Autor: Naiara Costa Gomes de Mendonça (Aluna do Programa de Pós-Graduação em Educação – Mestrado - da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Estadual Paulista, campus de Presidente Prudente – SP)

Co-autor: Arilda Inês Miranda Ribeiro (Professor Adjunto (Livre Docente) do Departamento de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Estadual Paulista, campus de Presidente Prudente – SP)

Introdução

Em sua obra “O que é política social”, Faleiros (1991) nos instiga a pensar as políticas educacionais tendo em consideração a análise da conjuntura política e, portanto, das correlações de forças presente em dado momento histórico. Mostra-nos, ainda, que essa correlação de forças não se manifesta de maneira estática, linear e determinada, mas possui um caráter histórico e, portanto, mutável, de acordo com as formas de organização, de mobilização, dos recursos disponíveis e das estratégias dos blocos ou alianças em torno dos interesses políticos e econômicos defendidos em dada contexto.

Nesse sentido, o autor, desmistificando a idéia das políticas enquanto favores concedidos pelo Estado à população, aponta que

As políticas de saúde, educação, habitação, trabalho, assistência, previdência, recreação e nutrição são objeto de luta entre diferentes forças sociais, em cada conjuntura, não constituindo, pois, o resultado mecânico da acumulação nem a manifestação exclusiva do poder das classes dominantes ou do Estado. Essas políticas não caem do céu, nem são um presente ou uma outorga do bloco do poder. Elas são ganhos conquistados em duras lutas e resultados de processos complexos de relação de forças. (FALEIROS, 1991, p. 62, grifos nossos)

Isto posto, consideramos, como bem coloca Romanelli (1999, p. 188), que a organização da educação e, por conseguinte, do sistema educacional em dada sociedade é, antes de tudo, um problema de ordem política, uma vez que esta organização se faz por meio da legislação, a qual, por sua vez, configura-se sempre como “[...] o resultado da proposição dos interesses das classes representadas no poder”.

Face a essas considerações, o presente texto, cujas reflexões se originaram a partir das discussões propiciadas pela disciplina “História da Educação Brasileira” , tem por objetivo fazer alguns apontamentos acerca do conflito ideológico travado em torno das discussões sobre o projeto de diretrizes e bases da educação, que culminaram com a promulgação da primeira LDBEN brasileira: a Lei 4024 de 20 de Dezembro de 1961.

Importante destacar que, neste estudo, não pretendemos discutir possíveis contradições existentes em alguns dos dispositivos legais da “nova” lei, nem tratar dos avanços ou retrocessos que esta lei representa, como o fazem, de maneira primorosa, Otaíza Romanelli e Ester Buffa. Antes, queremos colocar em debate as diferentes orientações ideológicas que inspiraram a ação das diversas pessoas envolvidas no conflito que, aqui, por força de síntese e inspirados nas idéias das autoras acima mencionadas, colocaremos em termos de escola pública X escola privada, evidenciando, no interior deste, as discussões acerca da “liberdade de ensino”.

Correntes ideológicas em disputa: escola pública X escola privada

Os debates que precederam à promulgação da primeira Lei de Diretrizes e Bases da educação brasileira foram marcados pelo conflito existente entre duas correntes ideológicas antagônicas: os defensores da escola pública e os defensores da escola privada.

Na defesa da escola privada, colocavam-se dois grupos: a Igreja Católica e os donos de escolas particulares leigas. De acordo com Buffa (1979), os donos de escolas particulares leigas, por não terem uma doutrina própria, apoiavam-se na doutrina da Igreja para defender seus interesses, que, basicamente, eram de ordem financeira.

Essa corrente, também chamada de privatista ou conservadora, contrapunha-se aos defensores da escola pública, acusando-os, dentre outros aspectos (alguns dos quais serão abordados mais adiante), de propugnarem por uma educação materialista e atéia, a cargo exclusivo do Estado, com o intuito de introduzir, posteriormente, o regime socialista no país. Importante destacar que, nesse momento, vive-se o pós-guerra, o período da Guerra Fria, sob a ameaça do “fantasma do comunismo”.

