"O SILÊNCIO DOS FUZIS NÃO É A PAZ"

A INFLUÊNCIA DO NARCOTRÁFICO NA MUDANÇA DOS MOLDES DO CONFLITO COLOMBIANO

Waldemberg Oliveira de Lima

Graduando em História pela Universidade Federal do Ceará – UFC

E-mail: [email protected]

Diego de Jesus Vieira Ferreira

Graduando em História pela Universidade Federal do Ceará – UFC

RESUMO:

Neste artigo analisaremos a influência do narcotráfico nas transformações político, social e econômica dos moldes do conflito na Colômbia. Para isso, iniciaremos com a construção dos condicionantes responsáveis pela formação dessa situação de crise e em seguida, aprofundaremos a reflexão sobre a problemática da penetração do narcotráfico, sua relação com os diversos grupos envolvidos nessa questão (tais como guerrilheiros, traficantes, paramilitares e governo) e suas conseqüências para a realidade colombiana.

PALAVRAS-CHAVE: conflito-narcotráfico-Colômbia.

Introdução 

Pensar a Colômbia hoje é refletir sobre uma sociedade que vive em constante conflito. O quadro de violência alcançado durante esse quase meio século de luta armada chegou a números alarmantes. Repressão, assassinatos, seqüestros são algumas das características usadas por grande parte dos setores de comunicação internacional para descrever este conflito, esquecendo que por trás destes acontecimentos há a tentativa dos movimentos de esquerda de diminuir a situação de penúria de grande parte das classes pobres e camponesas, que ao longo da história da Colômbia sofrem com a manutenção de um sistema político controlado por setores minoritários da sociedade, responsáveis pela exclusão e pelo agravamento de suas condições de vida.

Esses mesmos setores que não percebem o caráter político e social dos movimentos de guerrilha, além do próprio governo colombiano e do governo norte-americano, são aqueles que acham que o fim da luta entre guerrilheiros, forças paramilitares, narcotraficantes e Forças Armadas está apenas no combate ao narcotráfico, na eliminação dos cultivos ilícitos, principal financiador dos movimentos de guerrilha. Entretanto, a problemática da luta armada na Colômbia não se limita ao narcotráfico por si só, sendo, por isso, necessário considerar também diversos outros fatores que contribuíram para a construção dessa situação de crise.

Mesmo com todas essas indagações seria impossível deixar de considerar a amplitude e a influência do narcotráfico na transformação dos moldes da guerrilha, sendo esta atividade a responsável por movimentar milhões e milhões de dólares a cada ano, dinheiro não só usado por narcotraficantes e guerrilheiros de esquerda, mas também por forças paramilitares de direita, principal auxiliar do governo colombiano durante muito tempo no combate aos movimentos de guerrilha.

Nesse sentido, nossa proposta é analisar a influência do narcotráfico na mudança do moldes do conflito, levando em consideração os condicionantes que contribuíram para a construção dessa atual situação de crise.

 A permanência dos problemas centenários

 O processo de violência na Colômbia não é algo que nasceu da noite para o dia. É o resultado de uma série de questões que há tempos permeiam o cotidiano desta nação.

Pode-se falar que a prática de violência na Colômbia é uma constante desde a formação dos partidos políticos (Liberal e Conservador), onde a luta pelo controle hegemônico do Estado levou estas facções distintas a travarem diversas batalhas (Cinqüenta e dois levantamentos armados e algumas guerras civis) ao longo do século XIX.

De maneira geral, os segmentos da sociedade que sustentavam o projeto conservador eram: os grandes proprietários rurais, os escravistas, os altos burocratas e o Exército. Já os liberais eram representados por setores ligados ao comércio, por setores médios intelectualizados e por artesãos das cidades. Claro, isto são apenas generalizações, pois a relação de influência destes partidos não se limitava a um número tão restrito de setores da sociedade.

