. 12), este fenômeno abrange dois aspectos. O primeiro deles é o surgimento de normas penais acessórias às normas e às atividades administrativas do Estado. O Direito Penal se encontraria numa situação de assessoriedade administrativa na qual não existiria uma norma social que sirva de base à norma penal, mas um interesse da administração.
O segundo aspecto é que os tipos penais novos tenderiam a se parecer, cada vez mais, na sua forma, com as normas de intervenção da administração pública. As normas penais se transformariam em instrumento de administração de situações particulares, de riscos excepcionais.
Na visão de SANCHEZ (2011), a administrativização do Direito Penal se insere no processo expansivo do direito penal que o converte num sistema de gestão primária dos problemas sociais. Ocorre que em várias ocasiões o processo de expansão provoca a justaposição das funções preventivas do di¬reito penal e do direito sancionatório em geral, tornando-se muito difícil estabel¬ecer diferenças teóricas entre o direito penal e os outros ramos do ordenamento jurídico, especialmente o direito administrativo sancionatório e o direito policial de prevenção de perigos. Trata-se, na sal visão de um processo progressivo de diluição destas fronteiras.
Segundo SANCHEZ, seria possível afirmar que uma característica do Direito Penal nas sociedades pós-industriais seria a adoção da forma de racionalizar o controle de condutas com base na lesividade global derivada de acumulações ou repetições, tradicionalmente própria do adminis¬trativo. Assim, o Direito Penal não somente assume o modo de racionalizar próprio do Direito Administrativo sancionador como se converte em um direito de gestão ordinária de grandes problemas sociais (SANCHEZ, 2011, p. 155-156).
A principal crítica a este processo aponta para o problema do novo Direito Penal não atender às garantias do Estado Liberal de Direito. Esta é uma preocupação relevante, principalmente quando se observa problemas de baixa funcionalidade pela proliferação descontrolada de diplomas voltados para a repressão de condutas. Contudo, em que pese a relevância da crítica, deve-se ponderar o fato da nova visão advir da necessidade do Estado enfrentar os novos tipos de lesões a direito coletivo ou supraindividuais.



Bibliografia

BARATTA, Alessandro. Funções Instrumentais e Simbólicas do Direito Penal Lineamentos de Uma Teoria do Bem Jurídico. Trad. Ana Lúcia Sabadell. Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo, nº 5, p. 5 ? 24, 1994.

SANCHEZ, Jesús-Maria Silva. A expansão do direito penal. 2ª edição, São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 2011.

WEBER, Max. Ensaios de sociologia. 5ª edição, Rio de Janeiro, Editora Guanabara, 1982.