Os defensores da escola pública, por sua vez, também denominados de progressistas, podem ser divididos em três grupos distintos. Contudo, antes de procedermos a uma caracterização desses grupos, queremos ressaltar que os defensores da escola pública não se constituem como um grupo homogêneo. Sua heterogeneidade é evidenciada no documento intitulado “Roteiro para a Defesa da Escola Pública”, que, em seu início, explicita que a Campanha em Defesa da Escola Pública

[...] não é um movimento político partidário e nem tampouco tem o propósito de combater crenças religiosas e doutrinas filosóficas. Nele se integraram homens de convicções diversas que não raras vezes têm posição definida sobre matéria de fé. Não são entretanto estas convicções pessoais e o credo particular de cada um que definem o sentido comum e os objetivos da Campanha de Defesa da Escola Pública. Se nos unimos, apesar de possíveis divergências de ordem doutrinária, é porque julgamos que a escola pública se encontra ameaçada com a apressada aprovação, pela Câmara Federal, do projeto de Diretrizes e Bases da Educação Nacional . Nossa cartilha é a Constituição da República, que nos assegura o direito de livremente opinar, como cidadãos, sobre todos os problemas de interesse nacional. (BUFFA, 1979, p. 62)

Percebemos, portanto, que, apesar das divergências, os integrantes da corrente progressista se unem na luta por um mesmo objetivo: defender a educação púbica, considerada como uma conquista irreversível das sociedades modernas e concebida como uma educação fundada em princípios liberais e democráticos.

Tendo feito essas ressalvas, partimos agora para a tentativa de delinear, com base nos estudos de Ester Buffa, os três grupos que constituíam essa corrente. Seriam eles:

I.O grupo dos liberais-idealistas, que propunha uma educação descolada da realidade social e que, por este motivo, defendia objetivos educacionais colocados em termos universais e eternos, válidos para qualquer tempo e lugar e, portanto, a-históricos, tais como a afirmação da individualidade, da originalidade e da autonomia ética do indivíduo. Nesse grupo, cuja ênfase estava na teoria, inclui-se Anísio Teixeira.

II.O grupo dos liberais-pragmatistas, cuja preocupação, alicerçada na ênfase dada à prática, voltava-se à educação do indivíduo com a finalidade de ajustá-lo à realidade social em mudança. Esse grupo é representado por Laerte Ramos de Carvalho, João Eduardo Rodrigues Villalobos e, principalmente, por Roque Spencer Maciel de Barros.

III.O grupo de tendência socialista, para o qual a educação era considerada em suas relações reversíveis com a sociedade, ou seja, homem e meio em relação recíproca, de modo que ao mesmo tempo em que o homem modifica o meio é também por ele modificado. Em termos de teoria e prática, esse grupo as considera em relação dialética. Seu principal representante é Florestan Fernandes, cuja defesa da escola pública se faz na medida em que considera que “[...] somente esta pode se configurar como instrumento eficaz na superação do subdesenvolvimento”. (BUFFA, 1979, p. 81)

“Liberdade de ensino”: divergências em suas concepções

No período de discussões em torno do projeto de diretrizes e bases, a liberdade de ensino era defendida tanto pelos defensores da escola pública quanto pelos defensores da escola privada. No entanto, embora objeto comum de defesa, cada grupo, de acordo com os seus interesses, dava a essa expressão diferentes significados.

Buffa (1979) aponta que as correntes privatistas identificavam liberdade de ensino com a liberdade de escolha por parte do indivíduo da escola que queria freqüentar. Assim, contra o monopólio do Estado, apregoavam a não-intervenção estatal nos negócios da educação, tendo como princípios fundamentais os “direitos da família” e a igualdade de direitos para a escola privada em relação à pública, tanto no que se refere à representatividade quanto aos recursos para a educação.