Esses partidos tinham concepções político-ideológicas distintas: divergiam quanto ao grau de compromisso com os princípios da economia política liberal que cimentavam o sistema capitalista mundial no século XIX e condicionavam o desenvolvimento; divergiam também quanto ao papel da Igreja, importante proprietária de terras e fornecedora de crédito, garantia do controle social sobre as classes populares e da legitimidade da classe dominante na ordem mercantil-colonial; enfrentaram-se a propósito da rapidez com que devia se abolir a escravidão; da forma de apropriar-se das terras públicas e indígenas; das condições em que se deveriam obter os empréstimos estrangeiros; do caráter das instituições educacionais públicas e particulares; da natureza do sistema monetário, bancário e tributário; e do grau de centralização política e administrativa.[1]

Por conta dessas divergências ideológicas e pela luta sobre o controle político do Estado colombiano entre essas facções partidárias "la violencia se fue legitimando como una forma de alternación política, como una modalidade de actividade política".[2]

Do ponto de vista da manutenção da ordem social, tanto Liberais como Conservadores se empenharam na tarefa de não permitir que os dominados esquecessem o seu "lugar" na hierarquia social. Sendo esse período caracterizado também pela prática da exclusão, na medida em que se consolidava a idéia do bipartidarismo, estando o poder ora nas mãos dos liberais ora nas dos conservadores, ao passo que o restante da população, à margem das decisões políticas da nação, ficava à mercê das escolhas dos tradicionais partidos.

De todos os conflitos travados entre liberais e conservadores ao longo do século XIX, a chamada Guerra dos Mil Dias (1899-1902) teve uma importância crucial. O elevado caráter destrutivo deste conflito, no qual se estima terem morrido mais de 100 mil pessoas, levou a sociedade colombiana a refletir sobre suas posturas traçadas durante o século XIX.

O início do século XX na Colômbia foi um período de reflexão sobre os caminhos traçados por este país. Por conta dos diversos conflitos armados e da traumática perda do Panamá[3], as elites políticas perceberam que após quase um século de independência ainda não havia sido construída uma nação, uma pátria colombiana. Por isso, fez-se necessário trilhar caminhos que conduzissem à formação de um Estado sólido, onde os laços de fraternidade e o sentimento de pertencimento a uma nação formassem a identidade do cidadão colombiano. Assim, "propunham uma união sagrada: eliminar as barreiras entre os partidos, nacionalizar as instituições, silenciar as disputas religiosas, desterrar do Exército o pretorianismo golpista, purificar as finanças, solucionar as disputas com as nações vizinhas e reconciliar as classes sociais".[4]

 Em conseqüência, os seguintes 30 anos foram marcados por um progresso relativamente pacífico em busca da unificação da nação.

Um fato no mínimo curioso marcou esse período: meses antes da grande crise mundial de 1929, com a queda da Bolsa de Valores de Nova Iorque, os Estados Unidos pagam uma indenização à Colômbia referente à concessão "pacífica" (entenda-se, forçada) do Panamá. Enquanto as nações européias e as nações americanas sofrem com a crise, a Colômbia não tem sua economia tão afetada, pois possui reservas em dólares pagas pelos estadunidenses. Este foi um dos fatores que impulsionaram o seu desenvolvimento e a "pacificação" política nos primeiros anos de 1930.

A Questão Agrária e o Surgimento dos Movimentos de Guerrilha.

Após mais de 40 anos de hegemonia conservadora, os liberais voltaram ao poder e implantaram um programa de reformas conhecido como "La Revolucíon En Marcha". A criação de novos impostos a várias empresas norte-americanas e, após muitos anos, a discussão sobre questões sociais como a reforma agrária e a função social da propriedade são os pontos principais em pauta.

Enquanto as elites políticas e econômicas estavam envolvidas em suas próprias disputas, a grande maioria do povo colombiano amargava uma péssima condição de vida. Longe das vistas do Estado, os pequenos proprietários de terra, que compunham uma parcela significativa da população da Colômbia, estavam sujeitos aos desmandos dos grandes latifundiários. Impossibilitados de intervir no poder público, sendo o seu acesso negado pela classe que os oprimia, restou à massa camponesa articular-se por seus próprios meios. Reunidos em grupos, muitas vezes a tensão nos campos explodia em violência entre opressores e oprimidos, ou seja, entre latifundiários e camponeses. Sem dúvida, era uma luta injusta, em que uma reunião de trabalhadores pobres confrontava as forças do Estado enviadas para proteger o interesse daqueles que detinham a influência nas esferas do poder.

É então que o governo liberal, em uma tentativa de controlar essa situação, permite legalmente a criação de sindicatos urbanos e rurais, e assim surgem as Ligas Camponesas, a expressão maior da coordenação das classes camponesas em garantir seus almejados direitos. Assim define Jesus Izquierdo a ação das Ligas: "de reclamar meramente o pagamento justo de salários e a transparência na forma como o mesmo era efetuado, passaram a exigir do Estado ações concretas que estabelecessem mecanismos que permitissem satisfazer aos pobres outras aspirações humanas além da fome". [5]

A coesão dos trabalhadores e os seus anseios por cultivarem em suas próprias terras levaram as Ligas a uma campanha de invasão de terrenos abandonados. Os latifundiários responderam as invasões com o velho argumento das armas.

Durante esse tenso período é promulgada a reforma que iria repercutir profundamente na sociedade colombiana. Em 1936 é promulgada a Lei 200, a dita "Lei da Terra". Através dela é proposta uma reforma agrária radical, na qual os camponeses agora seriam os proprietários das terras em que trabalhavam, gerando assim uma convulsão nas relações no campo. Sobre essa nova proposta, comenta Alfredo Molano:

Aeso significó, basicamente, que los campesinos en términos generales tuvieran acceso a la tierra que trabajan como propriedad. Así el título no era el requisito de la propriedad sino el trabajo sobre la tierra. Eso significó un cambio radical en las relaciones porque los campesinos invadían las tierras, se metían a las grandes haciendas y reclamaban la propriedad sobre esos terrenos, lo que naturalmente concitó la oposición de los dueños de las haciendas que apelaron en muchíssimas ocasiones a las armas para develar esos intentos campesinos de apropiación de la tierra[6].

Na prática, essa decisão do governo conseguiu apenas agravar ainda mais o conflito, pois em nenhuma hipótese os grandes fazendeiros acatariam esta proposta.

Sobre a tentativa do Estado liberal de fazer a reforma agrária, afirma o mesmo autor:

Fue en realidad una reforma agraria de saco, sin planificación, sin organización, un poco brutal pero que fortaleció muchíssimo a las organizaciones campesinas sobre todo en ciertas zonas de Colombia (...). Este enfrentamento entre campesinos e hacendados dio lugar a procesos de violencia que de alguna manera, hay que leer también, como una forma de retaliación frente a la hegemonia conservadora que duró cerca de cuarenta años[7].

É o velho quadro de conflitos na Colômbia, derivado ainda do vício do bipartidarismo. Ao excluir as classes populares da participação nas decisões do país, a elite política e econômica gerou um quadro de inconformismo, agravado pela má qualidade de vida do povo.

Então, a partir de 1946, iniciou-se um movimento cujas conseqüências são sentidas até hoje. Naquele momento, foi a vez do Partido Liberal dividir-se nas eleições, sendo o candidato da "esquerda liberal" Jorge Eliécer Gaitán.

Eliécer Gaitán surgiu com uma proposta inédita e inaceitável para a época, como nos mostra Jesus Izquierdo: "Para ele, o importante era formar uma frente de combate que transcendesse o bipartidarismo tradicional e assumisse as feições da luta de classes (...)" [8]. Essa proposta incomodou até seus próprios partidários liberais que não admitem o projeto de Gaitán.

Com os liberais divididos, os conservadores ganharam a eleição. De toda a sua conturbada história, a violência na Colômbia atingiu o seu ápice quando em nove de abril de 1948, Gaitán foi assassinado, deflagrando, devido à sua popularidade, uma onda de violência na cidade de Bogotá.

Os massacres se estenderam por todo país, onde liberais, conservadores, Exército e até grupos comunistas estavam envolvidos em uma batalha tão generalizada que não poupava mulheres nem crianças. Milhares de habitantes da capital se amotinaram em protesto contra esse crime político, em uma das mais terríveis revoltas urbanas: o Bogotazo. No meio da troca mútua de acusações entre os membros dos partidos, o assassinato não foi desvendado. Estes tumultos desencadearam outro movimento de conflitos que, com alguns intervalos, se estendeu por 14 anos. Período, com toda razão, conhecido como "La Violência".