Pautados nesses pressupostos, os defensores da iniciativa privada acusavam os defensores da escola pública de serem “monopolistas” e, uma vez que propunham soluções que não davam margem à escolha do indivíduo e da família quanto à escola que gostariam de freqüentar, “[...] se afiguram como inimigos da liberdade de ensino, como ‘totalitaristas’”, nas palavras de Wilson Cantoni (apud BUFFA, 1979, p. 53).

Os defensores da escola pública, por sua vez, entendiam a liberdade de ensino muito mais como liberdade de “cátedra” do que como liberdade de escola. Para eles, a liberdade de ensino era sinônimo da liberdade de consciência e de investigação. Seria oportunizar espaços para o livre pensar. Diante disso, acusavam as escolas particulares, principalmente as confessionais, de serem “sectárias”, não propiciando a verdadeira liberdade de ensino. Novamente nas palavras de Wilson Cantoni, os “[...] adversários da escola pública querem a liberdade de escola porque não a querem na escola”.

Fundamentada nos pressupostos defendidos pelos defensores da escola pública, Buffa (1979) traz à discussão a conclusão apresentada por um editorial, intitulado “Liberdade de Ensino Remunerada”, enviado ao jornal “O Estado de São Paulo”, no ano de 1959, fazendo a crítica ao substitutivo Carlos Lacerda, na medida em que este, coerente com as proposições da corrente privatista, apregoava, por um lado, a não-intervenção do Estado na educação e, por outro, a utilização de recursos públicos pelas escolas privadas. Frente a isso, as palavras, apresentadas literalmente nesse documento, são as seguintes: “É como se vê, a instituição, no Brasil, do reinado do ensino livre; livre da fiscalização do Estado, mas remunerado pelos cofres públicos. Em vez de ‘pagar para ver’, o Estado ‘pagará sem ver’. (BUFFA, 1979, p. 38)

Ainda, argumentando acerca dos motivos dos ataques que a escola pública vinha sofrendo, Jaime de Abreu, em sua defesa da escola pública, afirma que a acusação de monopólio estatal da educação não procede em se tratando de um “[...] Estado que ainda tão precariamente se desobriga de sua tarefa constitucional de estado democrático-republicano de ministrar, a todos, educação comum, gratuita e obrigatória” (BUFFA, 1979, p. 40).

Ou seja, num período em que a educação ainda era privilégio de uma elite e que a grande massa dos trabalhadores encontrava-se à margem do processo de escolarização, excluída, portanto, do direito ao ensino, e em que o estado se desobrigava do dever de oferecer educação a todos, como falar de monopólio estatal da educação, como o fazia a corrente privatista?

De acordo com dados do senso escolar de 1964, apresentados por Romanelli (1999), 33,7% das pessoas de 7 a 14 anos não freqüentavam escolas, em sua maioria por falta destas.

Nesse sentido, as palavras de Paschoal Lemme, citadas por Buffa (1979, p. 43), trazem ao debate acerca do monopólio do ensino um elemento fundamental: o monopólio exercido pela Igreja na história da educação brasileira. Segundo Lemme, “[...] a igreja, sim, é que exerceu o monopólio absoluto da educação e do ensino, e sempre lutou quando o viu perdido, para reconquistá-lo”.

Ainda nessa direção, vale destacar as palavras apresentadas no Manifesto dos Educadores, divulgado pela imprensa em 1959, como forma de denúncia dos interesses ideológicos e econômicos que permeavam a ação daqueles que se colocavam contra os defensores da escola pública. Segundo este documento, o que

[...] disputam afinal, em nome e sob a capa de liberdade, é a reconquista da direção ideológica da sociedade, uma espécie de retorno à Idade Média, e os recursos do erário público para manterem instituições privadas que, no entanto, custeadas, na hipótese, pelo Estado, mas não fiscalizadas, ainda se reservariam o direito de cobrar o ensino, até a mais desenvolta mercantilização da escola. (BUFFA, 1979, p. 41)

Importante salientar que, evidentemente, os defensores da iniciativa privada não compartilhavam dessa concepção de que a Igreja exerceu no passado e, ainda no presente, tenta, incisivamente, manter o monopólio do ensino.