Durante aquele período de crise generalizada, em 1950, subiu ao poder Laureano Gómez, representante do partido conservador, com o intuito de pôr fim ao estado de calamidade. Para isso, seu governo tendeu a se apoiar cada vez mais nos aparatos repressivos, afinal, a experiência já mostrara que a violência era um dos métodos mais eficazes de eliminar qualquer tipo de oposição. Porém, por conta de seu governo não conseguir controlar esta situação de crise e por ter colocado a Colômbia em um conflito que não lhe dizia respeito, a Guerra da Coréia, a oposição contra Laureano Gomez cresceu bastante, até mesmo dentro do seu próprio partido.

Ocorreu então uma crise de hegemonia política dentro do próprio bloco de poder, que começou a ver com preocupação a probabilidade de uma insurreição camponesa.Com isso, os setores dominantes passaram a pressionar os militares para intervir no conflito, sendo assim implantado um regime de ditadura militar na Colômbia.

O golpe militar de junho de 1953 foi organizado pelos grandes cafeicultores e apoiado pelo partido liberal. Sua autonomia foi relativa no começo, pois as decisões econômicas e sociais estiveram ainda nas mãos dos políticos e executivos da burguesia agroexportadora.

O regime de Rojas Pinilla tentou impor um projeto populista de curto alcance, baseado em idéias cristãs e bolivarianas para resolver os problemas do país, mas obteve pouco êxito.

Quando o general se preparava para mais um mandato, em 1957, as classes político-dominantes mais outros setores da sociedade exigiram a renúncia de Rojas Pinilla e a entrega do regime político aos civis. Com isso, iniciou-se o período da história da Colômbia conhecido como Frente Nacional.

A Frente Nacional se instituiu com o objetivo de eliminar as causas que haviam levado a Colômbia a uma década de violência e ditadura.

Os setores dominantes da sociedade colombiana achavam que a distribuição igualitária dos cargos públicos era a medida mais adequada para o país recuperar a paz e voltar à normalidade institucional.

Desde seus primórdios, e até para poder contar com um mínimo de apoio eleitoral que o legitimasse, o discurso dos governantes frentenacionalistas estava baseado em reformas de cunho social, como a reforma agrária e a reforma urbana, além da distribuição das riquezas com o intuito de tornar a sociedade mais igualitária. Porém, nenhuma dessas reformas conseguiu aprovação Legislativa, e a que chegou mais próxima, a reforma agrária, só foi aprovada até onde não afetasse os interesses dos grandes proprietários.

Outra característica desse período foi a exclusão da oposição, na medida em que o governo era revezado entre liberais e conservadores. Além disso, houve a diminuição dos índices de participação política[9], por conta da ausência de projetos atrativos para as classes dominadas.

Paralelo a isso e longe dos centros urbanos, no qual o período de Frente Nacional pôde diminuir a violência e melhorar a economia, um fenômeno se formava. Todo o período após a morte de Gaitán conferiu um revigorado ardor às lutas camponesas. Os grupos de camponeses que antes haviam lutado para conquistar as terras nas quais ansiavam por trabalhar, agora empenhavam esforço ainda maior para defendê-las. As chamadas "Repúblicas Independentes" tornaram-se um abrigo para os despossuídos e para as vítimas do conflito rural, onde os trabalhadores faziam e seguiam as suas próprias leis, o que muito desagradou a oligarquia colombiana. O governo conservador declarou então o Partido Comunista como o seu principal inimigo. Ora, esses grupos camponeses de autodefesa recebiam em suas áreas de controle o apoio deste Partido, o que transformou as "Repúblicas" em alvos em potencial. Apesar de tentar se infiltrar pacificamente através das "brigadas de paz", em 1964 o governo abandonou esta política e apelou ao tradicional expediente da luta armada.

A região de Marquetalia foi a primeira a sofrer o pesado ataque de uma ofensiva militar de grande porte, que contou até com helicópteros e aviões, onde 16.000 soldados armados enfrentaram agricultores que, através de uma estratégia de guerrilha, defenderam o seu refúgio.

Marquetalia foi tomada, mas a semente revolucionária apenas tinha acabado de nascer. Os grupos de camponeses que sobreviveram ao ataque se dispersaram em direção a outras áreas de organização agrária. Em 1966, na chamada "Segunda Conferência Guerrilheira" esse movimento adotou o nome de Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia), lideradas por Tirofijo. No ano seguinte surgiu o ELN (Exército de Libertação Nacional), com clara inspiração guevarista. Ambos os grupos têm firme caráter político-militar, sendo expressões de propostas alternativas ao sistema vigente.

Para reunir todas as forças disponíveis para combater esses movimentos guerrilheiros, em 1968 o governo aprovou uma lei concedendo liberdade para que sejam formadas milícias para enfrentar os guerrilheiros. Surgiram aí as milícias de direita no combate, os antecedentes do que serão as forças paramilitares.

É nos campos, tradicional palco de enfrentamentos entre as classes oprimidas e as forças interventoras do Estado, que o cenário de conflitos colombiano assumiu novas matizes.

Surgimento dos cultivos ilícitos

Há tempos era precária a situação dos camponeses.A reforma agrária não foi suficiente para eliminar a tensão nos campos, decorrente da concentração de terras nas mãos de poucos. Assim, o pequeno agricultor permanentemente precisava migrar em busca de espaços para praticar sua agricultura.[10] Foi então que surgiu um elemento que iria subverter as relações sociais na Colômbia: os cultivos ilícitos.

Trazida do México, logo foi estabelecida uma tradição de contrabando de maconha, tendo com principal cliente os Estados Unidos. A rede de relações estabelecidas por essa prática acabou por englobar os pequenos agricultores, que encontraram nesse plantio um meio estável de vida. Deu-se assim o início da infiltração do tráfico de drogas na sociedade colombiana. O suborno, os subterfúgios e a violência eram empregados agora com o propósito de viabilizar a rentável atividade. Contudo, a partir da década de 80, houve uma pesada repressão a essas plantações, o que muito diminuiu o lucro de quem a praticava. Alfredo Molano comenta que "la caída del preço de la marihuana hace que ésta vaya desapareciendo y dejando toda uma infraestructura humana y uma cultura del cultivo ilícito" [11]

Toda essa infra-estrutura foi direcionada para outro produto ainda mais rentável, a cocaína. A folha de coca já era conhecida na Colômbia, sendo empregada em cerimônias culturais. Agora, os camponeses enxergaram na sua produção um substituto perfeito para a maconha. Deve-se salientar que o que tornava essas atividades ilícitas tão atraentes aos agricultores era seu lucro, sua capacidade de tornar o trabalho agrícola compensatório como nunca fora antes.

A ciência do tratamento da folha de coca para convertê-la em pasta de cocaína, que era mantido somente entre profissionais químicos, logo foi aprendida pelos camponeses, o que aumentava ainda mais os lucros, pois agora não era necessária a atuação de intermediários entre a produção e a venda. Gradativamente, o comércio ilegal de cocaína foi penetrando em todos os setores da realidade colombiana. As antigas penúrias contrastavam agora com uma economia segura graças ao tráfico. Podemos dizer que os setores rurais não teriam se voltado para esse plantio se, paralelamente a esse período, a Colômbia não houvesse passado por uma transformação econômica profunda que modernizou seu setor industrial, mas diminuiu a importância do setor agrário.

O algodão e o arroz jamais renderiam para o agricultor tanto quanto a droga. A dificuldade na qual passava o campo levou mais e mais pessoas a esse tipo de cultivo. Algo que ilustra essa ligação umbilical entre os cultivos e o tráfico foi o fracasso dos ditos "programas de substituição". O primeiro desses planos, o Plan Maestro, tentou substituir os cultivos de coca por café na região ao sul de Cauca. Porém, justamente nesta época houve uma queda internacional dos preços do café, o que afastou muito daqueles que acreditavam que essa troca de mercadorias seria viável. O narcotráfico tornou-se então parte do cotidiano colombiano e uma fonte apreciável de captação de dólares, moeda valorizada que derivava da venda do produto aos americanos, seus principais compradores desde a época do contrabando de maconha.

Ambíguasimbiose

Desde a formação das Ligas Camponesas[12] ou do estabelecimento das Repúblicas Independentes, são longe dos centros urbanos que se desenrolaram os conflitos questionadores do governo. A guerrilha colombiana tem suas principais áreas de ação nas selvas, onde a superioridade numérica dos seus agressores é anulada. E foi também neste cenário que se desenrolaram as sangrentas lutas por reforma agrária, tornando os pequenos agricultores experientes em apelar às armas quando os longos discursos ou as vias políticas não atendem as suas prementes necessidades.