Para tanto, de acordo com as idéias de Florestan Fernandes, a corrente privatista, dentro da qual estariam os representantes da Igreja Católica, pretenderia utilizar-se de recursos estatais investidos na manutenção e expansão do sistema educacional, de forma a assumir o controle da política educacional bem como da administração escolar brasileira.

Considerações finais

Neste texto, buscamos, ainda que modestamente, propor o debate acerca do conflito ideológico travado entre as correntes conservadora e progressista, no período que antecedeu a promulgação da primeira LDB, a Lei 4024/61, detendo-nos nas discussões sobre a “liberdade de ensino”, diferentemente concebida de acordo com os interesses dos defensores da escola pública e da escola privada.

Conscientes do não esgotamento da discussão e das possibilidades de aprofundamento que a temática proporciona no sentido de voltarmos o olhar para questões que, evidenciadas neste período, ainda estão presentes nos dias atuais, embora, em alguns casos, com uma outra tônica - daí a necessidade de contextualizá-las. Dentre elas, destacamos o papel do público e do privado, a democratização do ensino, a relação quantidade X qualidade no/do ensino, o processo de criação das leis e de delineamento das políticas educacionais, de acordo com as forças em disputa em dado contexto sócio-histórico etc. (BEISEGEL, 1980; PAIVA, 1987; CURY, 1988; FAZENDA, 1988)

À guisa de conclusão, portanto, destacamos, mais uma vez, em concordância com Romanelli (1999, p. 190), que, em síntese

As ideologias conflitantes [...] provinham de correntes conservadoras e correntes progressistas, aquelas, favoráveis à manutenção da educação, como privilégio de classe, e estas, a favor da democratização do ensino. Aquelas propugnando pela não-intervenção do Estado nos negócios da Educação, e estas, proclamando a necessidade de o Estado exercer sua função educadora, como base de garantia e de sobrevivência do regime democrático. (ROMANELLI, 1999, p. 190)

Ao final, porém, das discussões em torno do projeto de diretrizes e bases, a lei aprovada não foi aquela que os defensores da escola pública reivindicavam.

Apesar disso, é válido destacar o mérito que teve a Lei no sentido de intensificar os debates públicos sobre a questão da escola particular e da escola pública, chamando a atenção da sociedade e propondo a tomada de posicionamento.

Referências Bibliográficas

BUFFA, Ester. Ideologias em conflito: escola pública e escola pública. São Paulo: Cortez e Moraes, 1979. – (Coleção Educação Universitária).

FALEIROS, Vicente de Paula. O que é política social. São Paulo: Brasiliense, 1991. 5. ed.

ROMANELLI, Otaíza de Oliveira. História da Educação no Brasil: 1930 a 1973. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999. 22. ed.

Bibliografia de Apoio

BEISEGEL, C. R. Relações entre a quantidade e a qualidade no ensino comum. (Trabalho apresentado na I Conferência Brasileira de Educação, em Abril de 1980).

CAMBI, Franco. História da Pedagogia. Trad. Álvaro Lorencini. São Paulo:Edunesp, 1999.

CURY, Carlos Roberto Jamil. Ideologia e educação brasileira: católicos e liberais. São Paulo:Cortez, 1988.

FAZENDA. Ivani Catarina Arantes. Educação no Brasil anos 60: o pacto do silêncio. São Paulo: Loyola, 1988.

MANACORDA, Mario Alighiero. História da Educação: da antiguidade aos nossos dias. São Paulo: Cortez, 1999.

PAIVA, Vanilda Pereira. Educação Popular e Educação de Adultos. São Paulo: Editora Loyola, 1987.