Longe das vistas do Estado, essas zonas conheciam apenas a violência e a repressão como forma de governo. O ódio das populações rurais pelos agentes repressores do governo foi habilmente usado pela guerrilha como um método eficaz de atrair a si a simpatia desses povos. Tornou-se ela própria um Estado dentro do Estado. "Definía las reglas de la distribución de la tierra, resolvia los problemas familiares, educaba e cierta medida a la giente. En fin, sustituía al Estado"[13]. Foi nesse momento crucial que aconteceu a aproximação entre os grupos guerrilheiros, como as Farc, e o tráfico de drogas entorpecentes. Um dos meios pelo qual a guerrilha financia a sua luta é através da cobrança de impostos em troca de proteção contra os desmandos do governo colombiano, seja de agricultores, de comerciantes ou de qualquer outro que esteja estabelecido nas zonas onde ela domina.

Viram-se os guerrilheiros em um impasse. Não os interessava, e até se opuseram a isso no primeiro momento, permitir esse tipo de cultivo nas suas áreas, o que diminuiria a sua autoridade face os camponeses e deturparia a visão que as pessoas tinham do movimento. Por outro lado, os traficantes enxergaram nessa aliança o melhor modo possível de proteger suas plantações, pois nos territórios que as Farc controlavam as Forças Armadas não conseguiam penetrar.

Por fim, as Farc aliaram-se aos narcotraficantes. Contudo, os guerrilheiros pagaram um alto preço por esse acordo. Ao aliar-se aos traficantes que abastecem de drogas os viciados da maior potência do mundo, o movimento guerrilheiro tornou-se alvo de uma intensa campanha midiática internacional, tendo a sua imagem deturpada e sendo declarada oficialmente por muitos países como um grupo terrorista. Porém, sendo financiada pelo narcotráfico, as Farc são capazes de desafiar o Estado colombiano e defender o seu discurso de defesa dos trabalhadores rurais e de reforma agrária.

Assim como aconteceu com as relações sociais no campo, o narcotráfico forçou a guerrilha a adotar novas táticas para poder conviver com essa nova realidade. As Farc se limitam apenas a cobrar impostos sobre a produção e o processamento da pasta de coca, não envolvendo seus integrantes em nenhum momento do processo, tanto por isso representar uma indesejável imobilidade das suas tropas, quanto pelo temor da corrupção que os altos lucros do tráfico podiam provocar entre os guerrilheiros.

As Farc protegem as plantações dos traficantes e estes em troca financiam a luta guerrilheira colombiana. Essa verdadeira simbiose tem uma característica crucial: a hostilidade entre os seus dois elementos. Os narcotraficantes só simpatizam com a luta civil impulsionada pela ideologia revolucionária quando esta afeta seus negócios, enquanto aos guerrilheiros não agrada essa dependência financeira do tráfico de drogas. Além do mais, os produtores traficantes tendem a montar grandes propriedades, o que vai de encontro com uma das maiores lutas das Farc, a redistribuição agrária. Apesar dessa ambígua e muitas vezes conflituosa relação, os Estados Unidos não hesitaram em taxar o movimento armado colombiano de "narcoguerrilha", devido a essa união de interesses.

A Guerra da Coca

Toda a infra-estrutura herdada do tráfico de maconha e agora usada no comércio de pasta de coca, como noções operacionais, informação sobre mercados consumidores, contatos, informantes e rotas seguras, aos poucos montou uma grande teia de vendas aos EUA, controlada por pequenos grupos de dirigentes, os cartéis, dos quais os principais grupos de exportadores foram os de Medellín, o grupo de Santacruz e o de Rodríguez Orejuela.[14] No fim da década de 70, apesar da maciça campanha de repressão aos cultivos ilícitos de maconha incentivada pelos Estados Unidos, o narcotráfico estendeu seus tentáculos sobre a política, evidenciado pelas denúncias de corrupção e de indiferença com o nascente problema do comércio ilegal de coca.

O narcotráfico alcançou cifras econômicas tais que tornou alguns poucos beneficiados extremamente ricos. Cálculos estimam números entre 800 mil a dois milhões de dólares, ou seja, de 10% a 25% das exportações do país. Com suas fortunas consolidadas graças à cocaína, acumularam também grande poder político, comprando ou impondo a sua impunidade.

Pressionado pelos EUA, o governo colombiano teve que intensificar os seus esforços de controle interno do tráfico de drogas. O marco inicial dessa verdadeira luta entre o Estado e os traficantes foi o assassinato do ministro da justiça Rodrigo Lara. Podemos dizer que o período de conflitos começou em 1985 e tendeu sempre a crescer até 1991, quando lentamente foi cedendo. Apesar de seus longos intervalos, esses sete anos foram marcados pelas ferrenhas destruições de laboratórios por parte do governo, ao que os cartéis revidavam massacrando funcionários públicos, em uma crescente onda de terrorismo e violência. É claro o efeito destruidor do tráfico contra o povo colombiano durante esse período. Esse grupo de traficantes, liderados por Pablo Escobar, temia acima de tudo a extradição aos EUA, onde dificilmente gozariam da impunidade que possuíam na Colômbia.

Esse período findou sem nenhum resultado benéfico para as partes envolvidas. Enquanto os traficantes concluíram que através de atentados nunca conseguiriam obter concessões do governo, o Estado não podia cogitar a hipótese de dialogar com um grupo que assassinava a população civil inocente.

As forças anti-guerrilheiras

Formados por ex-oficiais ou ex-policiais a serviço de ricos fazendeiros e contando com a simpatia das Forças Armadas, que os consideram uma força auxiliar informal na luta anti-guerrilheira, os paramilitares também não passaram incólumes pela influência do narcotráfico.

Ao assumir uma postura tática similar a da guerrilha, as zonas controladas por eles também passaram a proteger os cultivos ilícitos. Contudo o grande diferencial entre estes dois tipos de proteção consiste no fato de que, apesar de cerca de 70% da luta paramilitar ser financiada pelo tráfico, muito desse lucro é apropriado pelos paramilitares, convertendo-o em finanças pessoais. Enquanto que qualquer guerrilheiro acusado de apossar-se da gramaje[15] é sumariamente expulso das fileiras, os líderes paramilitares acumulam enormes fortunas do comércio de cocaína. Na década de 80 houve uma explosão de violência explicitada pela Guerra da Coca, que, apesar de sua intrínseca ligação com o problema da cocaína, teve importante contribuição das ações paramilitares.

No entanto, o grande financiador da luta contra o tráfico e a guerrilha é o governo norte-americano. Desde o governo do presidente Bill Clinton, foram empregados diversos recursos na luta antidrogas. Estima-se que 50000 americanos são afetados anualmente com o vício da cocaína, além dos problemas de âmbito familiar e social e as despesas do Estado no tratamento desses dependentes. Devido a isso, os EUA empregam seus meios, seja preparando contingentes, as Forças Armadas colombianas, com treinamentos dos marines, manipulando a opinião pública mundial contra as Farc ou mesmo enviando recursos à Colômbia, tornando-a capaz de adquirir armamento semelhante ao da Grã-Bretanha.

Em 2002, ao eleger a presidente o conservador Álvaro Uribe, os EUA levaram o governo colombiano a mudar a sua postura em relação aos traficantes e aos guerrilheiros (duas palavras que para os americanos são sinônimas). O presidente anterior, André Pastrana[16], havia estabelecido uma espécie de trégua na qual o tráfico ganhara tamanha força que levou os Estados Unidos a intervirem, exigindo uma nova política de combate às drogas.

Essa nova política era, em teoria, bastante simples. Ao invés de conter o tráfico, o governo colombiano deveria eliminá-lo.

Secar as águas é o ideal?[17]

É difícil negar que o narcotráfico tenha penetrado profundamente na realidade da sociedade colombiana. Estudos recentes afirmam que cerca de 10% da população da Colômbia está envolvida, direta ou indiretamente, com o tráfico de entorpecentes, ou seja, quase quatro milhões de pessoas à margem da economia oficial do Estado[18]. Pessoas que a tática do atual presidente quer eliminar.

O suborno e a corrupção, desde as autoridades locais, como a Polícia, até os altos setores do Judiciário, o afluxo de moeda internacional na economia colombiana, a questão contraditória da relação com a guerrilha, o envolvimento dos paramilitares e a política intervencionista dos EUA são os elementos atuais de um conflito com profundas raízes históricas. Apesar do surgimento destes novos elementos, o quadro conflituoso na Colômbia não mudou em essência.

É claro que muito do propósito inicial da guerrilha foi desvirtuado devido ao tráfico internacional de drogas, mas persistem no seio da luta a oposição e a rebeldia das camadas populares em acatar os desmandos e a corrupção originada do sistema bipartidarista, da manutenção do poder nas mãos de uma elite restrita. Se não há mais os atritos entre os partidos, prossegue a revolta de setores da sociedade insatisfeitos por se verem excluídos das decisões que regem a sua nação.

Acreditamos que o melhor meio de se iniciar um processo de paz na Colômbia é revisar a atual postura agressiva do presidente Uribe e partir para uma reflexão profunda das feridas causadas ao longo dos séculos de conflito, propondo reformas sociais e econômicas que englobem não só uma porcentagem mínima da população, mas todos os setores da sociedade. Enquanto não forem abertas as portas para as negociações entre grupos com anseios, expectativas e posições tão diversas, a sociedade colombiana dificilmente terá a oportunidade de se firmar como uma Nação.



[1] G. G. L. Meneses, Cem Anos de Solidão na Comemoração do Primeiro Centenário da Independência na Colômbia e em Cali. Textos de História, vol. 7, n1 2, 1999. Revista da Pós-graduação em História da UnB pág. 83

[2] Economia y nación. Una breve historia de Colômbia. Siglo veintiuno editores. Terceira Edición, 1988 pág 401.

[3] Em 1903, em pleno processo de reconstrução do país, os colombianos perdem o controle sobre o Panamá, que por intervenção dos Estados Unidos torna-se uma federação independente.

[4] G. G. L. Meneses, Cem Anos de Solidão na Comemoração do Primeiro Centenário da Independência na Colômbia e em Cali. Textos de História, vol. 7, n1 2, 1999. Revista da Pós-graduação em História da UnB pág. 82

[5] G. G. L. Meneses, Cem Anos de Solidão na Comemoração do Primeiro Centenário da Independência na Colômbia e em Cali. Textos de História, vol. 7, n1 2, 1999. Revista da Pós-graduação em História da UnB pág. 84.

[6] G. G. L. Meneses, Cem Anos de Solidão na Comemoração do Primeiro Centenário da Independência na Colômbia e em Cali. Textos de História, vol. 7, n1 2, 1999. Revista da Pós-graduação em História da UnB pág. 96.

[7] Colômbia: perspectivas de paz em el 2001, Pág. 34.

[8] Colômbia: perspectivas de paz em el 2001, Pág. 34.

[9] Segundo Jorge Orlando Melo, as quatro cidades com um número maior de abstenção foram Bogotá, Antioquia, Caldas e Valle, com índice superior a 70%, e as cidades com um número menor foram Sucre, Córdoba, Magdalena e Meta, com índice de cerca de 50%. El Frente Nacional Reformismo e participação política. In,BibliotecaVirtual Luis Angel Arango.

[10] Para mais informações sobre a condição dos colonos antes dos cultivos ilícitos, consultar Colômbia: perspectivas de paz em el 2001, pág. 91.

[11] Colômbia: perspectivas de paz em el 2001, pág. 92

[12] Sobre as Ligas Camponesas, ver Jesus Izquierdo In: www.ameríndia.ufc.br

[13] Colômbia: perspectivas de paz em el 2001, pág. 94

[14] Para mais informações sobre a formação dos cartéis colombianos, ver Jorge Orlando Melo, Narcotráfico e Democracia In: Biblioteca Virtual Luis Angel Arango.

[15] Imposto sobre a produção de entorpecentes nos territórios controlados pela guerrilha. Estima-se que seja cerca de 10% do lucro total.

[16] Sobre a trégua implícita entre Pastrana e o tráfico ver a entrevista de Antônio Carlos Peixoto.

[17] Há um ditado espanhol que diz "Se quiser pegar o peixe, o melhor método é secar a água" Esse dito é facialmente aplicável à atual situação da Colômbia, onde o presidente Uribe pretende acabar com o conflito eliminando os seus atores, que constituem uma considerável parcela da população colombiana. A idéia de aplicar este ditado veio do documentário Colômbia: Secando as águas. Visões da guerra civil.

[18] Drogas, conflito e EUA. A Colômbia no início do século. In, Dossiê América Latina.